quinta-feira, 5 de maio de 2022

A Face Oculta da Revolução Francesa

por Jean Marc Bastière
Le Figaro Magazine *
Da perseguição religiosa aos tribunais do Terror; da guerra civil à destruição das obras de arte, "O Livro Negro da Revolução Francesarevela o que os manuais escolares nos ocultam
Como o tempo passa! Faz praticamente vinte [agora, 33] anos que celebramos o bicentenário da Revolução Francesa. Tomando como referência o ano de 1789, seria como se já estivéssemos na época do Império. Embora o nome de Napoleão esteja presente nas livrarias, o homem do 18 Brumário já não é celebrado oficialmente [1]. Em certo sentido, porém, o Consulado e o Império também integram o grande ciclo inaugurado em 1789. Agora, vem à luz um "O Livro Negro da Revolução Francesa". Sem dúvida, um acontecimento de porte! Trata-se de um alentado volume, com 882 páginas, que ajuda a refrescar a memória.
Em 1989, a Revolução deixara de ser a personificação daquela mulher petulante e fogosa — Marianne — à qual o mundo inteiro não ousava resistir. A Revolução bolchevista já havia projetado as suas sombras sobre Marianne, empalidecendo-lhe os atrativos. É certo que, com o brilhante desfile de 14 de julho, o publicitário Jean-Paul Gaude tentou insuflar-lhe novo alento. Contudo, nesse mesmo ano (1989), a derrubada do Muro de Berlim desferiu um decisivo golpe no sonho de um "porvir revolucionário". Hoje, a única mulher jovem que pretende encarnar a ideia de Revolução usa véu e é islâmica! [2]
Foi, sobretudo, nos últimos vinte anos que uma re-interpretação radical, feita por certos historiadores, comprometeu seriamente a reputação dessa antiga glória. A partir da década de 60 (do século XX), François Furet, um homem de esquerda que aderira ao liberalismo, abriu um rombo no catecismo revolucionário de Soboul e dos historiadores marxistas. Pouco antes das celebrações do Bicentenário, e como um ponto final após longa análise, ele chegou à conclusão — em seu Dicionário Crítico da Revolução Francesa, publicado em 1988 — de que o processo revolucionário, em nome da "soberania indivisível", já trazia em seu bojo os germes do Terror. A bem dizer, não sendo a Revolução aquele “bloco indivisível”, como intentara fazer crer Clemenceau aos correligionários da Terceira República, também a fase sangrenta [o Terror] já não poderia ser vista como mero “desvio” no conjunto do processo. [3]
No elenco de autores que contribuíram para "O Livro Negro da Revolução Francesa", encontram-se numerosos historiadores de renome que, nas últimas décadas, tomaram parte ativa na “desconstrução” da mitologia revolucionária. Mencionemos alguns: Pierre Chaunu, Jean-Christian Petitfils, Jean de Viguerie, Jean Tulard ou Emmanuel Le Roy Ladurie. Nesse rol, excelentes escritores, assim como Reynald Secher, Jean Sévillia, Jean des Cars ou Frédéric Rouvillois. Embora de valor desigual, tais estudos são sérios, caracterizando-se pela erudição e largueza de horizontes.
Não só a nobreza foi guilhotinada,
80% eram pessoas do povo!
A primeira parte do "Livro Negro da Revolução Francesa" discorre sobre os episódios históricos. São discutidos os mais diversos temas, entre os quais, soberania popular, iconografia, legado do Terror, 14 de Julho, divisa "Liberdade, Igualdade, Fraternidade", vandalismo, perseguição religiosa ou o papel de Saint-Just — figura que, ainda hoje, atrai certa gama de fascistas. [4]
Desde o princípio, a Revolução suscitou intenso debate, com um grau de repercussão que se prolongou durante várias gerações. Daí provém o interesse da segunda parte da obra, análise inteiramente inédita, que versa sobre o impacto dessa crise sobre as mentalidades. Não só autores contra-revolucionários são estudados. Constam da relação: Joseph de Maîstre, Rivarol, Malesherbes, Chateaubriand, Balzac, Baudelaire, Augustin Cochin, Maurras, Bainville, Péguy, Nietzsche, Hannah Arendt.
O gênio literário ou filosófico encontrou na Revolução Francesa um tema-padrão para a formulação de uma crítica radical da modernidade. A terceira parte — final da obra — apresenta uma antologia de textos inéditos ou menos conhecidos.

O vandalismo revolucionário
Escreve Alexandre Gady: “Não há termos para exprimir a comoção de quem vê a escultura da “Virgem com o Menino”, do século XIII, sendo destruída a marteladas. Não há vocabulário que faça sentir o impacto de presenciar uma catedral medieval dinamitada e reduzida a escombros...”.
No "Livro Negro", esse professor da Sorbonne analisa o vandalismo revolucionário. Não há igreja, castelo ou cidade que não ostente tal estigma. Juntamente com os objetos e monumentos religiosos, as destruições mais sistemáticas se voltaram contra as efígies reais. Com exceção de uma estátua em pé de Luís XIV, de Coysevox, poupada por milagre (ela se encontra no Museu Carnavalet), não foi preservada nenhuma das estátuas eqüestres ou pedestres que ornamentavam os palácios reais e os edifícios públicos. Foram todas derrubadas, despedaçadas, espalhadas, pulverizadas...
Setembro de 1792: foram massacradas 1400 pessoas em Paris. 
Enquanto elaboravam as Declarações de Direitos Humanos ... matavam.
Destruam a Vandéia!
Destruam a Vandéia!” (Barrère, julho de 1793); “A Vandéia deverá ser um cemitério nacional” (Turreau); “Serão todos exterminados” (Carrier); “Essa é uma gente maldita” (Lequinio). De fato, a população vandeana foi objeto de um inaudito empenho de extermínio. Prisões, campos de prisioneiros a céu aberto e barcos-prisões afundados tornaram-se leitos mortuários. No afã de acelerar os processos, recorria-se à guilhotina, aos fuzilamentos em massa e aos afogamentos. Mulheres e meninos não escaparam à carnificina. Os próprios revolucionários relataram as piores atrocidades. Do total de uma população calculada em 815.000 pessoas, a incursão republicana na Vandéia matou 117.000 habitantes — decorrência de uma “chacina populacional” cujos métodos inspirariam, no século XX, figuras como Lenine e Pol Pot.
A ambição do "Livro Negro" não é denegrir a Revolução Francesa, mas apenas deixar que os fatos falem por si. São atrocidades pavorosas. Do ponto de vista humano, financeiro, econômico ou internacional, o balanço é bem triste. Contudo, como acentua Pierre Chaunu, computadas as perdas do ponto de vista de talentos e capacidades criativas, os resultados desastrosos foram, proporcionalmente, ainda muito mais altos para a França. Enquanto potência, o país debilitou-se irreversivelmente. [5]
A editora católica Le Cerf, que goza de grande penetração nos meios universitários, acha-se na origem desse projeto, sendo que o responsável pela publicação é Renaud Escande, religioso dominicano. Eis aí dois pontos que merecem registro. Ao que parece, a esfera eclesiástica está-se desprendendo de certos tabus, ou da inibição de ventilar certos temas.
No afã de acelerar os processos,
recorria-se à guilhotina, aos
fuzilamentos em massa e aos
afogamentos. Mulheres e meninos
 não escaparam à carnificina.
Sem dúvida, à Igreja Católica coube oneroso tributo: a perseguição anti-religiosa, na Revolução Francesa, foi de uma extrema crueldade. Nela pereceram oito mil sacerdotes, religiosos, religiosas, e muitos milhares de leigos. Um dos aspectos interessantes do livro é propriamente fazer uma clareação a respeito do problema espiritual (aliás, uma obra vinda a lume recentemente é intitulada “As Origens Religiosas da Revolução Francesa”). Outro sinal característico da evolução das mentalidades: um artigo do filósofo Michaël Bar-Zvi, com uma visão bastante crítica sobre a natureza ambígua da Revolução Francesa em face dos judeus.
O Livro Negro da Revolução Francesa é como que um desdobramento ou eco de outra obra de grande repercussão, anos atrás. Trata-se do Livro Negro do Comunismo. Vale notar que Stéphane Courtois, coordenador do trabalho sobre o comunismo, também contribui para este novo estudo com um brilhante artigo acerca da Revolução Francesa enquanto “inspiradora da Revolução de Outubro”. Como O Livro Negro da Revolução Francesa foi calcado no Livro Negro do Comunismo, é fácil compreender porque o descrédito do comunismo e a sua posterior derrocada concorreram para difundir a desconfiança e as interrogações sobre a Revolução Francesa. É daí que procede a crise moral e intelectual da esquerda francesa, que está num beco sem saída. [6]
Na França, a Revolução tem assento num espaço da memória nacional, mas de uma maneira hoje bem edulcorada. [...] Com efeito, de um lado, a abolição dos privilégios, a proclamação dos direitos do homem e do cidadão (reafirmados e complementados principalmente pelas resoluções da ONU, em 1945) são pilares essenciais de nossa República. Todavia, de outro, a fase do Terror, freqüentemente na penumbra, suscita certo mal-estar. Nossa Revolução, ao longo de tanto tempo tida como a fonte inspiradora do Universo, na verdade, teria sido apenas uma exceção nacional. Isso porque os demais países, em particular os anglo-saxões, tornaram-se promotores dos mesmos valores democráticos sem o grande derramamento de sangue de que nós, franceses, nos tornamos responsáveis. A reforma e o progresso social podem ser efetivados sem que a perspectiva de futuros radiosos degenere em alvoradas sangrentas. Ao contrário da política de tábua rasa, é o nosso legado histórico, em toda a sua profundidade e complexidade, que precisamos saber avaliar.

NOTAS DO TRADUTOR:
[1] Em 18 Brumário, 09 Nov 1799 no calendário gregoriano, Napoleão Bonaparte derrubou o governo do Diretório e instituiu o Consulado.
[2] Marianne é figura alegórica que personifica os ideais da Revolução Francesa encarnados na República Francesa. Delacroix pintou Marianne como a “Liberdade guiando o povo”, empunhando a bandeira tricolor no campo de batalha, os seios com liberdade à mostra. Hoje não há mais sinais de vitalidade revolucionária republicana na França: passou da Marianne para certas manifestações de adeptos do islamismo ou grupos afins, que incendeiam automóveis e semeiam o caos na periferia das cidades francesas.
[3] François Furet, partidário da corrente “revisionista” da revolucionária francesa, afirmou, às vésperas do bicentenário, que o processo revolucionário trazia em si os germes do Terror. Em outras palavras, o período do Terror não teria sido tão-só um episódio marginal, já que toda a Revolução Francesa ficou impregnada pela violência cruel e ferocidade sangrenta.
[4] Há, em nossos dias, toda espécie de condescendência e cegueira diante da crescente disseminação de tiranetes, mais ou menos ferozes, mais ou menos histriônicos. Haja vista a espalhafatosa presença, no cenário internacional, de certos caudilhos latino-americanos: Chaves, Morales, Corrêa, indubitavelmente inspirados no verdugo-mor que é Fidel Castro e o seu regime. Analogamente, é o que acontece com relação aos régulos ou chefetes de muitas infelizes nações africanas. Não espanta, pois, que, nesse contexto, as memórias de muitos terroristas dos últimos séculos, mesmo dentre os mais sanguinários e monstruosos, encontrem guarida, admiração e sejam até objeto de “culto” em diversos círculos étnicos e sociais. Assim, é o caso de Stalin, em certas zonas da Rússia, de Mao-tsé-Tung na China, como também de Robespierre e Saint-Just, em certos meios político-sociais francófonos.
[5] Essa lúcida afirmação de Pierre Chaunu colide frontalmente com tudo aquilo que os manuais de História, em voga há décadas nas escolas brasileiras, sempre proclamaram quase como dogma de fé — a saber, as indestrutíveis “conquistas” e “glórias” da Revolução Francesa. Para Chaunu, num cotejo imparcial, foi a Revolução que acarretou para a França o início de seu declínio como grande potência no concerto das nações.
[6] A Revolução Francesa é a matriz inspiradora da revolução comunista. O descrédito da segunda repercute sobre a primeira. Se as duas revoluções estão em crise irreversível, a alternativa lógica consistiria em aderir à Contra-Revolução. O desfecho lógico do artigo, portanto, conduziria o leitor a essa direção. Contudo, o articulista Jean Marc Bastière não é contra-revolucionário. É revolucionário moderado. Seu coração não está com os Danton e os Marat sanguinários, mas comunga com os moderados girondinos, companheiros de Madame Roland. Por isto a conclusão do artigo, no último parágrafo, não conduzirá a uma efetiva tomada de atitude contra-revolucionária. O legado que intenta preservar é de matiz girondino: mescla o passado contra-revolucionário com o "futuro radioso" revolucionário. Ora, de fato, uma vez feito o balanço dos últimos duzentos anos, verifica-se que a faceta vitoriosa da Revolução foi moderada e não radical. A face oculta da Revolução Francesa — pelo seu radicalismo sanguinolento — não é bem vista pelos revolucionários moderados de hoje. Não nos iludamos, porém. Assim como os seus predecessores, também estes são "companheiros de viagem" da Revolução radical, consolidando assim, a seu modo, as suas “conquistas” passadas, obtidas no decurso do período sangrento.
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* Publicado no Le Figaro Magazine
de 09 Fev 08, pp. 70-71.
 Tradução: André F. Falleiro Garcia.
COMENTO: nem comento, transcrevo a publicação de Roberto Motta no Facebook.
Já que a França está no noticiário, deixa eu te contar uma história que você acha que conhece, de um jeito totalmente novo.
A Revolução Francesa começou em 1789 e durou dez anos. Foi a revolução da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.
Então.
Os franceses derrubaram uma monarquia, fundaram uma república e  em nome da liberdade — mataram milhares de pessoas. Foi preciso até inventar um instrumento para facilitar as execuções: a guilhotina.
E depois de toda a matança, acabaram em uma ditadura, comandada por um imperador: Napoleão.
Napoleão envolveria toda a Europa em guerras sangrentas e ficaria no poder até 1815, quando a monarquia foi restaurada na França. Tanta matança, e no final volta o Rei.
Passa o tempo.
Em 1830  40 anos após o fim da Revolução Francesa  explode a Revolução de Julho, que derruba o rei Carlos X, da dinastia Bourbon, e o substitui por seu primo Louis Philippe, da Casa de Orléans. Foi uma “revolução” para trocar de rei.
Em fevereiro de 1848 outra revolução: cai Louis Philippe e começa a Segunda República na França.
Logo depois o povo de Paris se rebela contra o governo que acabara de ser eleito. Foi mais uma rebelião sangrenta, desta vez sem sucesso.
Em dezembro do mesmo ano Louis Napoleão Bonaparte  sobrinho de Napoleão — é eleito presidente.
Apenas três anos depois de sua eleição Louis Napoleão suspende a assembleia e se proclama o Imperador Napoleão III.
Tanta revolução, tanto sangue, tantos mortos, e a França acaba sob outro imperador.
Em 1870 a França perde uma guerra contra a Prússia e Napoleão III é capturado. Paris é sitiada pelo exército prussiano e bombardeada até se render.
Cai o Segundo Império e começa a Terceira República.
Mesmo depois de tanto sangue e de tanta guerra, um governo socialista radical toma o controle de Paris e governa de março a maio de 1871. Foi a chamada “comuna” de Paris.
Foi mais uma “revolução” para empilhar cadáveres nas ruas e jogar cidadãos contra cidadãos.
A Guarda Nacional enfrentou o exército francês nas ruas da cidade.
A comuna de Paris, com todo o seu sangue e violência inútil, serviu de inspiração para radicais de todo o mundo  incluindo um certo Vladimir Lenin.
Todos as mortes nas revoluções francesas, somados, não significariam nada diante dos milhões de homens, mulheres e crianças que ainda iriam morrer massacrados pela Revolução Russa, poucos anos depois.
Matar é prática antiga da humanidade. Mas matar em nome da liberdade, igualdade e fraternidade é uma invenção ideológica moderna, criada na França, aperfeiçoada na Rússia e praticada com afinco na China, na Coréia do Norte, em Cuba, no Laos, no Camboja e em tantas outras ditaduras socialistas e comunistas.
À exceção da Revolução Gloriosa na Inglaterra e da Revolução Americana nos EUA, todas as outras revoluções significaram apenas exercícios sangrentos de mudança de poder.
Foi sempre a mesma retórica idealista e violenta que jogou grupos da sociedade em conflitos fratricidas, dos quais nenhum deles saiu vencedor.
O vencedor é, sempre, um rei, um imperador ou um ditador.

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