sexta-feira, 7 de março de 2008

Colômbia — A Grande Manobra

por Oliveiros S. Ferreira
Os tambores de guerra a que aludiu Fidel Castro, ao comentar a crise Equador-Venezuela-Colômbia, soaram. Soaram para mascarar a manobra principal. A crise é, na melhor linguagem militar, uma manobra de diversão, que tem como objetivo, como toda ação desse tipo, desviar a atenção para um teatro de operações secundário e fazer que o adversário não atente para o que se pretende seja o teatro principal.
Como toda manobra de diversão, a que Chávez e Correa estão conduzindo tende a fazer crer que o objetivo é diferente daquele que parece ser — ou seja, que a batalha se trava ali e não aqui. De fato, a Colômbia realizou uma operação armada em território equatoriano — operação de Estado, pois os invasores eram do Exército colombiano. Se fossem paramilitares colombianos, não teria havido tanto alarido. Afinal, os paramilitares são tão irregulares quanto as FARC.
A crise vai girar, pois, em torno de um fato insofismável — a violação de território soberano —, grave à luz do que dispõe o Direito Internacional e, mais que ele, a tradição do Direito Internacional Americano (se podemos dizer assim) que se foi consolidando a partir do fim do século XIX para refrear as ações intervencionistas dos Estados Unidos, e consagrou-se já em 1933 na conferência interamericana de Montevidéu.
A diversão é de amplo alcance. Os prisioneiros das FARC, especialmente a senhora Bittencourt, cidadã franco-colombiana, cuja imagem sofrida não deixa os noticiários de TV quando se fala do assunto “prisioneiros das FARC”, foi o elemento novo introduzido na discussão internacional, antes da operação militar colombiana — embora ainda não nos foros internacionais.
Não insistirei no mote de que a morte de um (ou de poucos) toca mais a opinião pública do que a de milhares. Mas direi, isto sim, que a sorte de algumas centenas de prisioneiros, especialmente a dessa senhora de dupla nacionalidade, toca almas sensíveis e, mais do que comovê-las, toldou o raciocínio do presidente Uribe, que aceitou o jogo no terreno em que seus adversários queriam travar, que é o da conquista de corações e mentes para a causa da guerrilha narcotraficante.
Quando Chávez decidiu patrocinar a libertação de alguns reféns, luzes amarelas deveriam ter aparecido nos painéis dos analistas e dos Estados-Maiores. Sem dúvida, o “bolivariano” é um show-man; exatamente por isso é que se deveria ter perguntado: a que público ele se dirige quando, Chefe de Estado, negocia com um grupo guerrilheiro que se coloca contra um Governo com o qual mantém relações diplomáticas normais? Com que objetivo encenou a operação da qual participaram representantes de terceiros Governos e da Cruz Vermelha Internacional e que resultou na libertação de reféns somente depois de adiada pelas FARC (como foi noticiado)?
A luz amarela deveria ter-se transformado em vermelha quando, semanas depois, as FARC anunciaram a soltura, sem nada exigir em troca, de outros reféns — comunicando, ao mesmo tempo, que suas ações humanitárias com isso terminariam e que, doravante, a sorte dos demais obedeceria a apenas vis padrões mercantis: tantos seqüestrados por tantos guerrilheiros presos.
O “humanitário” da primeira encenação fez que não pensássemos na meia-generosidade das FARC. No terreno humanitário em que Chávez havia colocado a operação desde o início, pareceu normal que Uribe, sem deixar de acusar as FARC daquilo que podem ser acusadas, estivesse em Paris para, entre coisas, discutir com Sarkozy as condições de libertação da Sra. Bittencourt. Ao ter essa iniciativa, permitiu que, sem falsos pudores diplomáticos, o governo francês negociasse com uma organização guerrilheira colombiana.
As condições para a operação de diversão foram assim preenchidas e o quadro estratégico passou a ser o seguinte:
1. Uribe, apontado por deus e o mundo como tutelado dos Estados Unidos, não consegue, apesar de êxitos táticos, liquidar as FARC. A aceitação do plano Colômbia é apresentada como evidência da condição de “subordinação” aos Estados Unidos, e afeta negativamente sua imagem junto a alguns Governos e parte da opinião pública “esclarecida” das Américas;
2. ao concordar que a França se empenhasse na libertação de uma cidadã colombiano-francesa politicamente importante na Colômbia, realizando gestões junto às FARC, Uribe implicitamente admitiu que esse grupo não seria um bando de criminosos, mas uma organização que pode ser interlocutora de um governo sobre o qual não pairam suspeitas de ser benevolente com terroristas;
3. se Uribe cedeu aos apelos humanitários, com mais razão a opinião pública “esclarecida” formará ao lado dos que reclamam que ele ceda à única exigência das FARC, supostamente não militar, para iniciar (iniciar é o termo) negociações sobre a libertação de reféns, sobretudo da Sra. Bittencourt.
Estando as coisas neste pé, é possível ver que a manobra principal era o reconhecimento das FARC como grupo “insurgente”, como as qualificou Chávez. Se algum Governo reconhecesse essa condição à guerrilha, seria fácil a qualquer outro reconhecer um “governo provisório da Colômbia Livre”. E seria possível, então, iniciar o segundo e decisivo tempo da manobra principal, que é afastar Uribe, e os que pensam como ele, da cena política, eliminando a influência dos Estados Unidos na área.
O ataque colombiano à base das FARC no Equador serviu aos objetivos estratégicos do grupo que tem Chávez como seu porta-voz. Ao atacar, a Colômbia colocou-se em má posição. A projeção internacional da Colômbia não permite que Uribe possa invocar o “direito de perseguição” como fez o Comando francês ao atacar bases da FLN na Tunísia, durante a guerra da Argélia. Uribe colocou-se em má posição diante dos governos reunidos na OEA e teria sido sacrificado, para gáudio de muitos (e humilhado, para satisfação da diplomacia brasileira), não fosse a intervenção do “princípio do erro” na ação estratégica de “Chávez catervatim”. O erro foi o Coronel ter rufado os tambores de guerra, assustando todos, inclusive seus “companheiros de aventura” (numa tradução livre de compagnons de route como, na época do fastígio da III Internacional, eram chamados os que seguiam a orientação do Guia Genial de Todos os Povos, Stalin).
O relato da primeira reunião do Conselho Permanente da OEA trouxe revelações interessantes. Uma delas é que, apesar de sentir-se atacado militarmente, o Equador não invocou o TIAR, concebido exatamente para cuidar de situações desse tipo. Preferiu a reunião do Conselho Permanente, em que se representam Embaixadores e não Ministros das Relações Exteriores. É um foro menos solene e no qual se pode negociar, porque nada é definitivo, já que haverá a Conferência Extraordinária dos Ministros em caso de necessidade de recorrer — se a relação de forças for favorável a quem recorre. O que não parece ser o caso, pois os governos que não pertencem ao Estado-Maior “Chávez catervatim” seguramente meditaram sobre o fato de o Governo do Equador admitir ter mantido contatos com uma organização guerrilheira que fustiga um governo amigo.
A resolução da OEA não encerra o problema, embora tenha servido para que a grande manobra perdesse seu momentum. É preciso notar, diria mesmo anotar, que a situação de Uribe, apesar do apoio ostensivo dos Estados Unidos, terá dificuldades em consolidar-se, porque Paris transforma a morte de seu interlocutor nas FARC num caso diplomático/humanitário que enfraquece a posição colombiana.
Que o governo de Quito usasse a ruptura das negociações com as FARC — mantidas exatamente com Reyes — entende-se. Menos primorosa, digamos, é a posição de Paris, denunciando Uribe como sendo aquele que impediu que prosseguissem as negociações para a soltura de reféns — para a França, o efeito político interno da libertação da Sra. Bittencourt vale uma quebra dos padrões internacionais, e que se dane o prestígio internacional de um Presidente sul-americano. Já a tentativa de mostrar ao mundo que Uribe impediu que as negociações entre a guerrilha narcotraficante e governos de Estados não falidos pudessem chegar a bom termo dá às FARC uma dupla opção: soltar a Sra. Bittencourt e mostrar generosidade, ou deixar que ela, combalida como sabemos que está, morra — para desgraça, em ambos os casos, de Uribe.
Os estudiosos de relações internacionais devem atentar para esse fato: com o aval da França, está sendo montada uma grande ação internacional para acusar Uribe de colocar em risco a vida de quantos foram seqüestrados pelas FARC. Os seqüestros perdem importância moral e política, e o “humanitarismo” acrescenta pontos à insurgência, fazendo também esquecer o narcotráfico. Os atos criminosos do seqüestro e do narcotráfico, e o sedicioso da rebelião guerrilheira devem ser considerados menos relevantes porque está em jogo a vida de dezenas de pessoas, sobretudo a de uma cidadã francesa.
Os crimes previstos na Convenção de Roma (a tortura é um deles — e o cárcere privado nas selvas é uma tortura) prescrevem quando a Humanidade se ergue apoiada no força da França e na do conjunto daqueles países que, na reunião da OEA, foram os mais duros no ataque à Colômbia, de certa maneira evidenciando a que Estado-Maior seus governos pertencem: Brasil, Argentina, Bolívia, Nicarágua e Venezuela.
Cuba não está nesse grupo porque não pertence à organização interamericana. Mas Fidel dirá o que pensa sempre que julgar necessário. Não foi Raúl quem disse que ele seria sempre consultado?
É necessário dizer mais?
Oliveiros S. Ferreira é Jornalista e Professor
 Emérito da EsCEME.
Fonte: Alerta Total
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