domingo, 29 de maio de 2022

"Gentil Duarte" e "Mechas" os Dois Dissidentes Mortos na Venezuela

Os bandidos eram procurados por serem dois dos mais perigosos narcoguerrilheiros dissidentes, e aparentemente morreram em uma explosão na Venezuela.
Gentil Duarte teria chegado ao acampamento de Jhon Mechas fugindo das autoridades colombianas. Enquanto na Venezuela, ambos meliantes teriam morrido em uma explosão causada por seus inimigos, que lutam pelo controle territorial e pelas rotas da coca.
por Nelson Matta Colorado
 e Daniela Osório Zuluaga
O som de uma explosão na madrugada de 4 de maio teria pego de surpresa dois dos dissidentes mais procurados do país: Miguel Botache Santillana, vulgo "Gentil Duarte", e Javier Alfonso Velosa García, vulgo "Jhon Mechas", que controlava mais de 600 homens e 6.000 hectares de cocaína em todo o país.
Segundo as suspeitas das autoridades, foram seus próprios inimigos criminosos que conseguiram assassiná-los do outro lado da fronteira, no estado venezuelano de Zuila, em meio a uma disputa pelo controle territorial e rotas de narcotráfico.
Gentil Duarte foi o primeiro chefete das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) a não aceitar o Processo de Paz com o governo colombiano e e continuar a luta armada.
Após pelo menos três golpes do Exército colombiano contra ele, Duarte fugiu para o estado fronteiriço e de lá comandou mais de 600 homens. Em Zuila, Jhon Mechas, também dissidente, foi quem o acolheu e o protegeu com suas tropas daquele lado da fronteira.
Essa proximidade também teria custado a vida de Jhon Mechas, que estava no local da explosão quando os fatos ocorreram, segundo informações recebidas pelo general Jorge Luis Vargas, diretor-geral da Polícia.
A disputa pelo controle de um dos principais corredores de coca entre Catatumbo e Venezuela tem sido mais eficaz no combate aos grupos armados do que todos os esforços da Força Pública.
Em menos de dois anos, essa guerra de traição e morte removeu do mapa pelo menos quatro dos mais altos escalões dissidentes das FARC: Seuxis Pausias Hernández, vulgo “Jesús Santrich”; Hernán Darío Velásquez, vulgo “El Paisa”; Henry Castellanos, vulgo “Romanha”; e Miguel Botache Santillana, vulgo Gentil Duarte, cuja morte é noticiada como um fato.
O outro lado da fronteira, na Venezuela, deixou de ser o abrigo perfeito onde se escondiam guerrilheiros e narcotraficantes e se tornou em mais um território onde cerca de 17 estruturas criminosas disputam o chamado Arco do Caribe, caminho por onde transitam coca, armas e outros tipos de substâncias sem o assédio das autoridades, como explica Néstor Rosanía, diretor do Centro de Estudos de Segurança e Paz.

O Primeiro Dissidente
A bandeira de Miguel Botache Santillana sempre foi a revolta. Primeiro, declarou-se em rebeldia contra o Estado — tornando-se um dos mais importantes comandantes das extintas FARC — e depois voltou-se contra esse grupo guerrilheiro, sendo o primeiro a abandonar o Processo de Paz e formar sua própria quadrilha de dissidentes.
Desconfiado, esquivo e com boa capacidade de controle de rotas, Gentil Duarte tornou-se um dos homens mais procurados pelo governo colombiano, antes de sua desmobilização e após seu retorno às armas.
Segundo a Insight Crime, sob sua coordenação, os dissidentes de Duarte e Néstor Gregorio Vera Fernández, vulgo “Iván Mordisco” expandiram-se rapidamente por todo o país, consolidando suas ações em pelo menos 17 departamentos e três países: Colômbia, Venezuela e Equador.
Após deixar as negociações do Acordo de Paz em meados de 2016, Duarte se juntou aos ex-integrantes da Primeira e Sétima Frentes e continuou com a luta armada e negócios de tráfico de drogas, extorsão, mineração e sequestro, entre outros.
Santillana nasceu há 58 anos em Florencia, Caquetá, e na década de 1980 foi recrutado pelas FARC aos 14 anos. Por esse grupo militou nos departamentos de Caquetá, Putumayo, Guaviare, Meta, Guainía, Vichada e Arauca e tornou-se comandante da Sétima Frente e membro do Estado-Maior do Bloco Oriental da narcoguerrilha.
Atualmente os homens sob o comando de Duarte lutam contra a Segunda Marquetalia, liderada por "Iván Márquez"; e contra o ELN e o Clan del Golfo.
De fato, as autoridades culparam a dissidência de Duarte por provocar a onda de violência que atingiu Arauca no início deste ano.
Em meio a essa guerra cruzada entre as estruturas criminosas e a Força Pública, Duarte é acusado de assassinar soldados e lideranças sociais e de controlar cerca de 6.500 hectares de cocaína em Meta, Guaviare e Caquetá. Ele teria sido cruel até contra seus ex-companheiros de luta, já que lhe são atribuídos os assassinatos de 14 signatários da paz que se recusaram a pegar em armas e se juntar às suas fileiras.
As autoridades estão trabalhando para confirmar as mortes de Gentil Duarte — por quem a Casa de Nariño ofereceu até 3.000 milhões de pesos — e John Mecha, que é outro dos comandantes mais importantes dos dissidentes.
Este último aderiu às guerrilhas das FARC em 1996 e decidiu não aderir ao processo de paz de 2016. Além dos crimes de extorsão, tráfico de drogas e recrutamento forçado, Mechas também é acusado do ataque a um CAI policial em Ciudad Bolívar, onde duas crianças morreram; pelo ataque ao presidente Iván Duque em Cúcuta; e pelo assassinato de dois jovens de 12 e 18 anos em Tibú, Norte de Santander, em outubro de 2021.
Espera-se que o comando das estruturas que agora teriam ficado sem líder seja assumido por Iván Mordisco, um experiente ex-guerrilheiro das FARC com mais de 32 anos de experiência criminosa e um temperamento forte que o tornou famoso como "a mais radical" das dissidências.

Dissidentes se escondem na Venezuela
Os assassinatos de líderes em território venezuelano já não são mais algo estranho. Com a suposta morte de Gentil Duarte seriam quatro dissidentes de alto escalão das FARC que morreram do outro lado da fronteira em menos de dois anos. De fato, o governo colombiano insinuou que a presidência de Nicolás Maduro está abrigando grupos como o Clã del Golfo, o ELN e dissidentes para se esconder das autoridades colombianas. Após o boato da morte de Jhon Mechas e Duarte, o ministro da Defesa, Diego Molano, voltou a atacar aquele regime, assegurando que esta é mais uma prova, se esse fato se confirme, de que o regime de Nicolás Maduro protege grupos terroristas e traficantes de drogas em seu solo e não os combate.

Os que mataram Duarte
Apesar de vários grupos se movimentarem ao longo da fronteira, incluindo gangues que se vendem ao melhor lance e até supostas milícias norte-americanas, a verdade é que o poder é distribuído entre três grandes grupos: A Segunda Marquetalia — que tem mais poder pelo nome do que pelo homens armados, como diz Rosanía —, a Frente de Guerra Oriental, do ELN, e os então dissidentes de Gentil Duarte e Javier Alfonso Velosa García, vulgo Jhon Mechas.
Depois de dois anos brigando entre si para dominar rotas, fornecedores e mercado, Gentil Duarte começou a se aproximar, como antigamente, de seu antigo parceiro de insurgências Iván Márquez, um homem que não havia conseguido alianças porque pretendia continuar com a estrutura dos comandantes das FARC em um ambiente que só visava o dinheiro e o tráfico de drogas e que não estava disposto a se subordinar novamente.
Ao saber dessa traição, o também dissidente, Iván Mordisco, teria traçado um plano para assassinar Duarte e impedir o fortalecimento da Segunda Marquetalia.
Esta hipótese foi confirmada no terreno com membros dos grupos armados e habitantes do setor onde se concentram os dissidentes.
Mas assassinar Duarte não foi uma tarefa fácil. Aparentemente, os dissidentes de John Mechas e da 10ª Frente, comandada por Arturo, teriam conspirado para armar uma armadilha para ele do outro lado da fronteira e assassiná-lo enquanto dormia, como de fato aconteceu.
Por enquanto, os grupos de inteligência contra o crime organizado estão tentando verificar se as mortes de Gentil Duarte e Jhon Mechas realmente aconteceram, e se a nova reestruturação vai gerar retaliação que afete a população civil.
Rei morto, rei posto:  sai Gentil Duarte e chega Iván Mordisco
Enquanto isso, Iván Mordisco é o líder natural daquelas subestruturas que antes estavam sob o comando de Duarte e Mechas, que se caracterizavam por atrair dissidências com comandos regionais independentes.
De fato, Néstor Rosanía analisa que essa estrutura descentralizada de poder permitirá que as coisas não mudem muito, embora dependa das represálias que a Segunda Marquetalia possa tomar.
Fonte: tradução livre de El Colombiano
ATUALIZAÇÃO EM 7 JUL 22: Aparentemente está em andamento uma limpeza na estrutura de mando das antigas FARC. Mais um "capo" do bando está sem sinal de vida, e outros três parecem estar em maus lençóis no território venezuelano. Ainda não se sabe se a iniciativa é de quadrilhas rivais, ou se do governo de Nicolás Maduro, em uma tentativa de "queima de arquivos", que anteceda uma negociação de retorno da Venezuela à uma vida diplomática normal.
https://www.eltiempo.com/unidad-investigativa/ivan-marquez-los-audios-que-confirmarian-su-muerte-en-venezuela-684710

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Procurador de Justiça Paraguaio Assassinado na Colômbia

Dois cidadãos do Líbano e um do Brasil são suspeitos de envolvimento no assassinato de um Fiscal (Procurador) paraguaio em Barú.
As autoridades colombianas deram a conhecer as mais recentes hipóteses sobre o assassinato do Fiscal (Procurador) paraguaio Marcelo Pecci, que foi morto por pistoleiros enquanto estava em sua lua de mel na ilha de Barú, no dia 10 de maio passado, em Cartagena.
Em uma corrida contra o relógio para avançar na investigação do assassinato, e sob a premissa do diretor da Polícia Nacional da Colômbia, General Jorge Vargas, de que as primeiras 72 horas são cruciais para esclarecer qualquer homicídio, as autoridades da Colômbia, Estados Unidos e Paraguai puseram o foco sobre três nomes: Kassed Mohamad Hijazi, Nader Mohamad Farhat e Mahmoud Alí Barakat.
As suspeitas recaem sobre esses três personagens — o primeiro de origem brasileira com ascendência libanesa, e os dois últimos identificados com nacionalidade do Líbano — porque foram capturados devido às investigações de Pecci que os vinculava com o negocio das drogas no mundo. Os capturados foram extraditados para os EUA, pois eram buscados pelas cortes da Florida e Nova York que os acusavam por narcotráfico e lavagem de dinheiro. Nader Mohamad Farhat e Mahmoud Alí Barakat também foram acusados, de pertencer ao grupo terrorista Hezbollah, e após a investigação procedida por Pecci, por dois anos, as autoridades paraguaias estabeleceram que eram contatos para negociar drogas dos cartéis com tentáculos na Bolívia, Brasil, Paraguay e Argentina.
O diretor da Polícia Nacional, General Jorge Luis Vargas, detalhou que por trás desse crime — repulsado pelos governos de Colômbia e Paraguai —, estaria um grupo terrorista internacional que desejava matar o reconhecido fiscal antimáfia de 45 anos.
Nesse sentido, se soube que agencias federais adiantam investigações para determinar se a ordem para assassinar Pecci veio do grupo extremista Hezbollah.
Por outro lado, se soube que poderia tratar-se de uma retaliação por pelo menos 25 capturas em “A Ultranza Py”, uma operação lançada no passado mês de fevereiro pela Secretaria Antidrogas do Paraguai (SENAD), com apoio do DEA e Europol, contra uma extensa rede criminosa que exporta droga para os EUA e Europa, além de camuflar os ganhos com a aquisição de múltiplos bens e propriedades.
Também se menciona que por trás do assassinato pode estar o Primeiro Comando da Capital, do Brasil, cartel que tem o Paraguai como sede alternativa e que havia recebido golpes de Pecci e de outros fiscais paraguaios.
Marcelo Pecci não tinha seguranças no momento de seu assassinato e, segundo sua esposa, Claudia Aguilera, não sofria ameaças.
FOTO: Cortesia
Outra declaração a respeito, que tem sido questionada, foi feita pela deputada paraguaia Jazmín Narváez, que afirmou que Pecci havia viajado sem escoltas a Colômbia, mesmo tendo em conta ter investigado narcotraficantes desse país que também possuem nacionalidade colombiana.
Ele se considerou com liberdade suficiente de ir passear na Colômbia, tendo sido o fiscal que, por exemplo, conseguiu a condenação de nada mais, nada menos, que dois narcotraficantes que tinham nacionalidade colombiana. Poderíamos dizer vulgarmente que bobeou”, disse Narváez.
O comandante da Polícia do Paraguay, Gilberto Fleitas, asseverou em uma entrevista coletiva que não se pode descartar esses dois nomes e destacou que “se presume que em função de alguma das causas que conduzia, algum estrangeiro condenado no país poderia ser a causa do crime, mas isso com o tempo unicamente vamos esclarecer”.
O General Vargas, diretor da Polícia da Colômbia, apoiou a hipótese de seu homólogo paraguaio e asseverou que o assassinato do fiscal Pecci na ilha de Barú, em Cartagena, pode ser “pelas grandes operações que levou a cabo”.

As pesquisas na Colômbia
Mas, assim como no Paraguai puseram o foco sobre os cidadãos estrangeiros, na Colômbia as investigações se dirigem, inicialmente, sobre os autores materiais do homicídio.
As primeiras pesquisas dos investigadores da Fiscalía e da DIJIN apontam as características físicas de um dos homicidas: “Temos dados do possível autor, de 1,74m altura, de tez triguenha, com sotaque caribenho que poderia ser caribe colombiano ou outro país”, informou Vargas.
Nas primeiras jornadas, os investigadores centraram seus esforços em entrevistar pessoas que presenciaram o homicídio e outras que estiveram relacionadas indiretamente, como os que atenderam os sicários na empresa onde alugaram as motos aquáticas para cumprir a ordem de assassinato.
Por meio de um vídeo buscam identificar dois sujeitos que chegaram ao local turístico e pagaram 200.000 para 30 minutos da moto aquática. Um deles usava um traje preto de mergulho e uma bermuda negra, um chapéu e óculos; o outro suspeito vestia uma camiseta branca, um colete salva-vidas, um boné e óculos de sol.
Também, no hotel onde que se hospedavam o fiscal Marcelo Pecci e sua esposa, Claudia Aguilera, foram detidas duas cidadãs jovens de nacionalidade paraguaia, por investigadores da Fiscalía colombiana, para estabelecer o que faziam no mesmo hotel onde se hospedava o casal celebrando sua lua de mel.
Elas saíram do mesmo hotel onde se hospedavam Pecci e Aguilera, uma hora depois de ocorridos os fatos. Iam rumo ao aeroporto para viajar ao Paraguay, mas os fiscais, em função da investigação, as retiveram para fazer algumas perguntas, algo lógico no processo”, relatou um fiscal paraguaio.
Entre as outras ações para dar com os homicidas, o General Vargas especificou que se desencadeou um plano de controle nas estradas do departamento e um pedido ao serviço de Migração Colombiana para que cerre as fronteiras por tratar-se de um crime relacionado com operações contra os carteis transnacionais de drogas.

Antes de sua viagem de lua de mel a Cartagena, Pecci havia se preparado para o julgamento oral do brasileiro Waldemar Pereira, vulgo 'Cachorrão', suposto membro da poderosa organização criminosa Primeiro Comando Capital (PCC), acusado do crime de um jornalista em 12 de fevereiro de 2020.
Horas após a morte de Pecci, a polícia invadiu a cela de "Cachorrão" e do brasileiro-libanês Kassem Mohamad Higazi, um extraditável para os Estados Unidos que o promotor também investigou.
Desse calibre são os casos que este filho de um ex-magistrado e uma ex-aeromoça paraguaia realizou ao longo de sua carreira. De fato, alguns dos criminosos já extraditados estariam relacionados à determinação de seu assassinato.

¿Que se segue? A esposa de Pecci está segura.
A jornalista Claudia Aguilera, viúva do fiscal paraguaio Marcelo Pecci, assassinado em Barú, Cartagena, retornou em 12 de maio a seu país.
Ela contava com um esquema de proteção em Cartagena, para evitar algum outro ataque. Estava acompanhada por sua irmã Mónica, que viajou desde o Paraguay no mesmo avião presidencial em que chegou a delegação paraguaia na madrugada do dia 11 de maio, para adiantar as investigações conjuntas com a Colômbia. A vice-presidente Marta Lucía Ramírez viajou ao Paraguai para reunir-se com o presidente daquele país e dialogar sobre o homicídio do fiscal.
Fonte: tradução livre de El Colombiano

quinta-feira, 5 de maio de 2022

A Face Oculta da Revolução Francesa

por Jean Marc Bastière
Le Figaro Magazine *
Da perseguição religiosa aos tribunais do Terror; da guerra civil à destruição das obras de arte, "O Livro Negro da Revolução Francesarevela o que os manuais escolares nos ocultam
Como o tempo passa! Faz praticamente vinte [agora, 33] anos que celebramos o bicentenário da Revolução Francesa. Tomando como referência o ano de 1789, seria como se já estivéssemos na época do Império. Embora o nome de Napoleão esteja presente nas livrarias, o homem do 18 Brumário já não é celebrado oficialmente [1]. Em certo sentido, porém, o Consulado e o Império também integram o grande ciclo inaugurado em 1789. Agora, vem à luz um "O Livro Negro da Revolução Francesa". Sem dúvida, um acontecimento de porte! Trata-se de um alentado volume, com 882 páginas, que ajuda a refrescar a memória.
Em 1989, a Revolução deixara de ser a personificação daquela mulher petulante e fogosa — Marianne — à qual o mundo inteiro não ousava resistir. A Revolução bolchevista já havia projetado as suas sombras sobre Marianne, empalidecendo-lhe os atrativos. É certo que, com o brilhante desfile de 14 de julho, o publicitário Jean-Paul Gaude tentou insuflar-lhe novo alento. Contudo, nesse mesmo ano (1989), a derrubada do Muro de Berlim desferiu um decisivo golpe no sonho de um "porvir revolucionário". Hoje, a única mulher jovem que pretende encarnar a ideia de Revolução usa véu e é islâmica! [2]
Foi, sobretudo, nos últimos vinte anos que uma re-interpretação radical, feita por certos historiadores, comprometeu seriamente a reputação dessa antiga glória. A partir da década de 60 (do século XX), François Furet, um homem de esquerda que aderira ao liberalismo, abriu um rombo no catecismo revolucionário de Soboul e dos historiadores marxistas. Pouco antes das celebrações do Bicentenário, e como um ponto final após longa análise, ele chegou à conclusão — em seu Dicionário Crítico da Revolução Francesa, publicado em 1988 — de que o processo revolucionário, em nome da "soberania indivisível", já trazia em seu bojo os germes do Terror. A bem dizer, não sendo a Revolução aquele “bloco indivisível”, como intentara fazer crer Clemenceau aos correligionários da Terceira República, também a fase sangrenta [o Terror] já não poderia ser vista como mero “desvio” no conjunto do processo. [3]
No elenco de autores que contribuíram para "O Livro Negro da Revolução Francesa", encontram-se numerosos historiadores de renome que, nas últimas décadas, tomaram parte ativa na “desconstrução” da mitologia revolucionária. Mencionemos alguns: Pierre Chaunu, Jean-Christian Petitfils, Jean de Viguerie, Jean Tulard ou Emmanuel Le Roy Ladurie. Nesse rol, excelentes escritores, assim como Reynald Secher, Jean Sévillia, Jean des Cars ou Frédéric Rouvillois. Embora de valor desigual, tais estudos são sérios, caracterizando-se pela erudição e largueza de horizontes.
Não só a nobreza foi guilhotinada,
80% eram pessoas do povo!
A primeira parte do "Livro Negro da Revolução Francesa" discorre sobre os episódios históricos. São discutidos os mais diversos temas, entre os quais, soberania popular, iconografia, legado do Terror, 14 de Julho, divisa "Liberdade, Igualdade, Fraternidade", vandalismo, perseguição religiosa ou o papel de Saint-Just — figura que, ainda hoje, atrai certa gama de fascistas. [4]
Desde o princípio, a Revolução suscitou intenso debate, com um grau de repercussão que se prolongou durante várias gerações. Daí provém o interesse da segunda parte da obra, análise inteiramente inédita, que versa sobre o impacto dessa crise sobre as mentalidades. Não só autores contra-revolucionários são estudados. Constam da relação: Joseph de Maîstre, Rivarol, Malesherbes, Chateaubriand, Balzac, Baudelaire, Augustin Cochin, Maurras, Bainville, Péguy, Nietzsche, Hannah Arendt.
O gênio literário ou filosófico encontrou na Revolução Francesa um tema-padrão para a formulação de uma crítica radical da modernidade. A terceira parte — final da obra — apresenta uma antologia de textos inéditos ou menos conhecidos.

O vandalismo revolucionário
Escreve Alexandre Gady: “Não há termos para exprimir a comoção de quem vê a escultura da “Virgem com o Menino”, do século XIII, sendo destruída a marteladas. Não há vocabulário que faça sentir o impacto de presenciar uma catedral medieval dinamitada e reduzida a escombros...”.
No "Livro Negro", esse professor da Sorbonne analisa o vandalismo revolucionário. Não há igreja, castelo ou cidade que não ostente tal estigma. Juntamente com os objetos e monumentos religiosos, as destruições mais sistemáticas se voltaram contra as efígies reais. Com exceção de uma estátua em pé de Luís XIV, de Coysevox, poupada por milagre (ela se encontra no Museu Carnavalet), não foi preservada nenhuma das estátuas eqüestres ou pedestres que ornamentavam os palácios reais e os edifícios públicos. Foram todas derrubadas, despedaçadas, espalhadas, pulverizadas...
Setembro de 1792: foram massacradas 1400 pessoas em Paris. 
Enquanto elaboravam as Declarações de Direitos Humanos ... matavam.
Destruam a Vandéia!
Destruam a Vandéia!” (Barrère, julho de 1793); “A Vandéia deverá ser um cemitério nacional” (Turreau); “Serão todos exterminados” (Carrier); “Essa é uma gente maldita” (Lequinio). De fato, a população vandeana foi objeto de um inaudito empenho de extermínio. Prisões, campos de prisioneiros a céu aberto e barcos-prisões afundados tornaram-se leitos mortuários. No afã de acelerar os processos, recorria-se à guilhotina, aos fuzilamentos em massa e aos afogamentos. Mulheres e meninos não escaparam à carnificina. Os próprios revolucionários relataram as piores atrocidades. Do total de uma população calculada em 815.000 pessoas, a incursão republicana na Vandéia matou 117.000 habitantes — decorrência de uma “chacina populacional” cujos métodos inspirariam, no século XX, figuras como Lenine e Pol Pot.
A ambição do "Livro Negro" não é denegrir a Revolução Francesa, mas apenas deixar que os fatos falem por si. São atrocidades pavorosas. Do ponto de vista humano, financeiro, econômico ou internacional, o balanço é bem triste. Contudo, como acentua Pierre Chaunu, computadas as perdas do ponto de vista de talentos e capacidades criativas, os resultados desastrosos foram, proporcionalmente, ainda muito mais altos para a França. Enquanto potência, o país debilitou-se irreversivelmente. [5]
A editora católica Le Cerf, que goza de grande penetração nos meios universitários, acha-se na origem desse projeto, sendo que o responsável pela publicação é Renaud Escande, religioso dominicano. Eis aí dois pontos que merecem registro. Ao que parece, a esfera eclesiástica está-se desprendendo de certos tabus, ou da inibição de ventilar certos temas.
No afã de acelerar os processos,
recorria-se à guilhotina, aos
fuzilamentos em massa e aos
afogamentos. Mulheres e meninos
 não escaparam à carnificina.
Sem dúvida, à Igreja Católica coube oneroso tributo: a perseguição anti-religiosa, na Revolução Francesa, foi de uma extrema crueldade. Nela pereceram oito mil sacerdotes, religiosos, religiosas, e muitos milhares de leigos. Um dos aspectos interessantes do livro é propriamente fazer uma clareação a respeito do problema espiritual (aliás, uma obra vinda a lume recentemente é intitulada “As Origens Religiosas da Revolução Francesa”). Outro sinal característico da evolução das mentalidades: um artigo do filósofo Michaël Bar-Zvi, com uma visão bastante crítica sobre a natureza ambígua da Revolução Francesa em face dos judeus.
O Livro Negro da Revolução Francesa é como que um desdobramento ou eco de outra obra de grande repercussão, anos atrás. Trata-se do Livro Negro do Comunismo. Vale notar que Stéphane Courtois, coordenador do trabalho sobre o comunismo, também contribui para este novo estudo com um brilhante artigo acerca da Revolução Francesa enquanto “inspiradora da Revolução de Outubro”. Como O Livro Negro da Revolução Francesa foi calcado no Livro Negro do Comunismo, é fácil compreender porque o descrédito do comunismo e a sua posterior derrocada concorreram para difundir a desconfiança e as interrogações sobre a Revolução Francesa. É daí que procede a crise moral e intelectual da esquerda francesa, que está num beco sem saída. [6]
Na França, a Revolução tem assento num espaço da memória nacional, mas de uma maneira hoje bem edulcorada. [...] Com efeito, de um lado, a abolição dos privilégios, a proclamação dos direitos do homem e do cidadão (reafirmados e complementados principalmente pelas resoluções da ONU, em 1945) são pilares essenciais de nossa República. Todavia, de outro, a fase do Terror, freqüentemente na penumbra, suscita certo mal-estar. Nossa Revolução, ao longo de tanto tempo tida como a fonte inspiradora do Universo, na verdade, teria sido apenas uma exceção nacional. Isso porque os demais países, em particular os anglo-saxões, tornaram-se promotores dos mesmos valores democráticos sem o grande derramamento de sangue de que nós, franceses, nos tornamos responsáveis. A reforma e o progresso social podem ser efetivados sem que a perspectiva de futuros radiosos degenere em alvoradas sangrentas. Ao contrário da política de tábua rasa, é o nosso legado histórico, em toda a sua profundidade e complexidade, que precisamos saber avaliar.

NOTAS DO TRADUTOR:
[1] Em 18 Brumário, 09 Nov 1799 no calendário gregoriano, Napoleão Bonaparte derrubou o governo do Diretório e instituiu o Consulado.
[2] Marianne é figura alegórica que personifica os ideais da Revolução Francesa encarnados na República Francesa. Delacroix pintou Marianne como a “Liberdade guiando o povo”, empunhando a bandeira tricolor no campo de batalha, os seios com liberdade à mostra. Hoje não há mais sinais de vitalidade revolucionária republicana na França: passou da Marianne para certas manifestações de adeptos do islamismo ou grupos afins, que incendeiam automóveis e semeiam o caos na periferia das cidades francesas.
[3] François Furet, partidário da corrente “revisionista” da revolucionária francesa, afirmou, às vésperas do bicentenário, que o processo revolucionário trazia em si os germes do Terror. Em outras palavras, o período do Terror não teria sido tão-só um episódio marginal, já que toda a Revolução Francesa ficou impregnada pela violência cruel e ferocidade sangrenta.
[4] Há, em nossos dias, toda espécie de condescendência e cegueira diante da crescente disseminação de tiranetes, mais ou menos ferozes, mais ou menos histriônicos. Haja vista a espalhafatosa presença, no cenário internacional, de certos caudilhos latino-americanos: Chaves, Morales, Corrêa, indubitavelmente inspirados no verdugo-mor que é Fidel Castro e o seu regime. Analogamente, é o que acontece com relação aos régulos ou chefetes de muitas infelizes nações africanas. Não espanta, pois, que, nesse contexto, as memórias de muitos terroristas dos últimos séculos, mesmo dentre os mais sanguinários e monstruosos, encontrem guarida, admiração e sejam até objeto de “culto” em diversos círculos étnicos e sociais. Assim, é o caso de Stalin, em certas zonas da Rússia, de Mao-tsé-Tung na China, como também de Robespierre e Saint-Just, em certos meios político-sociais francófonos.
[5] Essa lúcida afirmação de Pierre Chaunu colide frontalmente com tudo aquilo que os manuais de História, em voga há décadas nas escolas brasileiras, sempre proclamaram quase como dogma de fé — a saber, as indestrutíveis “conquistas” e “glórias” da Revolução Francesa. Para Chaunu, num cotejo imparcial, foi a Revolução que acarretou para a França o início de seu declínio como grande potência no concerto das nações.
[6] A Revolução Francesa é a matriz inspiradora da revolução comunista. O descrédito da segunda repercute sobre a primeira. Se as duas revoluções estão em crise irreversível, a alternativa lógica consistiria em aderir à Contra-Revolução. O desfecho lógico do artigo, portanto, conduziria o leitor a essa direção. Contudo, o articulista Jean Marc Bastière não é contra-revolucionário. É revolucionário moderado. Seu coração não está com os Danton e os Marat sanguinários, mas comunga com os moderados girondinos, companheiros de Madame Roland. Por isto a conclusão do artigo, no último parágrafo, não conduzirá a uma efetiva tomada de atitude contra-revolucionária. O legado que intenta preservar é de matiz girondino: mescla o passado contra-revolucionário com o "futuro radioso" revolucionário. Ora, de fato, uma vez feito o balanço dos últimos duzentos anos, verifica-se que a faceta vitoriosa da Revolução foi moderada e não radical. A face oculta da Revolução Francesa — pelo seu radicalismo sanguinolento — não é bem vista pelos revolucionários moderados de hoje. Não nos iludamos, porém. Assim como os seus predecessores, também estes são "companheiros de viagem" da Revolução radical, consolidando assim, a seu modo, as suas “conquistas” passadas, obtidas no decurso do período sangrento.
*******
* Publicado no Le Figaro Magazine
de 09 Fev 08, pp. 70-71.
 Tradução: André F. Falleiro Garcia.
COMENTO: nem comento, transcrevo a publicação de Roberto Motta no Facebook.
Já que a França está no noticiário, deixa eu te contar uma história que você acha que conhece, de um jeito totalmente novo.
A Revolução Francesa começou em 1789 e durou dez anos. Foi a revolução da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.
Então.
Os franceses derrubaram uma monarquia, fundaram uma república e  em nome da liberdade — mataram milhares de pessoas. Foi preciso até inventar um instrumento para facilitar as execuções: a guilhotina.
E depois de toda a matança, acabaram em uma ditadura, comandada por um imperador: Napoleão.
Napoleão envolveria toda a Europa em guerras sangrentas e ficaria no poder até 1815, quando a monarquia foi restaurada na França. Tanta matança, e no final volta o Rei.
Passa o tempo.
Em 1830  40 anos após o fim da Revolução Francesa  explode a Revolução de Julho, que derruba o rei Carlos X, da dinastia Bourbon, e o substitui por seu primo Louis Philippe, da Casa de Orléans. Foi uma “revolução” para trocar de rei.
Em fevereiro de 1848 outra revolução: cai Louis Philippe e começa a Segunda República na França.
Logo depois o povo de Paris se rebela contra o governo que acabara de ser eleito. Foi mais uma rebelião sangrenta, desta vez sem sucesso.
Em dezembro do mesmo ano Louis Napoleão Bonaparte  sobrinho de Napoleão — é eleito presidente.
Apenas três anos depois de sua eleição Louis Napoleão suspende a assembleia e se proclama o Imperador Napoleão III.
Tanta revolução, tanto sangue, tantos mortos, e a França acaba sob outro imperador.
Em 1870 a França perde uma guerra contra a Prússia e Napoleão III é capturado. Paris é sitiada pelo exército prussiano e bombardeada até se render.
Cai o Segundo Império e começa a Terceira República.
Mesmo depois de tanto sangue e de tanta guerra, um governo socialista radical toma o controle de Paris e governa de março a maio de 1871. Foi a chamada “comuna” de Paris.
Foi mais uma “revolução” para empilhar cadáveres nas ruas e jogar cidadãos contra cidadãos.
A Guarda Nacional enfrentou o exército francês nas ruas da cidade.
A comuna de Paris, com todo o seu sangue e violência inútil, serviu de inspiração para radicais de todo o mundo  incluindo um certo Vladimir Lenin.
Todos as mortes nas revoluções francesas, somados, não significariam nada diante dos milhões de homens, mulheres e crianças que ainda iriam morrer massacrados pela Revolução Russa, poucos anos depois.
Matar é prática antiga da humanidade. Mas matar em nome da liberdade, igualdade e fraternidade é uma invenção ideológica moderna, criada na França, aperfeiçoada na Rússia e praticada com afinco na China, na Coréia do Norte, em Cuba, no Laos, no Camboja e em tantas outras ditaduras socialistas e comunistas.
À exceção da Revolução Gloriosa na Inglaterra e da Revolução Americana nos EUA, todas as outras revoluções significaram apenas exercícios sangrentos de mudança de poder.
Foi sempre a mesma retórica idealista e violenta que jogou grupos da sociedade em conflitos fratricidas, dos quais nenhum deles saiu vencedor.
O vencedor é, sempre, um rei, um imperador ou um ditador.