quarta-feira, 1 de julho de 2015

Livro Revela Descaso do Brasil com Militares Feridos na Segunda Guerra

por Marina Lemle 
Episódio obscuro da história, a internação de cerca de 250 pacientes brasileiros em hospitais dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial vem à tona por meio do historiador Dennison de Oliveira, que acaba de lançar pela editora Juruá o livro Aliança Brasil-EUA – Nova História do Brasil na Segunda Guerra Mundial. O capítulo “Pacientes brasileiros internados nos EUA” trata do que o autor considera uma das faces mais trágicas da documentação a que teve acesso nos Arquivos Nacionais dos EUA em Maryland. Negligenciados pelo governo do Brasil, os feridos de guerra brasileiros recebiam daquele país resgate e atenção médica.
Dennison de Oliveira em Maryland,
EUA
Sabe-se que começa nesse momento uma das etapas mais importantes do processo de reintegração social do ex-combatente, que é sua recuperação e reabilitação motora e/ou sensorial. É lamentável que essa etapa tenha sido conduzida de forma tão inadequada e mesmo desrespeitosa para com aqueles que sacrificaram em prol da pátria sua saúde e felicidade no exercício do serviço militar em tempo de guerra”, afirma Oliveira. Em entrevista ao blog de HCS-Manguinhos, ele conta como foi o trabalho de pesquisa e o que descobriu.
- Sabe-se quantos brasileiros foram levados para tratamento nos EUA na Segunda Guerra?
Amputado não identificado da
FEB.
Acervo do OCIAA, NARA II,
Maryland, EUA.
O que dispomos, ainda hoje, são estimativas. Numa anotação rascunhada, anexa à História da Força Expedicionária Brasileira que o comando do Exército dos EUA no Brasil redigiu ao final da guerra, lê-se que teriam sido 776 os pacientes brasileiros evacuados da Itália para o Brasil, dos quais “pequeno número” teria antes passado por hospitais militares dos Estados Unidos. Com base nas pesquisas que realizei nos Arquivos Nacionais estadunidenses em setembro de 2014, estimo que cerca de 250 pacientes brasileiros foram internados em diferentes hospitais mantidos pelas forças armadas dos EUA naquele país durante a Segunda Guerra Mundial.
- Onde eles foram resgatados?
Uma vez removidos dos hospitais militares por toda frente de batalha da Campanha da Itália, seguiam para o porto de Nápoles. De lá eram embarcados em navios-hospitais até os EUA, onde eram internados em três diferentes hospitais militares, especializados respectivamente em doenças psiquiátricas, fraturas e amputações.
- Por que foram levados para os EUA e não para o Brasil?
Os pacientes removidos para os EUA eram os casos mais sérios que demandavam tratamento especializado, àquela época não disponível no Brasil. Os termos e condições que deveriam presidir a escolha dos pacientes a serem removidos para os EUA, a maneira pela qual seriam tratados, quando e de que forma deveriam ser repatriados jamais foram formalmente acordadas entre as autoridades do Brasil e dos EUA. Estas questões de importância fundamental para a saúde, o futuro e a felicidade dos veteranos de guerra brasileiros deveriam ter sido formalizadas numa resolução a ser emitida pela Comissão Conjunta de Defesa Brasil-EUA, com sede em Washington. Esta comissão e sua congênere no Brasil, a Comissão Militar Conjunta Brasil-EUA, com sede no Rio de Janeiro, foram tema de meu projeto de pesquisa de pós-doutorado, que motivou viagem de estudos aos EUA. No decorrer da pesquisa ficou claro que jamais foi assinado tal acordo, dando, na prática, carta branca às autoridades militares dos EUA para decidirem a respeito do destino dos pacientes brasileiros, incluindo se deveriam ou não seguir para tratamento naquele país. Em contraste, já em 1942 as autoridades militares dos EUA formalizaram, através de uma resolução baixada pela comissão em Washington, a forma pela qual funcionariam as enfermarias e hospitais de campanha que haviam instalado em cidades brasileiras como Natal, Belém e Recife. Esses estabelecimentos médicos destinavam-se a atender feridos e doentes estadunidenses, tanto oriundos do pessoal militar que trabalhava nas bases aéreas e navais mantidas pelos EUA no Brasil, quanto das tripulações de aeronaves que faziam a ponte aérea com a África, uma ligação de importância vital para a logística dos países Aliados então em luta contra as potências do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial.
- Qual foi a postura das autoridades brasileiras em relação aos pacientes internados nos EUA?
Ferido da FEB não identificado.
Acervo do OCIAA, NARA II, Maryland, EUA.
A lista de irresponsabilidades, descasos e omissões é tão grande que seria mais fácil falar o que o Brasil fez pelos seus ex-combatentes internados em hospitais dos EUA: quase nada. Veteranos de guerra de ambos os sexos (combatentes e enfermeiras) demandando internamento hospitalar começaram a chegar aos EUA no final de 1944 pegando de surpresa os membros brasileiros da comissão em Washington que, inicialmente, nada podiam fazer por eles. Todos os pacientes careciam de roupas íntimas, uniformes, intérpretes, médicos e enfermeiras brasileiros, próteses e membros artificiais permanentes e soldos para pagarem pequenas despesas.
Com muito custo e depois de um tempo considerável conseguiu-se do Ministério da Guerra no Brasil o atendimento, tardio e parcial, de algumas dessas demandas. A demora em enviar uniformes do Brasil para os internos em hospitais dos EUA significou que eles passariam todo o tempo vestindo pijamas. Isso os impedia de sair do hospital para participar dos passeios e visitas a locais de lazer que lhes eram oferecidos pela Cruz Vermelha estadunidense e certamente os expunha a sentimentos como vexame e tédio, além de ser fonte de ressentimento.
Também jamais foram-lhes enviadas as medalhas por terem se ferido em combate ou se distinguido em ações de guerra, e nem mesmo os distintivos nacionais que teriam sido importantes para elevar seu moral. Os poucos membros brasileiros da comissão conjunta em Washington se esforçavam em visitar seus compatriotas internados, mas parece claro que sua atuação como intérpretes foi claramente insuficiente. Só a muito custo se conseguiu o envio do Brasil de médicos para fazer a triagem de pacientes para os hospitais dos EUA e para acompanhá-los de volta ao Brasil. As enfermeiras jamais foram enviadas, apesar dos repetidos protestos contra a má atuação dos enfermeiros brasileiros no trato com os internados. A situação nesse aspecto era tão ruim que a enfermeira Heloisa Villar, internada num hospital dos EUA para se recuperar de doença adquirida em campanha, resolveu voluntariamente permanecer nos EUA para ajudar a atender os pacientes brasileiros após receber alta.
Das 72 “enfermeiras” enviadas pela FEB, apenas cinco tinham formação na área. 
Acervo do OCIAA, NARA II, Maryland, EUA.
A questão dos soldos também foi fonte de problemas, sendo pagos tardiamente, impedindo durante muito tempo os pacientes de realizarem pequenas despesas do seu interesse. Nesse aspecto quem mais sofreu foram os subtenentes brasileiros. Deles eram cobradas diárias nos navios hospitais dos EUA com se fossem oficiais, prática adotada na hierarquia militar dos EUA. Contudo, de acordo com a hierarquia brasileira, eles deveriam receber vencimentos correspondentes aos soldos pagos aos praças, o que certamente representou mais uma fonte de conflito para as autoridades militares do Brasil resolverem nos EUA.
Mas nada se compara à angústia pela qual passaram os mutilados de guerra, que dependiam de próteses e membros artificiais para suas atividades diárias. Não havia garantias de que o governo brasileiro iria pagar por isso quando deixassem os hospitais dos EUA de volta ao Brasil. A própria volta ao Brasil não foi garantida pelo governo Vargas. Muitos meses após o fim da Segunda Guerra Mundial ainda haviam dezenas de pacientes brasileiros obrigados a viver como exilados em hospitais dos EUA, face à indiferença do governo para com o seu destino. Foi somente apelando por carta diretamente à filha de Vargas que os últimos sessenta internos brasileiros conseguiram afinal voltar à pátria em fins de 1945.
- Como os EUA lidaram com a situação?
Na ausência de qualquer acordo formal, as autoridades estadunidenses se esforçaram em oferecer aos pacientes brasileiros rigorosamente o mesmo tratamento que dedicavam aos seus próprios internados.
Aliás, se não fosse pela atenção e cuidado que dedicaram aos brasileiros, provavelmente todos eles teriam morrido de frio. É um alívio, mas também um constrangimento, constatar na documentação pesquisada o cuidado que as autoridades dos EUA no Recife dedicaram aos enfermeiros brasileiros em trânsito para hospitais daquele país. Percebendo que os uniformes brasileiros eram claramente insuficientes para suportar o inverno em Nova York, se apressaram em retirar dos seus próprios estoques as roupas e agasalhos que foram fornecidos ao pessoal médico. Como resultado, médicos, enfermeiros e pacientes brasileiros nos EUA ficaram a maior parte do tempo usando fardamentos do exército norte-americano, o que certamente foi mais uma fonte de vexames e conflitos para todos eles.
Autoridades de Washington comunicavam aos seus colegas brasileiros as necessidades dos compatriotas feridos e doentes em diversos hospitais dos EUA. Estes, por sua vez, apelavam ao Ministério da Guerra para verem atendidas pelo menos as necessidades mais essenciais dos internados, obtendo nessa missão sucesso apenas relativo. Não cabe dúvida sobre nossa dívida de gratidão para com as autoridades dos EUA nessa questão. Se tivessem se mostrado indiferentes, nossos doentes e feridos de guerra teriam sofrido ainda mais, de forma cruel e desnecessária.
Jipe da FEB transportando feridos em combate para o hospital. Acervo do OCIAA, NARA II, Maryland, EUA.
- Qual a importância desse episódio no contexto do livro?
O que se pode concluir das evidências colhidas pela pesquisa que deu origem a esse livro é que o entendimento da história dos veteranos e veteranas de guerra da FEB em seu processo de reinserção social começa no tratamento que receberam nos hospitais militares estadunidenses durante e depois da Segunda Guerra Mundial. Do grau de sucesso desse tratamento é que se entende o maior ou menor êxito do processo de reintegração social desses ex-combatentes na vida civil no pós-guerra. Esse episódio tem também muito a nos ensinar sobre a história das relações internacionais militares do Exército Brasileiro. É de se esperar que, no futuro, mais eventos, episódios e personagens envolvidos com o tema se tornem objeto de pesquisa dos historiadores.
Dennison de Oliveira também publicou
pela Editora Juruá os livros 
Os Soldados Brasileiros de Hitler” (2008),
 “Os soldados alemães de Vargas” (2008),
 “O Túnel do Tempo: um estudo de História e Audiovisual” (2010) e
 “História e Audiovisual no Brasil do Século XXI” (2011). 
Leia mais sobre o livro Aliança Brasil-EUA–Nova História do Brasil na Segunda Guerra Mundial.
Fotos: Acervo do OCIAA / National Archives and Records Administration II 
Colaborou: André Felipe Cândido da Silva 
Textos correlatos:
- Campos, André Luiz Vieira de. Combatendo nazistas e mosquitos: militares norte-americanos no Nordeste brasileiro (1941-45). HCS-Manguinhos, Fev 1999, vol.5, nº 3
- Campos, André Luiz Vieira de. Olhares sobre a Segunda Guerra Mundial no Brasil. HCS-Manguinhos, Dez 2001, vol.8, nº 3
COMENTO: o conteúdo desta postagem só ratifica a certeza de que a sociedade brasileira nunca teve preocupação para com seus militares. O desdém para com os Heróis da FEB iniciou coevo ao final da Segunda Guerra e se mantém até os dias atuais, quando não se vê nenhuma atitude por parte das autoridades em prol dos que dedicaram sua mocidade, saúde e até a vida em defesa da Democracia. É o mesmo menosprezo oferecido aos que livraram o Brasil, em 1935 e 1964, das garras do socialismo/comunismo. E será a mesma indiferença ofertada se por acaso as Forças Armadas atenderem o canto das sereias para, de novo, colocarem este país nos eixos.
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