por Janer Cristaldo
Depois que Obama o definiu como “o cara”, depois que Le Monde o indicou como o Homem do Ano, depois que El País o considerou a Personalidade do Ano, depois que se começa a falar em seu nome para a Academia Brasileira de Letras e até mesmo para o Nobel da Paz, ninguém se espante de que o Cara se sinta autorizado a proferir qualquer bobagem.É fácil entender o fascínio dos europeus por Lula. A elite intelectual da Europa — salvo honrosas exceções — durante todo o século passado teve o coração à esquerda. Adoram a ideia de um presidente operário. Desde que não seja lá. Mas là-bas, au bout du monde. Lech Walesa na Polônia? Maravilha. Desde que não seja em Paris, Roma, Londres ou Berlim. Lula là-bas, au Brésil? Oui, ça va. Porquoi pas?
O sucesso é uma soma de equívocos. Que o diga Jerzy Kosinski. Em março de 2003, no artigo "O Vidiota do Planalto", eu comentava seu livro, Being There. Chance Gardiner, o personagem, da vida só conhece o jardim onde se criou. Guindado a contatos com figurões da política, por circunstâncias ocasionais, é confundido com um economista. Pergunta-lhe o presidente dos Estados Unidos: “E você, Mr. Gardiner, o que pensa do mau clima na Bolsa?”
Como se sente obrigado a uma resposta, Chance fala da única coisa que conhece: “Em um jardim, há uma estação para o crescimento das plantas. Há a primavera e o verão, mas também o outono e o inverno. E depois, a primavera e o verão voltam. Enquanto as raízes não forem cortadas, tudo está bem, e tudo continuará bem”. O presidente se mostra satisfeito: “Mr. Gardiner, devo confessar que o que você acaba de dizer é uma das declarações mais reconfortantes e otimistas que me foi dado ouvir, desde há muito tempo.”
Este diálogo — que não só poderia ocorrer nos dias que passam, como de fato ocorrem — pertence ao universo da ficção. O escritor polonês Jerzy Kosinski, ao chegar aos Estados Unidos, criou em Being There um dos personagens mais perturbadores de nossa época, Chance Gardiner. Quem não leu o livro, pode ainda pegar o filme, que passou no Brasil com o título de Muito além do Jardim e tem uma interpretação magnífica de Peter Sellers.
O tradutor brasileiro do livro teve um momento de iluminação ao traduzir o título americano por O Vidiota, isto é, o idiota do vídeo. Gardiner é um empregado doméstico de um misterioso senhor, identificado na obra como "o Velho". Chance vive recluso no jardim da mansão e só teve contato, em toda sua vida, com duas pessoas, o Velho e a criada do Velho. Chama-se Chance porque nasceu por acaso. Não sabe ler nem escrever. Seu único contato com o mundo exterior é através da televisão. Quando o que vê não lhe agrada, é simples: desliga o aparelho ou muda de canal com o controle remoto.
Morre o Velho e Chance é largado no mundo pelos criados. Sem lenço nem documento, literalmente. Quando a esposa de um magnata o atropela na rua e lhe pergunta quem é, diz: I’m the gardener. E passa a ser conhecido como Chance Gardiner. Como não portava nem dinheiro nem documentos, a mulher do homem de negócios considera que deve ser alguém muito importante e o recolhe à sua casa. Chance, sem jamais ter pensado no assunto, passa a fazer parte do círculo do poder. Quem leu o livro ou viu o filme conhece o fim da história: a força de repetir chavões que ouviu na televisão, Chance faz uma brilhante carreira na mídia e começa a ser cogitado para presidente dos Estados Unidos.
Estamos vivendo em plena época Gardiner, de ascensão do analfabeto — escrevia eu então. Com a televisão, qualquer iletrado pode ter uma ideia mais ou menos geral do que ocorre em torno a si e no mundo. A rigor, ninguém precisa mais ler para entender — ou supor que entende — o mundo. Se o jardineiro de Kosinski pertence ao universo da ficção, nosso vidiota é muito real. Virou Homem do Ano para dois importantes jornais europeus e é o Cara, para o homem mais poderoso do mundo.
Muito poucos europeus ou americanos leem português. E, quando leem, obviamente não leem a imprensa brasileira. Não têm conhecimento do mensalão, do caixa 2 do PT, das maracutaias que Lula encobre em sua família, da cooperativa de bancários que lesou três mil famílias para financiar campanhas do PT e o bem-estar de seus agitprops, dos assassinatos que envolvem, das relações do partido com o terrorismo. Então, tout l’honneur au paltoquet. Paltoquet é uma antiga palavra hoje quase desconhecida pelos franceses, que significa homem rude, grosseiro.
Só que agora Lula se pronunciou — e desastradamente — sobre problema que europeus e americanos conhecem muito bem, a repressão aos dissidentes políticos em Cuba. Sem falar que também fez sua cama na Itália, ao tomar as dores de um terrorista italiano. Ao afirmar que "temos que respeitar a determinação da justiça e do governo cubanos, como quero que respeitem o Brasil", manifestou apoio total à mais antiga ditadura, não só do continente, mas do planetinha.
Se bem que o tal de Fariñas não é exatamente flor que se cheire. Considera-se "um filho da revolução". Pelo que dizem os jornais, seu pai lutou com Che Guevara no Congo em 1965 e ele mesmo serviu na campanha de Angola, em 1981. Quer dizer, seu pai foi cúmplice da ditadura que hoje o encarcera, e Fariñas dela também foi cúmplice há menos de vinte anos.
Ao saber do pronunciamento de Lula sobre a morte de Orlando Zapata Tamayo, quando comparou os dissidentes em Cuba com os bandidos de São Paulo, Fariñas disse que Lula é "cúmplice da tirania dos Castro". Que esqueceu o próprio passado. Ora, cúmplice dos Castro Fariñas também foi. E pelo jeito também esqueceu o próprio passado. Está contestando uma ditadura que ajudou a construir. É o roto reclamando ao descosido. É rato fugindo do barco que afunda.
Quanto ao Apedeuta, demonstra total desrespeito à justiça e ao governo italianos, ao proteger um criminoso legalmente condenado na Itália. Enfim, o mal está feito. Le Monde e El País, jornais que se pretendem defensores da democracia, liberdades e direitos humanos, não vão retirar-lhe o título concedido. Mesmo com sua defesa incondicional de uma ditadura que vige há mais de meio século. A imprensa européia está alimentando o ego de defensores de tiranos.
Cria cuervos — dizem os espanhóis. Y te picarán los ojos.
Fonte: Janer Cristaldo
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