Da Ingenuidade à Pefídia
por Synésio Scofano Fernandes
“A supressão da remissão permitirá que a regra da paridade continue sendo aplicada para os militares que vierem a se inativar, bem como para seus pensionistas, diferenciando os militares dos servidores civis quanto a esse aspecto”.
Do relatório da EC nº40-A, de 2003 — Reforma da Previdência Social.
Relator: Dep José Pimentel.
Nem mesmo começaram a se produzir todos os efeitos deletérios, para a Família Militar, preconizados na Lei nº 12.702, de 7 de agosto de 2012 e nos Projetos de Leis nº 4369/2012 e nº 4371/2012, recentemente remetidos pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional, já se iniciaram conjecturas com o objetivo de conceder, aos militares federais em atividade, benefícios para suportarem a atual situação remuneratória degradante em que se encontram, que, seguramente, será agravada pelas conseqüências dos diplomas legais acima enunciados. Situação que os coloca muito abaixo da Administração Direta, categoria civil mais mal remunerada em todo o serviço público federal: de acordo com dados divulgados nas páginas 87 e 88, do Boletim Estatístico de Pessoal nº 197, de setembro de 2012, publicação do MPOG, a remuneração média mensal per capita dos militares federais equivale a 69,00% daquela da Administração Direta, quando, em 2004, essa relação era de 102,50%.
O Projeto de Lei nº 4369/12, remetido ao Congresso Nacional, preconiza, para os militares federais, um aumento anual de 9,14% nos valores dos soldos, por três anos consecutivos (2013, 2014 e 2015). Esses valores estão muito abaixo do que se poderia esperar como uma iniciativa para recuperar o poder aquisitivo da classe militar, que, atualmente, se encontra no mais baixo nível, desde 2000, de acordo com dados oficiais, resultado de uma política salarial perversa adotada desde 2004 em que a relação despesa com pessoal/PIB para os militares federais passou de 1,18, em 2003, para 0,94, em 2011, enquanto a mesma relação, no mesmo período, foi de 1,32 para 1,38, no que se refere à Administração Direta, e de 2,63 para 2,70, no que diz respeito aos servidores públicos civis federais.
O pior é que, com as medidas previstas na Lei nº 12.702/12 e nos PL, acima citados, a situação iníqua dos militares, sob o ponto de vista remuneratório, em relação a todas as categorias de servidor público federal, se tornará mais aguda ainda.
Portanto, nesse quadro, ocorre a possibilidade de implementar-se, cumulativamente, benefícios de modo a compensar “o pessoal da tropa”, diminuindo a dimensão do impacto financeiro da despesa, que seria maior se houvesse um aumento nos valores dos soldos, de modo a corrigir, realmente, a situação iníqua dos militares sob o ponto de vista salarial. Essa é a lógica que sustenta a manobra engendrada.
A desgraça é que as medidas compensatórias cogitadas, apenas para os militares ativos, implicam a quebra das regras da paridade e da integralidade, direitos instituídos, árdua e penosamente, conquistados desde a Constituição de 1988 e mantidos nas Reformas da Previdência Social de 1998 e de 2003.
A história nos mostra que, no passado, em diferentes momentos, antes do advento das regras da integralidade e da paridade, inativos e pensionistas viveram situações de extremas dificuldades, nas quais, a maior parte dessas categorias, era impelida, já nas suas velhices, a exercer outras atividades remuneradas para subsistir. Incontáveis militares — de coronel a praças — após dedicarem mais de trinta anos ao Exército e ao Brasil, tornaram-se motoristas de táxi, vendedores de livros, corretores de seguro, convivendo com suas doenças e os ainda presentes encargos familiares. Não que o exercício dessas atividades fosse algo depreciativo, mas vinha em um momento inapropriado, quando a idade já dificultava a adaptação a esses novos papéis sociais. Nessas épocas, os proventos chegaram, em média, a corresponder a 60% dos valores das remunerações dos militares em atividade e as pensões a 2/3 dos proventos.
Portanto, em nenhuma hipótese, sob qualquer pretexto, os militares podem promover, concordar ou facilitar estudos ou debates sobre temas que possam conduzir a iniciativas que levem a quebra das regras da paridade e integralidade. Uma atitude favorável a esses temas revela ingenuidade, fraqueza e mesmo traição para com a Família Militar, ex-chefes e companheiros, que, em diferentes momentos, lutaram pelo advento e pela manutenção das regras da integralidade e da paridade, colocando em risco as situações confortáveis de que desfrutavam.
Pois bem, hoje em dia, insistentemente e em diferentes fóruns, se apresentam, reiteradamente, propostas no sentido de separar, sob o ponto de vista da remuneração, o militar em atividade dos inativos e dos pensionistas, rompendo com os institutos da integralidade e da paridade.
Essas propostas apontam para a previsão de novas parcelas (gratificações, adicionais, auxílios e outras), que passariam a integrar a estrutura remuneratória em vigor: auxílio moradia, gratificação de tropa, gratificação de instrutoria, gratificação de atividades especiais etc. A especificidade dessas parcelas é que, em razão de suas naturezas, seriam percebidas apenas pelos militares em atividade, o que configuraria a quebra da regra da paridade, pois a definição dessa regra é a seguinte:
“ ... os proventos de aposentadoria e as pensões serão revistos na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, sendo também estendidos aos aposentados e aos pensionistas quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade ... ” (Art 7º da Emenda Constitucional nº 41, de 2003).
A ideia subjacente a essas proposições compensatórias é conceder um aumento diferenciado (somente para o pessoal da ativa), de modo a produzir o menor impacto financeiro possível.
Presentemente, cogita-se de agregar, à atual estrutura remuneratória dos militares federais, o auxílio moradia, parcela prevista na lei nº 8237, de 30 de setembro de 1991 e existente até o início da vigência da MP nº 2215-10, de 31 de agosto de 2001, diploma legal que regula, atualmente, a remuneração dos militares federais.
A motivação dessa iniciativa decorre da previsão do nº 2) da letra i) do inciso IV do artigo 50 da lei nº 6880, de 9 de dezembro de 1980 (Estatuto dos Militares), que estabelece, como direito do militar a moradia para si e para seus dependentes “em imóveis sob a responsabilidade da União, de acordo com a disponibilidade existente”.
Ocorre, no entanto, que as disponibilidades de Próprios Nacionais Residenciais (PNR), na maioria das guarnições militares, estão muito aquém das necessidades, de modo que o auxílio moradia surge como uma solução para o problema.
No entanto, o restabelecimento do auxílio moradia, nos termos em que era definido na citada lei nº 8237/91, trará, em consequência, como dano para os militares federais a perda da paridade e da integralidade, pois se estaria instituindo uma nova parcela remuneratória a ser percebida, apenas, pelo militar em atividade, afrontando o artigo 10 da MP nº 2215/2001, que estabelece o marco definidor da integralidade e da paridade, pois o cálculo dos proventos está precisamente delimitado naquele diploma legal, ou seja: “Os proventos na inatividade remunerada são constituídos das seguintes parcelas:”
Portanto, a única maneira de restabelecer o auxílio moradia, sem romper com as regras da paridade e da integralidade, é considerar, apenas, o seu caráter indenizatório. Nesse caso, essa parcela não se incorporaria à remuneração, constituindo-se, apenas, no ressarcimento de uma despesa realizada. Aliás, esse é o entendimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) — Resolução CNJ nº 13 de 21/03/2006, do Tribunal de Contas da União (TCU) e o que sustenta a concessão desse benefício aos servidores públicos federais (artigo 60-A da lei nº 8.112 de 11/12/1990 com a redação dada pela lei nº 11.490/2007).
Em decorrência dessa nova compreensão, devem ser ressaltados alguns aspectos diferenciais ao antigo entendimento do conceito de auxílio moradia:
— a concessão desse benefício tem em vista indenizar o militar por despesa efetivamente realizada com o pagamento de aluguel, comprovada mediante contrato;
— não poderá perceber auxílio moradia o militar que ocupar PNR, pois esse fato é a efetivação de um direito do militar previsto em lei. Portanto, não há o que recolher à organização militar responsável pelo imóvel.
Torna-se relevante, a essa altura, considerar, também, as motivações que poderiam ter conduzido à decisão de excluir, da estrutura remuneratória, prevista na MP nº 2215/2001, o auxílio moradia. Não há dúvida de que o núcleo central dessas motivações residia na dificuldade em operacionalizar a aplicabilidade do conceito de auxílio moradia, que, no decorrer do tempo, tornou-se evidente, conduzindo a problemas administrativos e, por vezes, disciplinares, que recomendaram a extinção do auxílio moradia como parcela remuneratória, o que de fato ocorreu.
Mas o aspecto central a ser focalizado diz respeito ao dilema: obedecer a um princípio ou atender a necessidades situacionais.
O que é mais relevante: manter as regras da integralidade e da paridade ou minimizar, por intermédio do auxílio moradia, os efeitos de uma disfunção administrativa, que impede o oferecimento de residências aos militares, como preceitua a lei?
As necessidades situacionais são mais concretas e, por isso, aos míopes e inconsequentes, são urgentes e necessárias. Mas, na verdade, são limitadas no seu alcance.
A obediência a princípios e a valores ocorre em nível de abstração elevado, mas tem todo o poder de orientar a conduta humana.
O que acontecerá se descartarmos a paridade e a integralidade? Qual será o futuro da Família Militar? Reproduzirá o seu passado sombrio? Quem garantirá a sua sobrevivência, considerando que, nas condições atuais de remuneração, se situa muito abaixo da categoria civil mais mal remunerada em todo o serviço público federal?
Por outro lado, e o mais importante, o retorno do Auxílio Moradia, sob qualquer forma em que ressurja, provavelmente, ensejará questionamentos jurídicos por parte de inativos e pensionistas, exigindo a aplicação das regras da integralidade e da paridade.
A ocorrência desses questionamentos poderá submeter o próprio instituto da paridade e da integralidade, aplicada aos militares federais, a apreciações quanto a sua legalidade, reabrindo uma questão já ultrapassada e pacificada.
Resta uma última pergunta: esse desfecho provável é do interesse da Família Militar ou de outros setores?
Brasília, 10 de dezembro de 2012
Gen Div Rfm Synésio Scofano Fernandes
Fonte: Confamil
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