por Percival Puggina
Para a maior parte das pessoas, as principais normas que orientam a organização do Estado e a vida política se tornam conhecidas pela vivência. Uma das consequências desse empirismo está em ser ele, tantas vezes, adotado como padrão para julgar, politicamente, normas, modelos e situações vividas por outros povos. Atribui-se, assim, caráter geral a algo particular — a própria experiência e modo de fazer.
Em virtude do que descrevi, quase todo mundo, na América Latina, avaliou como golpe a destituição de Fernando Lugo, presidente do Paraguai, dez meses antes do término do mandato. No entanto, a Constituição paraguaia contém um preceito segundo o qual o governante, diferentemente do Brasil, não é senhor absoluto do seu tempo de mandato, podendo ser afastado por mau desempenho de suas funções. E Lugo foi retirado do posto por esse motivo — vinha sendo um mau presidente. É claro que Dilma, Cristina Kirchner e José Mujica sabiam disso, mas Lugo era aliado ideológico. E aliado ideológico sempre tem razão. Até Fidel Castro. As história reais, apesar de conhecidas, jamais são contadas.
As eleições do último domingo ajudam a entender a questão. Elas mostraram que a esquerda paraguaia, somadas suas ramificações, mal passou dos 10% dos votos. Nesse caso, deve-se indagar: como foi possível, em 2008, a eleição de alguém como Fernando Lugo? Explico. Depois de seis décadas consecutivas de predomínio do Partido Colorado (direita), naquela eleição, o eternamente oposicionista Partido Liberal Radical Autêntico (centro-direita e segunda maior legenda do país) buscou Lugo para ser seu candidato. E ele conquistou a vitória somando três fatores: o importante peso dos liberais, o desgaste dos sucessivos governos colorados e o carisma do bispo, até então homem de boa fama e imagem numa sociedade em que os católicos representam 90% da população.
No entanto, o novo presidente, a exemplo de todo extremista, chegou ao poder como se houvesse vencido uma revolução, ou como se tivesse sido consagrado pelo eleitorado numa coligação de iguais. Não era bem assim. O sucesso da aliança que encabeçava nada tinha a ver com suas preferências ideológicas. E Lugo foi perdendo, ao longo de quatro anos, toda sustentação política, tornando-se alvo natural do artigo 225 da Constituição paraguaia, segundo o qual o presidente (e, como ele, diversas outras autoridades) "pode ser submetido a julgamento político por mau desempenho, delitos cometidos no desempenho do cargo e delitos comuns". Tivéssemos um preceito semelhante na nossa Constituição, teríamos nos livrado mais rapidamente de certas malas sem alça e evitado muita tropa na rua ao longo da nossa história republicana.
A proposição de perda do cargo foi formulada contra Lugo, na Câmara dos Deputados, com apenas um voto em contrário. Foi aprovada pelo Senado por 39 a 4. E foi confirmada pela Suprema Corte. Por ter sido um ato juridicamente perfeito, não tendo Lugo sustentação política para continuar no exercício de seu cargo, não houve a mais tênue anormalidade na vida do país. Sequer um tomate foi jogado em quem quer que fosse. A mesma Constituição que lhe abriu a porta de entrada, abriu a de saída. O Paraguai prosseguiu sua vida, como nação soberana, presidido pelo vice-presidente constitucional. As eleições deste domingo consagraram uma vitória folgada do Partido Colorado.
Resumindo. Dilma, Cristina e Mujica valeram-se da situação criada com o afastamento de Lugo para aplicarem um golpe, um golpe mesmo, no Paraguai. Alegando inconformidade com aquela decisão de uma nação soberana que não lhes pediu opinião, expulsaram o Paraguai do Mercosul e aprovaram, ato contínuo, a entrada da Venezuela, cuja admissão vinha sendo, até ali, sistematicamente vetada pelo parlamento paraguaio. Evidenciou-se, assim, o verdadeiro motivo do procedimento adotado contra o país vizinho. Era preciso. Era preciso proclamar ilícito o que era lícito para tirar o Paraguai com o cotovelo e trazer, pela mão, a Venezuela. Foi trambique.
Foi golpe. Foi um golpe aplicado às regras do Mercosul para admitir nos negócios do bloco o parceiro ideológico venezuelano. Coisas do PT no poder, sempre enredando gostos e interesses do partido nos negócios de Estado.
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