por Janer Cristaldo
É o que os franceses chamam de “glissement de mots”. As palavras vão escorregando e acabam adquirindo um sentido oposto ao que antes significavam. Claro que tais escorregadelas não são inocentes. No século passado ocorreu uma, e das mais graves. A Rússia criou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E os europeus criaram a social-democracia. Os comunistas, num lampejo de marketing, associaram o socialismo europeu ao socialismo soviético. E toda Europa virou — pelo menos para os botocudos — socialista. Como se o socialismo comunista algo tivesse a ver com o socialismo social-democrata. Mas o sofisma pegou.
A humanidade marchava, então, rumo ao socialismo. Só que no socialismo de cá a imprensa era livre, livre era a expressão do pensamento, havia eleições com muitos partidos, e os cidadãos podiam ir e vir para onde bem entendessem. No socialismo de lá, todo pensamento dissidente era censurado, quem insistia em manifestar-se contra o regime ia para um gulag, havia um partido só e eleições, quando as haviam, eram sempre uma farsa, como ainda são, vide Putin. E quem quisesse sair do país que perdesse toda e qualquer esperança. Que razões teria alguém para sair do paraíso?
A palavrinha social-democrata adquiriu tanto prestígio que até um torturador oriundo do nazismo, da noite para o dia, virou social-democrata. Falo de François Mitterrand. Sua eleição é um desses mistérios que confunde qualquer analista político. Ninguém desconhecia sua participação no governo pró-nazista de Vichy, do qual recebeu, na primavera de 43, a Francisque, a mais alta condecoração conferida pelo marechal Pétain. Tampouco era desconhecida sua participação decisiva, como ministro do Interior, na guerra da Argélia e nas torturas praticadas pelo Exército francês. Defensor de uma Argélia francesa, Miterrand reprimiu com ferocidade os movimentos insurrecionais. Em setembro de 53, declarou: "Para mim, a manutenção da presença francesa na África do Norte, de Bizerte a Casablanca, é o primeiro imperativo de toda política". Em 54, afirmou na tribuna da Assembléia Nacional: "A rebelião argelina não pode encontrar senão uma forma terminal: a guerra".
Para as esquerdas, virou socialista, tout court. Mas não era do detentor da Francisque que pretendia falar. E sim de Eugenio Bucci, articulista do Estadão, que pretende salvar os restos podres do socialismo, no caso, o socialismo comunista. Na edição de ontem, Bucci escrevia sobre a Yoani Sánchez, a blogueira cubana que se tornou internacionalmente conhecida contestando a ditadura dos irmãos Castro. E antes de ir adiante, vou esclarecendo que essa moça não me cheira bem. Desde quando, em uma ditadura, um cidadão pode denunciá-la, urbi et orbi, sem sofrer sanções? Há algo errado nisso tudo. Mas vamos ao Bucci:
“Com freqüência os relatos sobre as desventuras da blogueira vêm junto com um discurso que procura caracterizar a ditadura cubana como a tragédia inevitável, fatal, de qualquer sonho socialista. Esse discurso se vale de Yoani para mentir, o que é bem fácil constatar. Todas as mudanças sociais vieram embaladas por ideais de igualdade, como a Revolução Francesa, ou de igualdade de oportunidades, como a Revolução Americana”.
Ora, se todas as mudanças sociais vieram embaladas por ideais de igualdade, como a Revolução Francesa, ou de igualdade de oportunidades, como a Revolução Americana, este não foi o caso da dita Revolução Cubana. Castro inspirou-se no socialismo soviético que, na época do levante em Cuba, já vinha fazendo água. Isso sem falar nas purgas stalinistas e nos gulags, denunciados já em 49 por Victor Kravchenko e em 56, no XX Congresso do PCUS, por ninguém menos que Nikita Krouschev, secretário do Partido.
Isto é, apenas três anos antes da dita revolução cubana, seu modelito, a União Soviética, admitia de público seu fracasso. Bucci quer puxar para mais atrás, para as revoluções francesa e americana, a inspiração da cubana. Como bom comunista, Bucci se pretende hábil em destorcer os fatos. Mas não engana quem seja minimamente informado. Inspirada no sonho socialista soviético, a ditadura cubana só podia resultar numa tragédia inevitável, fatal.
Prossegue o sofismador emérito: “Mesmo agora, a partir do final da 2ª Guerra, inúmeros governos declaradamente socialistas se sucederam na Europa, em perfeita convivência com a sociedade de mercado, sem que isso acarretasse uma degeneração de corte totalitário.”
Aqui, o sofismador emérito mostra as cartas que esconde na manga. Os inúmeros governos declaradamente socialistas que se sucederam na Europa são equiparados ao sonho socialista que teria inspirado Cuba. Ora, a Europa não se inspirou em ditadura soviética alguma para chegar onde chegou.
Impertérrito, o articulista vai adiante: “Tanto é assim que, no mundo contemporâneo, o ideário socialista de perfil não autoritário foi acolhido como proposta legítima e até mesmo necessária à normalidade democrática”.
Acontece, meu caro, que o ideário socialista de perfil não autoritário não é mais socialismo. É social-democracia.
Bucci admite a ditadura em Cuba — e cego seria se não admitisse — e vê a ela duas oposições, a de direita e a de esquerda: “Por esse ângulo é que podemos entender o lugar de uma oposição de esquerda à tirania dos irmãos Castro, uma oposição que não se confunde com as causas da direita. Ela não se serve da falta de liberdade como pretexto, mas toma a liberdade como fim”.
Ou seja, oposição de direita não vale um vintém. Só pode opor-se à ditadura cubana quem for de esquerda. O comunista irrecuperável, no fundo, está afirmando: “só nós, de esquerda, podemos criticar nossas ditaduras”.
Comunismo é como caxumba. Ou dá na adolescência ou provoca esterilidade.
A humanidade marchava, então, rumo ao socialismo. Só que no socialismo de cá a imprensa era livre, livre era a expressão do pensamento, havia eleições com muitos partidos, e os cidadãos podiam ir e vir para onde bem entendessem. No socialismo de lá, todo pensamento dissidente era censurado, quem insistia em manifestar-se contra o regime ia para um gulag, havia um partido só e eleições, quando as haviam, eram sempre uma farsa, como ainda são, vide Putin. E quem quisesse sair do país que perdesse toda e qualquer esperança. Que razões teria alguém para sair do paraíso?
A palavrinha social-democrata adquiriu tanto prestígio que até um torturador oriundo do nazismo, da noite para o dia, virou social-democrata. Falo de François Mitterrand. Sua eleição é um desses mistérios que confunde qualquer analista político. Ninguém desconhecia sua participação no governo pró-nazista de Vichy, do qual recebeu, na primavera de 43, a Francisque, a mais alta condecoração conferida pelo marechal Pétain. Tampouco era desconhecida sua participação decisiva, como ministro do Interior, na guerra da Argélia e nas torturas praticadas pelo Exército francês. Defensor de uma Argélia francesa, Miterrand reprimiu com ferocidade os movimentos insurrecionais. Em setembro de 53, declarou: "Para mim, a manutenção da presença francesa na África do Norte, de Bizerte a Casablanca, é o primeiro imperativo de toda política". Em 54, afirmou na tribuna da Assembléia Nacional: "A rebelião argelina não pode encontrar senão uma forma terminal: a guerra".
Para as esquerdas, virou socialista, tout court. Mas não era do detentor da Francisque que pretendia falar. E sim de Eugenio Bucci, articulista do Estadão, que pretende salvar os restos podres do socialismo, no caso, o socialismo comunista. Na edição de ontem, Bucci escrevia sobre a Yoani Sánchez, a blogueira cubana que se tornou internacionalmente conhecida contestando a ditadura dos irmãos Castro. E antes de ir adiante, vou esclarecendo que essa moça não me cheira bem. Desde quando, em uma ditadura, um cidadão pode denunciá-la, urbi et orbi, sem sofrer sanções? Há algo errado nisso tudo. Mas vamos ao Bucci:
“Com freqüência os relatos sobre as desventuras da blogueira vêm junto com um discurso que procura caracterizar a ditadura cubana como a tragédia inevitável, fatal, de qualquer sonho socialista. Esse discurso se vale de Yoani para mentir, o que é bem fácil constatar. Todas as mudanças sociais vieram embaladas por ideais de igualdade, como a Revolução Francesa, ou de igualdade de oportunidades, como a Revolução Americana”.
Ora, se todas as mudanças sociais vieram embaladas por ideais de igualdade, como a Revolução Francesa, ou de igualdade de oportunidades, como a Revolução Americana, este não foi o caso da dita Revolução Cubana. Castro inspirou-se no socialismo soviético que, na época do levante em Cuba, já vinha fazendo água. Isso sem falar nas purgas stalinistas e nos gulags, denunciados já em 49 por Victor Kravchenko e em 56, no XX Congresso do PCUS, por ninguém menos que Nikita Krouschev, secretário do Partido.
Isto é, apenas três anos antes da dita revolução cubana, seu modelito, a União Soviética, admitia de público seu fracasso. Bucci quer puxar para mais atrás, para as revoluções francesa e americana, a inspiração da cubana. Como bom comunista, Bucci se pretende hábil em destorcer os fatos. Mas não engana quem seja minimamente informado. Inspirada no sonho socialista soviético, a ditadura cubana só podia resultar numa tragédia inevitável, fatal.
Prossegue o sofismador emérito: “Mesmo agora, a partir do final da 2ª Guerra, inúmeros governos declaradamente socialistas se sucederam na Europa, em perfeita convivência com a sociedade de mercado, sem que isso acarretasse uma degeneração de corte totalitário.”
Aqui, o sofismador emérito mostra as cartas que esconde na manga. Os inúmeros governos declaradamente socialistas que se sucederam na Europa são equiparados ao sonho socialista que teria inspirado Cuba. Ora, a Europa não se inspirou em ditadura soviética alguma para chegar onde chegou.
Impertérrito, o articulista vai adiante: “Tanto é assim que, no mundo contemporâneo, o ideário socialista de perfil não autoritário foi acolhido como proposta legítima e até mesmo necessária à normalidade democrática”.
Acontece, meu caro, que o ideário socialista de perfil não autoritário não é mais socialismo. É social-democracia.
Bucci admite a ditadura em Cuba — e cego seria se não admitisse — e vê a ela duas oposições, a de direita e a de esquerda: “Por esse ângulo é que podemos entender o lugar de uma oposição de esquerda à tirania dos irmãos Castro, uma oposição que não se confunde com as causas da direita. Ela não se serve da falta de liberdade como pretexto, mas toma a liberdade como fim”.
Ou seja, oposição de direita não vale um vintém. Só pode opor-se à ditadura cubana quem for de esquerda. O comunista irrecuperável, no fundo, está afirmando: “só nós, de esquerda, podemos criticar nossas ditaduras”.
Comunismo é como caxumba. Ou dá na adolescência ou provoca esterilidade.
Fonte: Janer Cristaldo
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