sábado, 15 de julho de 2023

O Bom Soldado

pelo Ten Cel Av Ref Flávio C. Kauffmann
Bom Soldado,
A obediência, manifestação explícita da disciplina e base fundamental das Forças Armadas, não pode ser cega, irrefletida e irresistente. Ela precisa acordar-se com o acatamento dos valores basilares que a legitimam. Caso contrário, corre o risco de desvirtuar-se, transformando-se em subserviência, ou seja, em simples submissão de uma pessoa à vontade de outra”.
(Cel R1/EB  Marcelo Oliveira Lopes Serrano)
O soldado que assassina o rei é um traidor, não é? Nem sempre. Se o rei está louco e pretende queimar a cidade inteira, traição maior à Pátria seria não o fazer.
Respondendo à pergunta metafórica de um jovem amigo, essa foi a conclusão que cheguei sobre o personagem Jaime Lannister, da série Game of Thrones, uma série de enorme sucesso em “streaming” TV, recentemente. 
No Brasil moderno, “o Regicida”, teria problemas em descumprir a ordem real de “queimar todos”, pois se a desobediência hierárquica quando a ordem é manifestamente ilegal é, à luz do direito civil, fator excludente de culpabilidade; isto não se aplica no caso militar. Nesse caso, de acordo com o Código Penal Militar, a obediência deve ser absoluta, nunca relativa. Manda quem pode e obedece quem tem juízo! Que forças poderiam então contrabalançar tamanho poder de um comandante, no caso de uma ordem inconstitucional?
O aviador escritor Saint Exupéry começa a responder à questão quando sentencia que: a autoridade repousa na razão
Quer ser obedecido? Dê ordens razoáveis. Mas o que seria a razoabilidade numa ordem? Qual a razoabilidade em comandar cargas de Infantaria, morro acima, contra um inimigo entrincheirado e mais bem armado, como fizeram os comandantes italianos na frente alpina em 1916, provocando a morte de mais de 500.000 soldados? Ou na decisão de Leônidas, de “combater até a morte” nas Termópilas, contando com 300 bravos, contra um inimigo que “escurecia o céu com a quantidade de suas flechas”? A resposta é que as ordens acima, cuja racionalidade poderia ser facilmente questionada, cumpriam razões da Pátria, e que, como tal, se sobrepõem às de ordem pessoal.
No entanto, se não há limite para a extensão de uma ordem, que pode então requerer, até mesmo, o sacrifício da própria vida, há, por outro lado, claros limites no que se refere à sua razoabilidade. Na maior parte das vezes, não há o que raciocinar, já que comandante e comandado, por formação, deverão estar, sempre, ambos, alinhados com os interesses da Constituição e da Pátria. Mas o que fazer em caso de dúvida? E como identificar se as razões do comando se coadunam com as da Pátria, e não apenas com as que atendem, exclusivamente, ao projeto político de algum grupo que, temporariamente, detém o poder? Essa dúvida assaltava a mente dos oficiais do 2º/10º GAv, o SAR, na Base Aérea de Cumbica, quando, ao estourar a Revolução de 31 de março de 1964, o comandante do Esquadrão se declarou a favor do governo comunista de Jango Goulart. Na mesma tarde, frente ao mesmo dilema, estavam os oficiais da Base Aérea de Santa Cruz, pois o Comandante da Base já vinha se declarando, havia um bom tempo, favorável ao projeto comunista de Jango e Francisco Julião. 
Cumprir a ordem do governador Leonel Brizola, de que os sargentos matassem seus oficiais, como eu mesmo, ainda garoto, ouvi no rádio de pilha? Ou romper com a “legalidade” e prender os comandantes comunistas, fazendo valer a vontade da maioria da Sociedade? 
Bem, nesses casos, que se configuram num dilema enunciado por Samuel Huntington, deve-se buscar apoio na ética e nos valores morais, que representam a expressão dos valores castrenses intangíveis. Aquele mesmo conjunto de valores, que são desenvolvidos no início da carreira, que tornam o militar um ser de consciência moral e que devem acompanhá-lo durante todo o decorrer de sua vida. 
Explico. Sendo a hierarquia e a disciplina os dois pilares básicos em que se apoiam as FFAA, uma decorrência lógica é o fato de que, entre dois militares, seja sempre possível afirmar a existência de uma distinção hierárquica entre eles. Um deles é superior ao outro. A disciplina é que produz, em ambos, o acatamento dessa condição. Um comanda e o outro é comandado. E mesmo o que é comandado, também exerce o comando, em seu nível, sobre outros comandados. Fazendo uma extrapolação, o comandante dos comandantes máximos é o Governo, um órgão transitório de administração eleito pela maioria, que deve estar a serviço do Estado, agente político que representa a Sociedade territorialmente estabelecida e politicamente organizada. 
O problema passa a ocorrer quando os interesses desse Governo, estiverem em desalinho com os interesses do Estado ou da Sociedade (Pátria). E, nessa condição, a herança cultural, a ética e os valores morais, filtrados pelo pensamento crítico, podem ser os únicos parâmetros válidos para medir a razoabilidade de uma ordem. Parece sopa de letras, não é? Pois aí vão dois “cases”, como gostam os mais acadêmicos, sobre o papel das Forças Armadas. 
Mas, por favor, não esperem respostas prontas, pois os casos são contemporâneos e, como tal, dinâmicos. 
A Venezuela, quando lá estive como cadete, em 1975, competindo num Festival Olímpico, estava incluída entre os países mais ricos e culturalmente mais avançados da América Latina.
A partir da ascensão de Hugo Chaves e a implantação de uma ditadura socialista, posteriormente respaldada pelas urnas (num processo sob intensa suspeição), a elite intelectual e econômica nacional se transferiu, quase toda, para a América do Norte. A partir daí a compra da maioria de eleitores, nas camadas mais simples da população, passou a ser feita, progressivamente, através de programas sociais de distribuição de renda.
O absenteísmo inicial da cúpula das Forças Armadas, frente ao dilema moral que se apresentava, foi imediatamente sobrepujado por um processo de renovação dos rankings, nunca antes ocorrido. Como resultado, em pouco tempo, jovens oficiais, cooptados pelos socialistas, já ocupavam os principais postos de comando. 
O credo comunista, inspirado por Cuba, professado por um judiciário ativista, permitiu um sem-número de mudanças na constituição, que deram ao bolivarianismo um enorme poder sobre o Estado. Como em toda experiência comunista, hoje a Venezuela, que conta com imensas reservas de petróleo, vive o desabastecimento e a miséria econômica. Seus meios de comunicação estão amordaçados e mesmo o jornalismo internacional livre, sofre constante perseguição do governo. A cultura nacional foi toda comprada a favor do socialismo.
Iniciando com um programa de importação de médicos cubanos, o país conta hoje com mais de 60.000 “consultores” cubanos remunerados, comandando diversas instituições. Entre elas as forças armadas. Além de uma bem-equipada Guarda Nacional, os cubanos montaram grupos civis armados, os chamados “coletivos”, que só atendem ao comando dos próprios chefes cubanos. Esses grupos, conforme fartamente documentado em vídeos na internet, têm atirado nos manifestantes com munição real, pasmem, juntamente com as tropas do exército venezuelano. Não há mais qualquer dilema entre os soldados venezuelanos. Eles foram vencidos e hoje, apenas, servem a seus tiranos... 
Por aqui, nos governos de esquerda: foram assaltados os cofres públicos; o congresso vem sendo comprado com emendas parlamentares; as instituições sofrem aparelhamento; foi criada uma Guarda Nacional; a política externa foi desvirtuada; os eleitores pobres foram comprados com Bolsa Família; foi instituída a racialização da sociedade e a identidade de gênero; eliminada a meritocracia; oficializada a corrupção; liberada a baderna e a invasão de propriedades; feitos investimentos desastrosos em Cuba, Angola e Bolívia; e trazidos os indefectíveis médicos cubanos, em regime de servidão. 
A mídia tradicional, com poucas exceções, foi silenciada com o uso de verbas públicas, ao ponto de, até mesmo, vir a apoiar uma “censura do bem”. E, assim, a liberdade de expressão na internet se vê atualmente ameaçada por um [projeto de] lei de censura prévia. “Quantos dedos têm aqui?”, lembram-se do Grande Irmão (1984 - Orwell) e de sua verdade incontestável? Após um pequeno hiato de quatro anos de um governo liberal, castigado diuturnamente pela mídia, sem, no entanto, sequer cogitar qualquer tipo de censura, há, hoje, assuntos proibidos, o direito de propriedade foi relativizado e há brasileiros presos, sem o devido processo legal. Juízes do Supremo Tribunal Federal ultrapassam, em muito, suas atribuições constitucionais e mandam no país, silenciando antagonistas e utilizando a Polícia Federal como instrumento político sob à vista grossa das lideranças do Congresso Nacional e da corte de justiça mais antiga do país, o Superior Tribunal Militar, que possui competência para “declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”. 
As Forças Armadas, como Pôncio Pilatos, se abstiveram publicamente, mesmo após terem atestado por escrito a falta de confiabilidade do processo eleitoral. E hoje prestam continência a um Comandante Supremo, que as despreza e que não reúne os valores morais exigidos para o cargo. Com a volta de Lula, inúmeros fatos do dia a dia, mostram a progressiva comunização do regime, muito embora, se analisarmos a cultura nacional e a ideologia da maioria da população, veremos que os valores da Sociedade continuam sendo religiosos, liberais e democráticos. 
Essa rota, certamente, nos colocará, em pouco tempo, frente a um renovado dilema, como cidadãos e militares, já que, conforme dizia o General Osório, herói de Tuiuti, a farda não abafa o cidadão no peito do soldado. Estamos preparados intelectualmente para enfrentar esse dilema moral? A lealdade das Forças Armadas ao Presidente, que é o Comandante em Chefe, é mais ou menos importante do que à lealdade à Constituição? Você, militar, concorda em deixar esse legado político, que vem sendo gestado? Acha que isso é problema de terceiros e não seu? Está conformado em ter seus filhos e netos vivendo futuramente sob um regime sem liberdade de expressão, de credo e de imprensa? Seus parentes e amigos são favoráveis ao comunismo? Seu comandante imediato concorda com esse estado de coisas? 
O bom soldado não é, de modo algum, o que empunha a baioneta cega. É o que pensa, pondera e age, de acordo com os valores morais da Sociedade que jurou defender! Ah, aqueles oficiais de 1964, de Cumbica e Santa Cruz, por convicção do mais puro dever, terminaram por arrostar os comandantes, que violaram os princípios basilares de onde deriva a autoridade, pois como dizia aquele velho e honrado general: "Na carreira das armas não se prestam honras e obediência ao homem, mas aos galões que ele porta".
Informativo da Academia de História Militar Terrestre do Brasil/Rio Grande do Sul (AHIMTB/RS)
COMENTO:  complemento o texto transcrevendo um que tem várias vezes sido utilizado pelo General R1 Luiz Eduardo Rocha Paiva, em suas palestras.
“Franqueza e coragem moral caminham juntas. A responsabilidade dos Oficiais na formação do processo político envolve uma franqueza absoluta, (...). Uma vez que uma decisão política final seja tomada, ele tem a obrigação de apoiar essa decisão como se ela fosse sua (...), com uma grande exceção: questões que envolvam os profundos princípios — dever, honra e pátria — não nos podem submeter a outros compromissos. O dever exige que um Oficial (...) se pronuncie. O General George C. Marshall disse que: ‘é duro obtermos homens para fazer isso, pois para tanto você expõe sua carreira e talvez sua comissão completamente’. Porém, qualquer Oficial verdadeiramente capaz de dar sua vida por seu país necessita também estar pronto a renunciar a sua carreira 
(trecho de A Segunda Chance (In: Adams, David A. Um Ensaio sobre Liderança, com tradução e adaptação do Capitão de Mar e Guerra da Reserva Geraldo Luiz Miranda de Barros; publicado em Military Review)
O dilema entre lealdade e disciplina ocorre em situações extremas ao chefe militar do alto escalão. Tal dúvida não pode existir quando silêncio e omissão contribuírem para causar um dano insuportável à Nação, ela sim credora de sua irrestrita lealdade. 
Aos superiores o chefe militar deve obediência, cooperação, respeito e disciplinada franqueza, mas a sua lealdade em situações limites é, unicamente e acima de tudo, devida à Nação.