quarta-feira, 31 de maio de 2023

Revelações de um ex-Espião Cubano

Capa
por Ernesto Neto
Em recente viagem à Europa [2010], numa livraria em Toulon na França, me deparei com um livro que dificilmente será traduzido e lançado no Brasil: "El Magnífico - 20 Ans au Service Secret de Castro", de Juan Vivés, Éditions Hugo et Compagnie, lançado em agosto de 2005.
Juan Vivés, cujo nome verdadeiro era Andrès Alfaya Torrado, foi um dissidente cubano que residiu na França e durante 20 anos pertenceu ao serviço secreto de Fidel Castro. Adolescente ainda, foi para guerrilha na Serra de Escambray combater o regime de Batista e posteriormente fez parte da coluna guerrilheira de Che Guevara. Com a revolução vitoriosa, foi indicado e aceitou fazer parte do temível G2, onde, até 1979, esteve presente em quase todas as atividades de espionagem, guerrilheiras e militares em que Fidel fez o pequeno país caribenho participar. O que torna a sua figura ainda mais proeminente é o fato de ser sobrinho de Osvaldo Dorticós "presidente fantoche de Cuba até 1976" e grande amigo de Célia Sanchez que, segundo ele, juntamente com Raul eram as únicas pessoas que o patético tirano barbudo ainda ouvia.
Contracapa
São 17 capítulos que abrangem desde os motivos que levaram sua família — ricos proprietários de terras — à guerrilha contra Batista até o seu exílio na França, passando por vários outros acontecimentos contados por um ângulo que a esquerda sempre escondeu: a difícil convivência com Che, os primeiros dias depois da vitória, os fuzilamentos à revelia, o assassinato de Camilo Cienfuegos, a invasão da Baía dos Porcos, a crise dos mísseis soviéticos, as primeiras missões na África (Argélia), a morte de Che Guevara, o interrogatório dos prisioneiros americanos do Vietnã em Cuba, o assassinato de Salvador Allende por determinação de Fidel, as missões em Angola (Operação Carlota) e no Saara Espanhol, etc.
No meio de cada assunto, Juan Vivés conta casos que denotam o aspecto mau caráter de Fidel — colérico e com suas alegorias fantasiosas e megalomaníacas — e o prazer sádico que Guevara tinha pelos fuzilamentos e assassinatos: só na Fortaleza de La Cabaña ele comandou 600 sessões. O autor deixa bem claro que todos que se colocaram na frente de Fidel, ameaçando o seu prestígio como Líder Máximo da Revolução, foram misteriosamente "silenciados", sejam por inexplicáveis acidentes como o de Camilo Cienfuegos, sejam por falsas promessas de ajuda como o próprio Che, quando se encontrava na Bolívia.
Certamente os dois capítulos que mais chamam a atenção do leitor são o XI, onde o ex-espião revela um dos segredos mais bem guardados do comunismo cubano: o interrogatório de soldados americanos em Cuba durante a Guerra do Vietnã, e o XV sobre o assassinato de Allende. Por dominar o idioma inglês fluentemente, Vivés foi chamado à traduzir os interrogatórios dos prisioneiros americanos no Vietnã, devido a falta de pessoal capacitado para fazê-lo no pobre país asiático. Ele recusou a missão, afinal era sobrinho do "presidente" e amigo de Célia Sanchez; mesmo assim lhe entregaram dois textos de interrogatórios para que ele os traduzisse. No início ele tinha dúvidas se os prisioneiros estavam ou não em Cuba, mas posteriormente o seu próprio tio (o Presidente) lhe teria dito que havia prisioneiros americanos em território cubano. O que ele nunca soube foi o que fizeram com estes infelizes soldados. Provavelmente foram mortos. O assassinato de Allende por Patrício de la Guardia (seu próprio segurança e que pertencia ao serviço secreto cubano) já não é novidade depois do lançamento do livro Cuba Nostra de Alain Ammar (Ed. Plon, lançado em 2005) com o testemunho do próprio Juan Vivés. Segundo o autor, depois de financiar a campanha de Allende para as eleições chilenas de 1970, Fidel exigia uma postura mais ativa e radical do Presidente chileno em prol da revolução e das mudanças mais abruptas na sociedade. Com as dúvidas, os vacilos e os receios de Allende, que Fidel achava um fraco, não restou outra opção a Castro senão ordenar o seu assassinato. Em consonância com esta versão há dois fatos: a saída dos agentes cubanos do Palácio de La Moneda sem um arranhão sequer e o corpo de Allende não apresentar evidências de suicídio.
A intromissão de Cuba na questão do Saara Espanhol toma uma certa importância no mundo atual, já que Fidel praticamente criou e fomentou o Front Polisario (Frente Popular Para a Libertação de Saguia el Hamra e Rio do Ouro) que posteriormente se islamizou e hoje possui centenas de integrantes do grupo terrorista Al-Quaeda, fugidos da invasão americana do Afeganistão. Com isto, segundo Vivés, Fidel e Che desenvolveram os dois mais antigos grupos terroristas armados do planeta: o próprio Front Polisario/Al-Quaeda e o ETA. Este último apoiado e financiado por Fidel, ainda em Caracas, na Venezuela, logo no início da Revolução depois das relações entre Cuba e o governo espanhol se tornarem tensas.
O ex-espião ainda conta como a mídia internacional, artistas e escritores do mundo inteiro apoiaram (e apoiam!) o cruel regime castrista, disseminando mentiras a respeito do país e da revolução. Desde as falsas conquistas sociais devidas a Fidel até a glorificação das ditas vitórias épicas obtidas pelo Exército Cubano nas guerras africanas. Gabriel García Marques, por exemplo, ganhou uma mansão no bairro de Siboney em Havana, por ter escrito láureas a favor de Cuba em seu livro Operação Carlota, nome da operação militar cubana em Angola, onde o famoso escritor tenta justificar o injustificável. Segundo ele, uma das mentiras políticas mais bem remuneradas de toda a América Latina. O grande problema para estes intelectuais seria, depois da queda do regime, a devolução desses imóveis aos seus verdadeiros donos que se encontram no exílio.
Durante esta mesma operação militar em Angola é quando começa a se desenrolar a questão do tráfico de drogas envolvendo os irmãos Castro. Juan Vivés escreve que as tropas cubanas trocavam diamante e marfim (abundantes na África) pela heroína por intermédio da máfia de Hong Kong. Daí a droga era enviada a Havana em transportes militares cubanos e posteriormente era transportada para o Panamá, onde agentes cubanos da DGI negociavam com traficantes internacionais. O responsável por esta operação era o General Arnaldo Ochoa, que acabou sendo fuzilado por Fidel juntamente com outros participantes, em um processo digno da época estalinista, no intuito de limpar de todas estas implicações o seu regime. Vivés ainda menciona as relações com o tráfico de cocaína entre Raúl Castro, Daniel Ortega (da Nicarágua) e Pablo Escobar.
Lendo o livro, imaginamos como um pequeno país caribenho, certamente com o sacrifício extremo de seu povo, foi capaz de enviar tropas e missões de espionagem para várias partes do mundo. Já na metade da década de 60, o exército cubano possuía 500.000 homens, um pouco menos de 10% de sua população na época. Em sua louca aventura em Angola, em 15 anos de conflito, Fidel utilizou 300.000 homens. Fora os contingentes em outras regiões. Quantos jovens cubanos morreram, salvando a pele de russos, em nome de um regime que apenas escravizou e empobreceu o seu próprio povo?
No final de seu "avant-propos" (prefácio), Juan Vivés afirma não ser nenhum intelectual desiludido, nem um dissidente com ambições pessoais, apenas um homem sedento de liberdade que rejeita uma tirania egocêntrica fantasiada de revolução.
e      AR News

Livro de Espião Cubano Mostra Padres da Teologia da Libertação a Serviço de Fidel Castro
por Irapuan Costa Junior
Juan Vivés garante que
Raúl Castro (no
detalhe), é homossexual
Leio um livro que você, caro leitor, nunca lerá: El Magnífico - 20 Ans au Service Secret de Castro” (Éditions Hugo et Compagnie, Paris, 2005). O autor é Juan Vivés, cujo nome verdadeiro era Andrès Alfaya Torrado, casado com Annie Clavel, francesa, e que viveu em Marselha, de 1979, ano em que fugiu de Cuba para não ser morto até sua morte em 22 de fevereiro de 2014. Tive notícia deste livro por um amigo de Portugal e tentei comprá-lo em duas livrarias francesas onde o encontrei. As duas responderam que não podiam enviá-lo para o Brasil, sem maiores explicações. O gramcismo anda assim tão poderoso por aqui, a ponto de exercer essa censura toda (que, aliás, já conhecemos) e fazê-la chegar aos “companheiros” franceses? Mistério. O fato é que só consegui comprá-lo em um sebo francês.
O autor é um cubano oriundo da alta aristocracia espanhola, que se juntou à rebeldia de Fidel Castro, desempenhou algumas ações revolucionárias de repercussão (que lhe valeram, ainda durante a guerrilha, o cognome de El Magnífico, que é o título do livro), e serviu sob as ordens de Che Guevara. É um livro repetitivo em alguns aspectos: fala, com conhecimento — o autor foi testemunha — das atrocidades de Che Guevara, de sua incompetência administrativa e de como era inimigo de um bom banho. De como Fidel sempre foi uma figura performática, capaz de tirar proveito público de qualquer situação, em Cuba e no exterior. Mas traz notícias novas e fatos interessantes, a partir de como Vivés, apolítico, resolveu combater o ditador Batista e se aliar a Fidel Castro. O motivador foi, diz ele, Benvenutto Cellini (1500-1571), o célebre escultor italiano.
A família de Vivés tinha algumas obras de arte raras, trazidas da Europa, entre elas um Cristo de marfim, belíssimo, esculpido por Cellini. A mulher de Batista tentou forçar a compra da escultura, o que ofendeu o pai de Vivés, e acabou por criar uma inimizade que terminou em retaliação por parte do ditador. Entre as revelações do livro a de que o regime de Fulgencio Batista estava se decompondo quando o Granma desembarcou Fidel e seus guerrilheiros em Cuba. Isto fez com que os revolucionários conquistassem os quartéis do Exército praticamente sem combate. Os soldados, como praticamente toda a população cubana, ansiavam por mudanças. Não suportavam mais a corrupção (que desviava seus suprimentos), e os baixos soldos, enquanto os membros do governo roubavam e faziam fortuna. Não houve, ao contrário do alarde feito por Fidel, combates de verdade. A revolução foi quase um passeio.
Vivés era sobrinho de Osvaldo Dorticós, presidente cubano indicado por Fidel, que, embora figura decorativa tinha sua importância. Era também parente de Celia Sanchez, segunda figura do regime comunista da ilha, depois de Fidel. Era, segundo os íntimos do poder, a única pessoa a contrariar Fidel Castro e a discutir com ele, quando discordava. Vitoriosa a revolução, Vivés foi designado para importantes funções, sob disfarce diplomático, todas elas ligadas ao serviço secreto cubano. Delas, o autor esconde mais que mostra, e alega fazê-lo para se resguardar, pois, caso não o fizesse, já teria sido eliminado. O que o salva, diz, são documentos secretíssimos depositados em um banco suíço, e que serão publicados caso seja assassinado.
Salvador Allende pode
ter sido executado por
ordem de Fidel Castro
Entre as mais interessantes passagens dessa biografia está a de que o autor foi encarregado, em Cuba, de instruir padres da Teologia da Libertação para trabalharem pelo regime castrista, e passar segredos, obtidos por confissão de fiéis importantes, para os dossiês da inteligência cubana. Como os padres brasileiros desse grupo não saíam de Cuba, é bem provável que fossem dos mais entusiasmados fornecedores de informações para os homens de Vivés. Os figurões que se confessaram com Leonardo Boff e Frei Betto devem pôr as barbas de molho.
Outro episódio estranho contado no livro é o de soldados e pilotos americanos aprisionados na guerra do Vietnã terem sido drogados e levados para Cuba onde foram interrogados e provavelmente mortos, sem que ninguém soubesse nos EUA. Vivés conta que ele próprio, que falava inglês correntemente, traduziu depoimentos desses pobres coitados. Também a homossexualidade de Raúl Castro é abordada no livro.
Outra revelação importante é sobre a morte do chileno Salvador Allende, em 1973. Como se sabe, todo o corpo de guarda-costas de Allende era constituído de cubanos experimentados. Os principais eram os gêmeos, Patrício e Tony de La Guardia. Com a derrubada e morte de Allende, esses cubanos retornaram a Cuba e foram tratados como heróis por Fidel. Vivés não compreendia como tinham saído com vida do Palácio de La Moneda, até que Patrício, num encontro no bar do hotel Habana Libre, já alto, contou-lhe que, por ordem de Fidel, executara Allende que queria se asilar na embaixada sueca. Fidel queria criar (e conseguiu) um mito de Allende resistindo até a morte. Morto Allende, os cubanos conseguiram abandonar o palácio antes do assalto final de Pinochet. Aliás, Pinochet só chefiou o exército chileno por indicação de Fidel, que o julgava com tendências comunistas. Vivés havia sido seu cicerone e interlocutor quando visitou Cuba.
COMENTO: apesar do interesse que o tal livro possa despertar no público (ainda) leitor, parece que seu destino é o mesmo do muito falado mas pouco conhecido "Combate nas Trevas", de Jacob Gorender (1923-2013), editado em 1987 e raríssimo atualmente, só sendo encontrado em sebos e a preços altos. "El Magnífico - 20 Ans au Service Secret de Castro" não é encontrado em idioma diferente do francês, em que foi publicado originalmente, nem mesmo em língua espanhola, e seus exemplares à venda, custam preços desproporcionais, por sua raridade. Acredito que seria um bom negócio algum editor adquirir os direitos e publicar uma versão do livro de Andrès Alfaya Torrado no Brasil.
Dados sobre Juan Vivés e sua descendência:
"(240ii) ... Andrés Alfaya Torrado nascido em Havana em 4 de Junho de 1945 casou duas vezes: a primeira em Havana em dezembro de 1968 com Dania de la Concepción Frías y Sanz nascida a 21 de julho de 1947 filha de Mario Frías e Eugenia Salvadora Sanz Garrote. Tiveram por filha a Lisette Alfaya Frías. 
Andrés Alfaya Torrado e sua segunda mulher Annie Clavel nascida na França tiveram por filhos a Cecilia, Sofía e Alexander Emmanuel Alfaya Clavel. 
Lisette Alfaya Frías nascida em Havana a 9 de janeiro de 1969 casou a 21 de novembro de 1990 em Habana com Cesar López-Muro Suárez nascido a 27 de janeiro de 1967, filho de Fernando López-Muro Moreno e Martha Suárez Esquivel. Tuvieron por filho a Andrés Augusto López-Muro Alfaya y Frías nascido em Londres a 31 de julho de 1995."

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Cavalo de Troia

Na epiderme, a defesa da liberdade. Abaixo, a tutela.
por Fernando Schüler 
Na incrível fábrica brasileira de explicações simples para problemas complicados, escutamos de tudo. Há quem tenha culpado os jogos eletrônicos pela violência nas escolas. De um ministro escutei que a culpa era da “liberação das armas”, diante da monstruosidade feita com uma machadinha, em Blumenau. Em um grupo de WhatsApp, alguém foi taxativo: “A culpa é do Bolsonaro”. Imagino que em outros o culpado tenha sido o Lula. E de uma outra autoridade li que aquilo teria algo a ver com o “golpismo do 8 de Janeiro”.
Na cacofonia brasileira, cada um vai espalhando suas impressões. A favorita da vez é a de que as redes sociais têm culpa no cartório. Seja pelo 8 de Janeiro, seja pela violência, seja por tudo de ruim que anda por aí. E que, como é próprio da tradição brasileira, precisamos de mais uma lei para “pôr ordem em toda essa bagunça”.
É sobre isso o debate em torno da Lei das Fake News. O Estado, como se tornou comum por aqui, resolveu regular a discussão. E o fez à moda brasileira: empresas de comunicação, com óbvios interesses no projeto, podem fazer editoriais e emitir sua opinião favorável ao projeto. Empresas com visão contrária, negativo. São intimadas a depor, a retirar sua opinião, e se tornam “suspeitas” de uma penca de crimes. Não deixa de ser didático. Nos ajuda a pensar um pouco sobre o que está em jogo.
Os defensores da lei dizem que é preciso regular. É preciso mudar os termos no Marco Civil da Internet, uma antiga lei da época em que se imaginava a internet como um espaço aberto, e determinar que as plataformas devem “atuar diligentemente” para “prevenir e mitigar” toda a sorte de crimes, inclusive aqueles de natureza política, como os “crimes contra as instituições democráticas”. Uma plataforma terá de decidir o que entra ou não na conta de uma “grave ameaça” ao estado democrático de direito. E, se não acertar, será responsabilizada.
As plataformas igualmente terão de monitorar as redes para identificar se há alguma suspeita de crime atual ou que “possa ocorrer no futuro”. Se não o fizer, e não comunicar às autoridades, também podem ser responsabilizadas. Por fim, a lei dá amplos poderes ao Comitê Gestor da Internet para fixar “diretrizes” para os códigos de conduta das redes, e igualmente depois para “validar” a sua redação. O Comitê terá poderes para “limitar a distribuição massiva de conteúdos e mídias”, pelas empresas de mensagens, como o WhatsApp, e deve fazer uma “conferência anual” para discutir todos esses assuntos. Este último item demonstra a displicência com que fazemos leis no Brasil.
Alguém poderia se perguntar por que cargas-d’água o contribuinte brasileiro precisa pagar, ano após ano, uma conferência anual para discutir qualquer coisa referente à liberdade e à regulação da internet. Não há resposta. Apenas uma lei feita no embalo do ativismo e da fúria reguladora que há alguns anos tomou conta do país.
O Comitê Gestor existe desde os anos 1990, sempre teve atribuições essencialmente técnicas. Se aprovada a lei, a conversa será outra. Ele passa a propor coisas como “diretrizes estratégicas para a liberdade na internet”. Dirá, por exemplo, para quantas pessoas você e eu poderemos mandar uma mensagem, no WhatsApp, e dirá o que as plataformas deverão admitir ou banir. Não é pouca coisa. Podemos até fazer de conta que vivemos todos em uma grande reunião de escoteiros e que não há problema algum em delegar essas coisas a uma instância de poder qualquer.
Quando Madison e os fundadores dos Estados Unidos desenharam o Bill of Rights, na Constituição americana, era exatamente para que uma coisa dessas não acontecesse. Que o Congresso “não faria leis” restringindo um direito que, na sua visão, pertencia às pessoas, aos cidadãos, e não ao Estado. Isso não quer dizer que eles estavam certos. Eles apenas escolheram um caminho, diferente do qual parecemos adentrar, no Brasil.
As guerras culturais da democracia atual fizeram com que muita gente trocasse a defesa da liberdade de expressão por outros tipos de prioridade. O “combate às fake news” e aos “discursos de ódio” é exemplo óbvio. Nada disso é novo, muito menos a pergunta xarope que vem logo depois: quem teria o poder para definir essas coisas? Quem definirá o que significa um “risco sistêmico ao estado democrático de direito”, conforme se lê, insistentemente, no projeto? Alguém poderia dizer que tudo isso é autoevidente.
O PCO que o diga. Foi banido por “atacar” o STF, ou coisa do tipo. Daria uma tese de doutorado analisar tudo que foi incluído na conta de “ameaça ao estado de direito” no Brasil dos últimos anos. Do famoso tuíte do professor Marcos Cintra “ponderando” sobre as urnas eletrônicas a um dedo médio apontado para o edifício do STF. O atual projeto criminaliza a divulgação de “fato que (alguém) sabe inverídico” sobre o processo eleitoral. Ou um fato “passível de sanção criminal”. É duro ter de perguntar, pela enésima vez, o que é exatamente uma informação “verídica”?
Dar uma opinião contrária ao sistema eleitoral ainda será permitido? Alguém assumirá a possibilidade de cair na malha do “risco sistêmico” ou da “grave ameaça”? As plataformas assumirão o risco? Os cidadãos? Ou estamos (quase) todos alegres em viver numa democracia pautada pelo medo? Suspeito que sim. E talvez seja exatamente aí que resida o problema.
O que estamos discutindo, na verdade, é uma lei vaga, com uma redação displicente, que aprofunda um pouco mais nossa democracia de tutela. É democracia dos tipos penais abertos, da censura prévia, dos banimentos de jornalistas, das decisões “de ofício”, sem contraditório, sem devido processo legal, essas coisas que sempre nos soam tão bem quando atingem o “lado de lá” do jogo político.
De uma legislação técnica e bem-feita, que é o Marco Civil da Internet, arriscamos migrar para uma regulação com forte componente político. No eterno pêndulo liberdade versus segurança, parecemos fazer uma opção. O que esquecemos é que tanto a liberdade como a segurança têm lá seus riscos. A liberdade traz o risco de que inverdades sejam ditas; a segurança, o risco de que apenas certos tipos de inverdade possam ser ditos. E não acho que precisamos ir longe para saber disso, no Brasil atual.
Alguém me definiu o projeto todo como um cavalo de Troia. Nos preâmbulos, palavras amenas sobre a “liberdade”. “Garantir a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, o fomento à diversidade.” Logo adiante, quando a lei passa aos comandos objetivos, a liberdade desaparece. Surgem aí o comitê, os códigos, as remoções e punições. É a lógica de decisões recentes sobre a censura, no Brasil de hoje. Na epiderme, a defesa da liberdade; um pouco abaixo, a tutela. Não é bom caminho. Mas reconheço que ele é perfeitamente adequado à nossa tradição. “Somos latinos, não anglo-saxões”, como me disse uma irritada interlocutora, tempos atrás, em um debate. Na hora, brinquei que não sabia se aquilo era uma crítica ou elogio. Mas no fundo acho que todos sabemos.
Fernando Schüler é cientista político
 e professor do Insper 

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Chama o Sherlock, pessoal!


por Percival Puggina
A majestática frieza que caracteriza a Esplanada dos Ministérios e os prédios da Praça dos Três Poderes nunca me empolgou, seja como arquiteto, seja como cidadão. Os ministérios me sugerem peças de dominó alinhadas para caírem em cascata, embora, na vida real, sejam moeda política preciosa na tesouraria do governante. Os três poderes, na minha concepção, são um erro porque deveriam ser quatro. Como consequência nunca nos faltaram na história da República usurpadores para esse quarto poder — o indispensável Poder Moderador — cuja carência é causa de muitas das nossas crises. Mas isso é assunto para outro artigo.
Vamos ao mais recente mistério brasiliense, que está a cobrar vaga para um Sherlock Holmes na CPMI da Censura. O que me inquieta não é o fato que vi causar grande contrariedade entre alguns protagonistas deste momento político. Não me interessa saber quem vazou os vídeos tomados no interior do Palácio do Planalto. O importante é terem chegado ao conhecimento público. O que me suscita enorme curiosidade é o motivo para tantas horas de gravação terem sido postas sob sigilo por quem diz que nunca os assistiu antes de aparecerem na tela da tevê.
Chama o Sherlock, pessoal!
Também me intriga que os processos referentes aos envolvidos naqueles atos tenham seguido curso antes de serem tais imagens devidamente estudadas e se incorporarem ao conjunto probatório encaminhado à PGR e ao STF. Quando isso acontece, por falta de tempo, conforme tem sido dito, a autoridade encarregada pede a prorrogação do prazo. Vídeos tomados por dezenas de câmeras de vigilância instalados em cena de crime não se empacotam para serem assistidos quando der tempo. Mesmo assim, as peças acusatórias foram dadas por prontas e encaminhadas pela PGR ao STF.
Chama o Sherlock, pessoal!
Perante o mistério e na falta do Sherlock, minha intuição me leva a crer que tenha sido a pressa, também neste caso, a grande inimiga da perfeição (ou amiga da imperfeição). Isso combina bem com algo que tem sido para lá de frequente em nosso ambiente político e judiciário. O exemplo mais recente foi a votação do pedido de urgência para votar a projeto da Lei Brasileira da Censura pelo plenário da Câmara. A urgência foi aprovada na correria, atropelando a sensatez, e com menos de uma dúzia de parlamentares conhecendo o conteúdo daquilo a que concediam tanta urgência. Era para engolir tudo enrolado, mesmo! De afogadilho, sem tempo para serem advertidos sobre o que estavam aprovando.
No caso dos eventos do dia 8 de janeiro, minha intuição me diz que o urgente era tornar réus os recolhidos no magote de prisões feitas na frente do QG do Exército. E aí me socorro do ministro Gilmar Mendes quando verberava sua indignação, em reuniões do pleno do STF, contra o que chamava “condenações em cambulhada” que ocorriam em Curitiba como consequência das investigações, confissões e delações da Lava Jato.
Agora, quem se desagradou com o juízo de Curitiba declara réus cidadãos indiciados em pacotes de cem e de duzentos! A pressa é inimiga da perfeição. Na dúvida, chama o Sherlock, pessoal.