quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

CNPq Quer Cobrar Bolsistas Inadimplentes. Não Acredito!

Durante décadas, obter uma bolsa no Exterior significou, para um estudante universitário, duas coisas: oportunidade de especialização e ascensão profissional ... ou turismo regiamente pago pelo contribuinte. Entre 82 e 86, lecionei na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na graduação e pós-graduação em Letras, e pude observar de perto o lado obsceno da coisa, a farra universitária. Tanto que criei o conceito de UFSCTUR, a mais conveniente das agências de turismo do país. Você não despendia um só vintém, e passava quatro anos gozando do bom e do melhor nas mais prestigiosas cidades americanas ou europeias.
Esta é uma história que gosto de contar e recontar. Principalmente, porque nenhum jornal a conta. Para os jornais, a universidade é o sacro dos sacros e não rima com corrupção. Ora, é uma das instituições nacionais onde a corrupção corre mais solta, sem peias, e sob o pseudônimo de intercâmbio universitário, especialização no exterior, pós-graduação. Corrupção? Jamais. Não existe corrupção na academia. Devo ter sido o único professor universitário no Brasil a denunciar publicamente a corrupção vigente em sua própria universidade. Desconheço outros.
Em minha curta passagem pela UFSC, vi poucas e boas. Professores com bolsas para mestrado e doutorado, no Brasil e no Exterior, que passavam quatro ou mais anos longe da sala de aula e voltavam de mãos abanando. Professores com dedicação exclusiva que mantinham seus escritórios ou consultórios sem que a universidade com isto se importasse. Um dos casos mais patéticos que presenciei, foi de uma professora que fora fazer mestrado em Curitiba. Quatro anos depois, não conseguira fazer mestrado. Espichou sua bolsa para um doutorado na USP. Mais quatro anos e nada feito.
Numa daquelas reuniões de Departamento — que prefiro chamar de aquelarres — estava sendo votado mais dois anos para uma bolsa em Lisboa, para a professora inadimplente. Interpelei o chefe do Departamento: “Escuta, essa moça passou oito anos fora, não conseguiu concluir trabalho nenhum. E agora vai ser premiada com dois anos em Lisboa?”
“É um problema humano” — me esclareceu o professor. “Ela se divorciou há pouco e outro dia apareceu com um olho roxo. Não pode ficar em Florianópolis”. Entendi as humanísticas preocupações de meu colega. E sugeri: vamos fazer o seguinte. Eu peço pra minha mulher me dar duas taponas na cara e vocês me dão quatro anos em Lisboa. Solicitação indeferida.
A irmã desta moça, também professora, também conseguiu bolsa em Lisboa. Passando por lá, fui conversar com ela. Já havia encontrado um Joaquim — o Quim, como o chamava — mas não o tema de sua tese. Acabou casando com um espanhol. Pelas últimas notícias que tive, vivia em Valladollid. Sem dar satisfação alguma à universidade.
Caso ainda mais patético. Uma professora, já cinqüentona, recebeu bolsa para estudar Lingüística em Paris. Encontrei-a por lá. A coitada era uma míope atroz e tinha dificuldades até para atravessar ruas, não conseguia ver os sinais de trânsito. Claro que não concluiu tese alguma. Surgiu então um qüiproquó. A Reitoria quis cortar-lhe a bolsa. Mas para isso, sei lá porque razões, ela tinha de ser comunicada em território nacional. Ou seja, se ela voltasse ao Brasil perderia a bolsa. Simples: não voltou. Enquanto isto, continuava recebendo a bolsa.
Houve ainda o caso de dois chilenos, marido e mulher. Eram conhecidos como o Casal. Bueno, o Casal conseguiu bolsa para a Inglaterra. E nunca mais voltou. E deles nada mais se soube. Teve ainda um outro caso mais emblemático. Um professor conseguiu uma bolsa para a Bélgica. Sem mesmo ir até lá, criou uma conta bancária em Bruxelas. E acabava remetendo sua bolsa para Florianópolis. Salvou sua lavoura. Com a grana da bolsa, construiu casa em Itapema.
Em setembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal determinou que uma professora universitária devolvesse R$ 160 mil ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Ela estudara no exterior com bolsa e não voltou ao país logo após a conclusão do curso. O processo foi iniciado em 1987. A professora tinha bolsa integral para estudar na University of Essex (Inglaterra) e ficou morando no exterior após terminar o curso. Para o STF, ao aceitar a bolsa, a professora assumiu compromisso contratual de retornar ao Brasil ao término do curso.
Miracolo! — exclamei na época. A atitude do STF era insólita. Mas pensei melhor com meus botões. Se o processo começou em 1987, na época a professora já deveria ser entrada em anos, pois jovens não conseguem tais mordomias. Digamos que tivesse uns trinta anos. Es un suponer, como dizem os espanhóis. Estávamos em 2008. Quer dizer, a discussão sobre a elementar obrigação de devolver a bolsa durou apenas ... 21 anos. Se a professora conseguir retardar o pagamento por mais uns vinte, morrerá envolta pela paz dos justos.
Leio hoje no Estadão que o CNPq irá cobrar os bolsistas que não voltaram para o Brasil. Os casos analisados em 2008 somam R$ 22 milhões. Alguns estudantes desistiram do curso. O CNPq pretende reaver cerca de R$ 22 milhões referentes a 65 bolsas de estudo concedidas a bolsistas que estudaram em outros países, mas que não concluíram a pós-graduação ou não voltaram ao Brasil. Muitos dos processos são de bolsas concedidas há anos, no entanto, só em 2008 foram finalizados e encaminhados ao Tribunal de Contas da União. Desde 2002, a CGU recebeu processos do CNPq que totalizam cerca de R$ 71 milhões (valor corrigido). Com o recurso, seria possível pagar 300 bolsas no exterior.
Segundo o jornal, ao cursar pós-graduação em outros países, o bolsista assina um termo de compromisso que o obriga a permanecer no Brasil depois de voltar do Exterior por um período igual ao da vigência da bolsa. Ele também precisa terminar o curso e apresentar dissertação ou tese. Em caso de desobediência a essa cláusula, o contrato prevê o ressarcimento integral das despesas, corrigidas e acrescidas de juros de 1%. Ora, em meus mais de quarenta anos de contato com a universidade, seja como estudante, seja como professor, não tive a ventura de sequer ouvir falar sobre ressarcimento de despesas. Se um bolsista, tendo concluído seu doutorado, recebe boa oferta de trabalho no Exterior, qual instância, humana ou divina, o obrigará a ressarcir a União? Terá seus bens executados no Exterior? Será pedida sua extradição? Qualquer destes processos custará bem mais caro que o valor da bolsa.
O jornal cita o caso do advogado Cláudio Rollemberg, de quem estão sendo cobrados R$ 608 mil (em valores corrigidos). O advogado está recorrendo da cobrança. Formado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), ele foi para a França em 1991 fazer um mestrado em direito internacional. Em no máximo quatro anos deveria voltar e apresentar a dissertação ao CNPq — o que não aconteceu até hoje. Ou seja, 18 anos após a obtenção da bolsa, o advogado ainda não conseguiu elaborar um ensaiozinho de 400 ou 500 páginas.
"Você vai com o objetivo de fazer, mas podem ocorrer mil coisas e você não conseguir entregar a dissertação ou a tese", diz. De fato, em Paris ocorrem milhares de coisas, como restaurantes, cafés, bistrôs, teatro, cinema, shows, namoradas — francesas ou de outras terras — viagens às ilhas gregas ou Canárias, escapadelas a Bruxelas e Amsterdã, viagens baratinhas ao Marrocos ou à Tunísia. Em suma, l’embarras du choix, o problema da escolha. É duro viver em Paris. O bolsista quase entra em parafuso, tantos são os lazeres pelos quais optar. Só tem uma certeza: se voltar de mãos abanando, não terá de dar satisfação alguma ao CNPq, CAPES ou universidade.
"O dia que eu conseguir, vou entregá-la" — diz serenamente Rollemberg. Hoje morando em São José do Rio Preto, ele questiona a cobrança, afirmando que quando assinou o contrato não foi avisado de que poderia ser obrigado a devolver os valores caso não cumprisse as obrigações. "Todo mundo entendia que era gratuito, que era uma questão ideológica", diz. O advogado diz ter uma série de colegas na mesma situação, todos questionando a cobrança. Com toda a razão. Se a impunidade sempre foi a regra, por que só agora vai se instituir essa antipática medida de exigir ressarcimento pelos anos de lazer no Exterior?
Finalmente o CNPq desperta para esta corrupção universitária, que jamais foi considerada corrupção, mas condição normal da vida acadêmica. Pago para ver. Ir para o Exterior com bolsa paga pelo contribuinte, voltar de mãos abanando e nada devolver ao Erário já se tornou direito adquirido no Brasil. Duvido que um só bon vivant devolva um centavo sequer aos cofres do Estado.
Os dirigentes do CNPq devem ter sido acometidos por um perturbador surto de honestidade. Mas isto passa logo.

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