quarta-feira, 30 de julho de 2025

A Miséria Moral dos Militares

"Antigamente, minha mãe, mulher de olhos atentos ao mundo e de palavras tão simples quanto justas, chamava a vida militar de "miséria dourada". Era uma expressão carregada de resignação, mas também de honra: sabíamos que ganhávamos pouco, mas carregávamos no peito a insígnia do dever, do serviço à Pátria, da nobreza de um ideal. 
Ser militar não era apenas profissão, era destino. E esse destino nos distinguia. Havia sacrifício, havia disciplina, mas havia também prestígio, respeito público, e sobretudo um orgulho silencioso, intrínseco, que nos fazia suportar privações com a altivez de quem serve a algo maior do que si mesmo. 
Por diversas vezes, ao longo da história nacional, foi esse espírito de serviço que conduziu as Forças Armadas a desempenharem o papel de braço forte e mão amiga da Nação, sem hesitar diante dos momentos mais críticos. Em tragédias naturais, em colapsos institucionais, em ameaças à ordem ou à soberania, coube ao militar, muitas vezes em silêncio e com recursos escassos, restituir a paz, socorrer o povo e reconstruir pontes — físicas e morais — que haviam ruído. Esse protagonismo sereno, quase sempre ignorado pelos manuais da política, era a expressão máxima do pacto entre a farda e a sociedade: um compromisso não com partidos, mas com o povo brasileiro em suas horas de maior aflição. 
Hoje, contudo, o que resta dessa dignidade? As Forças Armadas atravessam um período sombrio de desprestígio inédito. Não porque tenham deixado de cumprir sua missão constitucional, mas porque permitiram que essa missão fosse associada, por conveniência ou omissão, a um governo marcado pela corrupção, pelo despreparo e pela impostura moral. O povo, cansado de promessas e farsas, nos enxerga, não mais como reserva moral da Nação, mas como cúmplices silenciosos do desgoverno. E isso nos custa mais do que qualquer corte orçamentário: custa-nos a alma institucional. 
O soldo, que nunca foi exuberante, tornou-se um insulto em comparação com os salários nababescos de outras esferas do funcionalismo público. Como aceitar que um ascensorista do Congresso Nacional — sem responsabilidades estratégicas, sem risco, sem formação técnica especializada — receba mais do que um piloto de caça operacional, treinado para missões de vida ou morte em aeronaves de primeira linha como o F-5 ou o Gripen? 
Como justificar que um juiz de primeira instância comece sua carreira com vencimentos superiores aos de um coronel com trinta anos de serviço, responsável por dezenas de vidas e equipamentos de milhões de dólares? A resposta não está apenas nos números: está no valor simbólico que a sociedade e o Estado atribuem a cada função. E é justamente aí que a degradação se torna mais evidente. 
Porque não se trata apenas de uma desproporção econômica, mas de uma inversão de valores. Hoje, paga-se mais a quem representa privilégios do que a quem representa sacrifício. A hierarquia do mérito foi substituída pela lógica da conveniência, da burocracia e da política rasteira. O militar, que deveria ser a expressão da virtude republicana, do dever e da abnegação, vê-se convertido em funcionário mal remunerado, exposto ao escárnio dos que jamais compreenderão o sentido da palavra serviço. 
Pior: vê-se confundido com os oportunistas de plantão que instrumentalizam a farda para projetos pessoais de poder. Essa associação espúria tem sido devastadora. E, no entanto, até o momento nenhum militar da ativa em função de liderança teve a coragem de nomeá-la, de enfrentá-la e de estancar a sangria moral que esvazia o espírito da tropa. 
A exemplo do governo desgovernado, vejo as forças armadas empenhadas em tentar mudar sua imagem através de bem elaboradas campanhas de marketing. Mas, não se reconstrói o prestígio das Forças Armadas com gritos de guerra, ou com bravatas em redes sociais. 
Reconstrói-se com a restauração do mérito, com a justa remuneração, com o afastamento inequívoco de um regime espúrio, e, sobretudo, com a reafirmação de sua identidade histórica: a de defensora da Nação, da soberania e da ordem constitucional, não de governos transitórios. 
A imprensa noticiou recentemente uma reunião entre o Presidente da República, o Ministro da Defesa e o Comandante da Aeronáutica, na qual se discutiu o alarmante nível de evasão de quadros técnicos altamente qualificados na Força Aérea Brasileira. Segundo relatos da mídia, sempre prestativa em suavizar os contornos da realidade quando se trata de proteger o governo de esquerda, cogita-se a concessão de um aumento seletivo de soldo como medida para conter a debandada. 
Fico a pensar no quanto se equivocam essas autoridades ao reduzirem a crise a uma simples questão pecuniária... Compreendo o raciocínio do político — e até do ébrio — habituados a comprar consciências no varejo congressual. Mas no caso do Comandante da Aeronáutica, a perplexidade é maior: trata-se de um oficial aviador que, supostamente, deveria conhecer a alma de sua tropa. Talvez a explicação resida em sua trajetória pouco afeita à dureza da atividade operacional e demasiadamente moldada pelos macios tapetes dos gabinetes. 
E, nesse contexto, não é de surpreender que se ignore o essencial: que a verdadeira evasão não é apenas de salários, mas de espírito; não é de contracheques, mas de propósito. Ninguém, em sã consciência, entra nas forças armadas pelo salário. Hoje, a perspectiva moral de carreira para um oficial de elite, como os aviadores, ou mesmo para um técnico de altíssimo nível, como os graduados formados com rigor e excelência pela Escola de Especialistas da FAB, é sombria — para não dizer desesperançada. E não se trata apenas de estagnação salarial, mas de degradação simbólica. 
Que horizonte pode vislumbrar um jovem que arrisca a vida diariamente, operando vetores de combate de primeira linha, quando vê a Força Aérea reduzida a mera prestadora de transporte a caravanas governamentais, em animados passeios pelo país e pelo mundo? Ou, pior, a redução do Exército Brasileiro à condição humilhante de capitão do mato do Supremo Tribunal Federal, prendendo, ilegalmente, mulheres, velhos e crianças? 
Que dignidade resta quando se ouve um juiz — amparado pela toga e pela impunidade — chamar um general de mentiroso em público, sem que haja qualquer resposta institucional à altura? E o que dizer da ignomínia ainda maior: ver militares presos sem o devido processo legal, sem voz, sem defesa, enquanto seus comandantes silenciam como cúmplices ou se escondem atrás de notas evasivas? 
É nesse caldo de omissão, oportunismo e servilismo que se afoga o espírito de corpo, corroído não pelo inimigo externo, mas pela rendição interna ao poder de turno. Se a "miséria dourada" de outrora era, ao menos, redimida pelo orgulho de servir, a miséria de hoje é agravada pela vergonha de ser confundido com o que há de pior na política nacional
Aos militares de bem, digo que ainda há tempo de romper esse ciclo. É tempo de lembrar que o ouro da farda não está no metal de suas estrelas, mas no brilho moral de quem a veste com honra.
por Flavio C. Kauffmann
Piloto de Caça

terça-feira, 15 de julho de 2025

A Acareação Que o Brasil Não Viu

Imagem: Arte sobre fotos de Agência Brasil e Reprodução TV Justiça
por Bruno Dallari Oliveira Lima,
 José Luis Oliveira Lima,
 Millena Galdiano,
 Rodrigo Dall’Acqua
 e Rogério Costa.
Folha de SP - 6 de julho de 2025
Surpreendentemente, foi proibida a gravação da acareação entre Mauro Cid e Braga Netto, fugindo ao padrão estabelecido pelo próprio ministro relator.
Na construção de uma narrativa, aquilo que se oculta pode ser mais importante do que aquilo que se mostra. Basta lembrar dos famigerados processos de Moscou, urdidos para condenar inocentes por falsas acusações de conspiração contra o regime soviético.
No modelo de julgamento-espetáculo, as sessões de julgamento eram gravadas, mas os vídeos passavam por uma forte edição antes de irem a público. Mostrava-se somente o que interessava para a acusação.
Se um réu ousava se defender, esse trecho era excluído. O destaque eram as confissões, em que os acusados, após coação ou tortura, confessavam crimes que não cometeram. As imagens eram editadas para esconder contradições e hesitações próprias de quem não falava a verdade, ocultando todas as palavras e expressões corporais que pudessem revelar a farsa.
Os processos de Moscou são episódios extremos de instrumentalização do Judiciário e qualquer comparação seria desproporcional. Mas, após quase um século, permanece atual a necessidade de assegurar transparência, coerência e integridade das imagens processuais.
O último ato da ação penal no STF sobre a suposta tentativa de golpe foi a acareação entre o general Walter Braga Netto e o delator Mauro Cid, em 24 de junho deste ano.
Um ato de enorme relevância. Cid — sem nenhuma prova — acusa Braga Netto de entregar dinheiro para financiar o imaginado golpe. O general nega veementemente. Na véspera da acareação, vieram à tona diálogos em que o delator admitia que foi coagido pelos policiais federais em seus depoimentos: "queriam colocar palavras na minha boca" e "toda hora queriam jogar para o lado do golpe".
Acareação é um ato em que a gravação é essencial. Colocam-se frente a frente duas pessoas cujos depoimentos são contraditórios, permitindo que se perceba, por meio de gestos, expressões, frases e reações, quem está mentindo e quem está dizendo a verdade.
Surpreendentemente, determinou-se que a acareação não fosse gravada, fugindo completamente ao padrão estabelecido pelo próprio ministro relator. Todos os testemunhos foram gravados e disponibilizados na íntegra para a imprensa e público em geral. Como se não bastasse, os interrogatórios foram transmitidos ao vivo pela TV Justiça.
Se todas as audiências foram gravadas e até mesmo exibidas em tempo real, por que não mostrar justamente as imagens da acareação? A justificativa para negar a gravação foi "evitar pressões externas".
Antes de a acareação começar, após ter sido negada a gravação oficial, a defesa do general Braga Netto também foi impedida de gravar o ato por seus próprios meios. As duas negativas violaram a lei.
O Código de Processo Penal determina a gravação de depoimentos sempre que possível, para maior fidelidade. O Código de Processo Civil, aplicável nesta parte também para ações penais, permite que o advogado grave diretamente a audiência, independentemente de autorização judicial. O prejuízo, portanto, atingiu também o direito de defesa e as prerrogativas profissionais da advocacia.
Como resultado, a acareação não foi gravada e as palavras foram friamente transcritas para o papel. A sociedade, a imprensa e os demais ministros do STF (exceto o ministro Luiz Fux, que se fez presente) jamais poderão avaliar quem falou a verdade e quem apenas confirmou um roteiro acusatório imposto por uso de coação.
A negativa de gravação da acareação é apenas um exemplo de uma série de ilegalidades praticadas nesta ação penal, destacando-se a desnecessária prisão preventiva do general Braga Netto por mais de sete meses, a suspeição do ministro relator (juiz e vítima ao mesmo tempo) e a impossibilidade de acesso ao conjunto de provas.
Um processo penal viciado, conduzido na mais alta corte do país, produzirá efeitos negativos para os réus e contaminará um número indeterminado de outros processos. A ação caminha célere para um desfecho trágico, com graves violações legais e constitucionais. O momento exige vigilância e senso crítico de todos, tanto sobre o que se revela quanto sobre o que se tenta esconder.