por Janer Cristaldo
Eu o imaginava morto há muito tempo. Durante uma década, os serviços secretos da maior potência do planeta o procuraram em vão. Um homem com problemas renais, em tratamento de hemodiálise, não poderia sobreviver muito tempo refugiado em cavernas nas montanhas do Hindukush, como se supunha então. Não era nada disso. O terrorista estava confortavelmente instalado em um bairro de luxo, na cidade de Abbottabad, a 50 quilômetros de Islamabad, a capital do Afeganistão. Ironicamente, foram suas medidas para não ser localizado que acabaram por localizá-lo. A casa, avaliada em um milhão de dólares, não era provida de telefonia nem de Internet.
Melhor protegido não poderia estar. Abbottabad é um reduto militar no Paquistão, controlado pelo Exército paquistanês e militares aposentados. Abriga a Academia Militar do Paquistão, a principal faculdade de formação do Exército paquistanês, equivalente a West Point, nos EUA. Obviamente era hóspede privilegiado do Estado. Pois não é fácil acreditar que o terrorista mais procurado do mundo tenha encontrado abrigo em um núcleo militar sem que os serviços de inteligência paquistaneses disto tivessem ciência. Não por acaso, o Paquistão não foi comunicado sobre a operação que eliminou o terrorista.
Bin Laden, no fundo, é cria dos Estados Unidos, quando Ronald Reagan deu apoio aos mujahideen afegãos. Em seu governo, oficiais paramilitares da Divisão de Atividades Especiais da CIA treinaram, equiparam e comandaram as forças guerrilheiras contra o Exército Vermelho. A CIA e o ISI — serviço de inteligência do Paquistão, que agora se penitencia por não ter percebido a fortaleza do terrorista instalada dentro de uma vila militar — forneceram armamentos para os taleban e Al Qaeda, para resistirem à invasão soviética do Afeganistão. Em apenas um ano, 65.000 toneladas de armas e munições norte-americanas foram entregues à guerrilha muçulmana.
Foi quando surgiram os chamados “árabes afegãos”, os 35 mil muçulmanos estrangeiros que participaram da guerra. Bin Laden era um deles e foi um dos organizadores dos campos de treinamento dos voluntários estrangeiros. Osama, quem diria, trabalhou lado a lado com a CIA. Expulsos os soviéticos do país, Bin Laden usou o know how adquirido para voltar-se contra seus antigos protetores. Nada mais lesivo à humanidade que um guerrilheiro desempregado. Vide Che Guevara.
O mesmo aconteceu com Saddam Hussein, que virou bandido depois que Bush invadiu o Iraque. Antes disso, foi aliado e armado pelos Estados Unidos para combater o Irã. Saddam, antes de ser chamado de ditador, tinha muito prestígio no Ocidente. Particularmente na França, que estava construindo um reator nuclear no Iraque em Al Tuwaitha, ao sul de Bagdá. Em 1975, Saddam foi guiado por Jacques Chirac em uma visita a uma usina nuclear na França. Na ocasião, o presidente francês declarou: “o Iraque está num processo de desenvolvimento de um programa nuclear coerente e responsável. A França deseja associar-se a ele neste esforço". Business is business.
Todos esses tiranos que ora foram derrubados ou são contestados na África e Oriente Médio, ainda no ano passado não eram tiranos e gozavam da simpatia das potestades do Ocidente. Ano passado, Obama apertava alegremente a mão de Muamar Kadafi.
Ainda há pouco eu comentava que Kadafi, tido por algum tempo como ditador da Líbia, virou gente de boa família depois que indenizou os familiares das vítimas daquele avião da Pan Am que mandou derrubar sobre Lockerbie em 1988. A França o recebeu com sua tenda beduína e com o harém que lhe serve de guarda pessoal. “A França acolhe um chefe de Estado que desistiu definitivamente de fabricar a bomba atômica, decidiu colocar seu programa nuclear sob controle das organizações internacionais, renunciou de forma categórica o uso do terrorismo e decidiu indenizar as vítimas”, disse Nicolas Sarkozy. De ditador e terrorista, foi de repente promovido a chefe de Estado. Também, pudera! Fechou com a França contratos da ordem de 10 bilhões de euros. Business is business.
Hoje, Estados Unidos e Europa bombardeiam o antigo amigo. Em uma tentativa desastrada de matá-lo, acabaram matando um de seus filhos e mais três netos. Em 1986, Ronald Reagan, que o chamava de cachorro louco, o bombardeou. Por erro de alvo acabou matando uma sua filha adotiva de 15 meses. Águas passadas. Isto não impediu que instalasse sua tenda e seu harém em um oued às margens do Sena.
Semana passada, o ditador Robert Mugabe, que está proibido pela UE de pisar em solo europeu por violar os direitos humanos no Zimbábue, foi um dos dezesseis chefes de Estado convidados a assistir à beatificação de João Paulo II. Mugabe é acusado por tortura e morte de centenas de opositores em seu país. "Não há nada que esconder. O Zimbábue é um Estado que mantém relações diplomáticas com a Santa Sé", afirmou o porta-voz vaticano, Federico Lombardi. Em abril de 2005, o ditador assistiu ao funeral de João Paulo II. Normal que viesse à sua beatificação. Segundo fontes italianas, Mugabe pode viajar ao Vaticano graças aos Pactos Lateranenses, que obrigam a Itália a deixar passar por seu solo todas as personalidades que se dirijam à Santa Sé. Mugabe se professa católico. Pode matar à vontade.
Os mais prestigiosos dirigentes ocidentais — Obama, Sarkozy, Berlusconi, Angela Merkel — se refestelaram com estes senhores que, do dia para a noite, passaram a ser chamados de ditadores. Bin Laden é cria do Ocidente. Quando os Estados Unidos o financiavam no Afeganistão, estavam armando o atentado às torres gêmeas. Se houvesse um Nobel para o terrorismo, o saudita certamente seria o laureado. Jamais houve na História atentado tão letal, tão bem planejado e tão bem executado.
Os ocidentais hoje se perguntam se o mundo ficou melhor com a morte de Bin Laden. A pergunta traz embutida uma santa ingenuidade. As redes de terrorismo estão armadas em todo o Ocidente. Al Qaeda virou franquia. A vendeta virá com força. Nas próximas semanas e meses, podemos esperar algumas dezenas ou talvez centenas de cadáveres na Europa. O terrorismo não vencerá as democracias ocidentais. Mas ainda matará muita gente.
Durante décadas, o Ocidente dormiu com prazer na cama do inimigo. Hoje, o bombardeia. Cria cuervos — dizem os espanhóis —, Y te picarán los ojos.
Fonte: Janer Cristaldo
COMENTO: publiquei aqui, faz alguns dias, um texto do Gen Ex Carlos Alberto Pinto Silva, a respeito dos ataques militares à Líbia. Agora, ainda é notícia a morte do chefe do grupo terrorista Al Kaeda. Nada a favor de Gadaffi ou de Bin Laden, muito antes pelo contrário. Mas a euforia desses atos contra o Cara do Livro Verde e contra o mentor da desgraça ocorrida em 11 de setembro de 2001, deve ser seguida de uma reflexão sobre até onde é aceitável uma ação militar de um país contra outro, sem uma declaração formal de guerra. Que me lembre, o precedente de uma ação buscando fazer a justiça funcionar contra um criminoso abrigado por um outro país foi a captura do nazista Adolf Eichmann, na Argentina, por agentes de Israel. Mais recente foi a gritaria contra a Colômbia por ter liquidado com alguns narcoterroristas homiziados em território equatoriano. Me parece que não devemos ter pena de bandido. Mas deve haver uma regra para ações desse tipo, que não se baseie na "lei do mais forte". Veremos com satisfação ou como ofensa uma ação de 'comandos' italianos resgatando ou 'justiçando' Cesare Battisti em terras brasileiras? Ou de agentes colombianos buscando o "padre Medina"? Ou de policiais paraguaios levando na marra os terroristas daquela nacionalidade que aqui estão presos e nossa morosa justiça não libera para extradição? E que tal um bombardeio de uma "coalizão da OEA" contra as recém iniciadas obras de Belo Monte com a justificativa de que a organização já se posicionou contra sua realização? São hipóteses malucas? Pode ser que sim, pode ser que não!
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