segunda-feira, 6 de junho de 2022

O Que Não Foi Contado Sobre o Dia D

Foto: Getty Images (Colorido por Marina Amaral)
Momentos de loucura, atos heroicos, deserções, ataques inúteis e inclusive paradas no meio de um bombardeio para tomar chá… O prestigiado historiador britânico Antony Beevor nos conta a batalha da Normandia durante a Segunda Guerra Mundial.
por Antony Beevor 
historiador militar
Hoje, dizemos que a vitória do dia D na Batalha da Normandia era incontestável, tendo em vista a superioridade aérea e naval dos aliados.
Se reuniram 7700 barcos e 12.000 aeronaves. Os pilotos narraram depois que havia tal quantidade de embarcações que parecia possível chegar à França andando
Sem dúvidas, na historia nada está predeterminado. Naquele momento, não estava clara a linha entre o triunfo e o desastre absoluto.
No domingo, 4 de junho, o general norte-americano Eisenhower se reuniu com os comandantes aliados em seu posto de comando de Southwick House, ao norte de Portsmouth. Deviam tomar uma decisão crucial: aceitar a previsão dos meteorologistas de que o tempo tormentoso ia melhorar em 6 de junho — não muito, mas o suficiente para entrar em ação — ou postergar toda a operação. 
Eisenhower decidiu por seguir adiante. Se houvesse decidido atrasar o desembarque por duas semanas, a enorme frota invasora teria topado com a pior tempestade do canal da Mancha nos últimos 40 anos. Não me agradam as especulações históricas baseadas em perguntas do tipo ‘¿Que teria ocorrido se…?’, mas é justo reconhecer que o mapa europeu de pós-guerra poderia seria bem diferente se a grande frota aliada houvesse sido dispersada pela tormenta. Teria sido necessário empreender novos preparativos partindo do zero outra vez.
Eisenhower leu o relatório meteorológico e decidiu atuar no dia 6. Se houvesse adiado, uma tempestade teria arruinado a operação.
Churchill queria partir desde a Itália e avançar pelo centro da Europa para evitar uma ocupação soviética. Mas teve que concordar com o desembarque: os americanos mandavam.
Winston Churchill tinha, ainda, outras razões para estar nervoso. Nunca havia aprovado o plano de invadir a Alemanha pelo noroeste da Europa. Isto foi imposto por Stalin e Roosevelt na reunião de Teerã em novembro anterior. Desde o século XVIII, a Grã Bretanha sempre havia preferido ‘a estratégia periférica’: usar a Marinha Real para desgastar o adversário numericamente superior. O sonho de Churchill era partir desde a Itália e avançar pelo centro da Europa para prevenir uma ocupação soviética; mas os americanos, agora, estavam no comando e defendiam ‘a estratégia continental’: o choque massivo de forças terrestres para destruir o inimigo frontalmente.
Todos os que tomaram parte do dia D  soldados, marinheiros ou aviadores  nunca esqueceriam a imagem prévia ao desembarque. A frota reunida para a invasão era a maior da historia: 7.700 barcos e 12.000 aeronaves. Os pilotos contaram depois que, visto do céu, o mar estava tão abarrotado de embarcações que parecia possível chegar caminhando à França.
Seguimos considerando o Dia D e os enfrentamentos na Normandia como uma luta de americanos e britânicos contra alemães. Mas foi a batalha mais multinacional da guerra. Uma divisão canadense desembarcou na praia de Juno. Comandos franceses se lançaram ao assalto de Ouistreham, e paraquedistas franceses desceram sobre a Bretanha. Houve navios de nove países, assim como esquadrilhas aéreas tripuladas por canadenses, neozelandeses, australianos, rodesianos, polacos, franceses, belgas, holandeses, noruegueses…

A dor da população francesa
Há que ter em conta o sofrimento experimentado pelos civis franceses durante a invasão da Normandia. Eisenhower e os estrategistas da invasão sabiam que os aliados encontrariam graves dificuldades ao pisarem na orla, porque os alemães tratariam de reforçar rapidamente suas tropas com blindados Panzer. Por isso idealizaram a chamada ‘Operação Transporte’; o plano era bloquear e isolar a área da invasão mediante o bombardeio das pontes do Loire, no sul; e as do Sena, ao leste… e destruir os povoados e cidades que levavam às praias.
Ao inteirar-se da estimativa de baixas civis, Churchill se horrorizou. Tratou de estabelecer um limite de 10.000 mortos, mas, por insistência do general Eisenhower, Roosevelt finalmente teve a última palavra. As vítimas civis foram 15.000 mortos e até 100.000 feridos só durante os bombardeios preparatórios. Outros 20.000 faleceram nos enfrentamentos na Normandia entre 6 de junho e meados de agosto.
Em alguns locais da Normandia, o bombardeio aliado de áreas urbanas não só foi evitável mas, também, dificultou o avanço, sem prejudicar os alemães. Saint-Lo em agosto de 1944.
Foto: Getty Images (Colorido por Marina Amaral)
A cidade de Caen foi destruída pelos bombardeios de 6 de junho e em 7 de julho. Os soldados britânicos que observaram os fatos sentiam que a terra tremia como gelatina sob seus pés. Davam por certo que a cidade normanda havia sido evacuada, mas não era o caso. Um jornalista perguntou mais tarde, a um dos civis, sobre a sensação vivida durante o bombardeio. O homem respondeu: «Imagine um rato metido dentro de uma bola de futebol durante uma partida internacional. Assim era como nos sentíamos».
Os ajudantes de Hitler não se atreveram a desperta-lo na manhã da invasão. O Führer havia reservado para si o controle dos Panzer.
Em alguns lugares  sobretudo em Caen , o bombardeio da área urbana não só foi evitável, mas também resultou contraproducente, já que dificultou o avanço aliado sem prejudicar os alemães. Em seu conjunto, o sucedido mostra um importante paradoxo. Os exércitos das democracias muitas vezes terminam por matar grande número de civis, pela simples razão de que seus comandos se veem submetidos à pressão da imprensa e do parlamento na retaguarda; a insistência em reduzir ao mínimo as baixas entre suas tropas os leva a exagerar no uso da artilharia e dos bombardeios aéreos.
Rommel foi o primeiro a empregar a expressão ‘o dia mais longo’. Queria sublinhar com isso, o fato de que os alemães só teriam a oportunidade de derrotar os invasores no curso das primeiras 24 horas. Compreendia que, uma vez que os aliados estivessem bem assentados nas praias, os alemães estavam condenados à derrota final. O colossal apoio aéreo e a poderosa artilharia dos barcos aplastariam qualquer contra-ataque em grande escala. Rommel teve a ideia de deslocar divisões Panzer próximas ao litoral, mas encontrou a oposição de seus colegas, que insistiam em mantê-las nos bosques do norte de Paris. Hitler, ao final, tomou as rédeas no assunto e decidiu controla-las pessoalmente desde seu refugio de Berghof, na Alemanha … mas seus assistentes não se atreveram a despertá-lo durante a decisiva manhã da invasão.
Nos ataques aliados a povoados franceses houve 15.000 mortos e até 100.000 feridos só nos bombardeios preparatórios.
Getty Images (Colorido por Marina Amaral)
As divisões alemãs de infantaria adstritas ao 7º Exército, defensor da Normandia, não contavam com homens suficientes, estavam mal armadas e haviam sido adestradas de forma deficiente. Em poucas palavras: não eram bastante fortes para enfrentar os aliados. A invasão logo se converteu em uma batalha de desgaste. Em 10 de junho, quatro jornadas depois do dia D, os aliados e os alemães se encontraram com o avanço bloqueado.

Um massacre brutal
Se supunha que a matança se produziria no mesmo dia D, mas ocorreu mais tarde e no interior da França. Foi então quando as baixas britânicas superaram em 80 por cento as estimativas dos comandos, para angustia de Montgomery e do Secretariado de Guerra. Churchill chegou a preguntar se restaria um exército britânico em pé quando os aliados chegassem a Berlin. No curso da batalha da Normandia, os combates foram tão sangrentos como na frente russa. De fato, as baixas mensais alemãs, por divisão, duplicavam a media registrada na Rússia.
Os porta-vozes da propaganda soviética posteriormente insistiram que os aliados, na Normandia só tiveram que fazer frente aos despojos do exército alemão. Mas a realidade foi que britânicos e canadenses se encontraram ante a maior concentração de divisões Panzer das SS desde a colossal batalha de Kursk.
Os combates em terra normanda resultaram muito mais duros do que o previsto pelo comando aliado. Se supunha que os alemães estariam desmoralizados e aterrorizados pelas incursões aéreas, mas a má visibilidade daquele mês de junho extremamente chuvoso reduziu muito a superioridade aérea aliada. O alto comando também havia subestimado a capacidade do inimigo para defender-se em um terreno como aquele. Em Bocage, na claustrofóbica paisagem normanda de pequenos campos e espessas sebes, os alemães conseguiram infligir pesadas baixas a forças imensamente superiores cavando e usando camuflagem habilmente.

Baixas psiquiátricas
Outras vezes, as baixas eram causadas pela ‘fadiga de combate’, o que hoje se chama ‘transtorno de estresse pós-traumático’. Os números avultam. No lado aliado, o número de baixas por motivos psicológicos foi muito alto, uns 30.000 casos só no 1º Exército estadunidense. Por outro lado, os psiquiatras militares americanos e britânicos não entendiam como tão poucos prisioneiros alemães pareciam sofrer fadiga de combate, apesar dos intensos bombardeios que levavam tempo suportando. Suspeitavam que era pelo doutrinamento nazista. Um médico militar alemão feito prisioneiro, o doutor Damman, considerava que «a propaganda alemã que insta os homens à salvação da pátria contribuiu para limitar o número de baixas por causas neuropsiquiátricas».
O certo é que o exército de Hitler simplesmente não reconhecia a fadiga de combate como doença. Seus oficiais seguramente se haveriam burlado da brandura da disciplina entre os aliados. Seus novos soldados chegavam a ponta de bota. E se disparassem contra suas próprias mãos ou pés, simulando terem sido feridos em combate, eram executados sem delongas. Um  Obergefreiter (recruta) designado à 91ª Divisão Luftlande, relata em uma carta datada em 15 de julho: «Krammer, um jovem, competente e valoroso, cometeu a estupidez de dar um tiro na mão. Agora vão fuzilá-lo».
A carnificina não se deu no dia D, mas depois, no interior da França. Os combates foram tão sangrentos como na frente russa.
As unidades alemãs tinham um problema bem distinto. O ódio visceral gerado pelas mortes de amigos em combate, de noivas ou de familiares falecidos sob as bombas aliadas produziu o fenômeno dos verrückte Helmuts, ‘os Helmuts loucos’. Em quase todas as companhias havia ao menos um destes personagens, convencidos de que já não tinham razões para seguir vivendo, a não ser pela obsessão de matar para vingar-se.
Nem todos os soldados alemães eram fanáticos ou membros das SS. Nas divisões de infantaria, as atitudes podiam ser bem distintas. Eberhard Beck, integrante da 277ª Divisão de Infantaria, escreveu: «Tínhamos claro que a guerra já havia terminado tempos atrás. O único que nos importava era sobreviver. Por minha parte sempre estava pensando nisso». E acrescenta: «Um ferimento, hospital de campanha, hospital na Alemanha, o lar, o final da guerra… O único que me interessava era escapar daquela desolação».

O valor no combate
A questão do valor no combate se reveste de imensa importância.
Os alemães não se desmoralizaram ante a enorme mobilidade aliada: se entrincheiraram e camuflaram muito bem. Na foto, uma vítima aliada do desembarque. Foto: Getty Images (Colorido por Marina Amaral)
Há muito poucos homens que não saibam o que é o medo; de fato, os valentes são aqueles que chegam a superar esse sentimento.
Um informe britânico realizado pouco depois da invasão da Normandia deixava claro que, em um pelotão de uns 30 homens, um pequeño punhado acostumava a assumir o peso do combate, outro reduzido grupo fazia o possível por evitar a luta e até por desaparecer do combate, enquanto que a maioria situada entre ambos grupos secundava os lutadores se as coisas iam bem … mas se deixava tomar pelo pânico e tirava o corpo fora quando pareciam de má previsão.
Montgomery ficou tão chocado ao ler esse documento que fez com que o suprimissem. Sem dúvidas, suas conclusões eram verazes no fundamental, e assim o confirmaram outros estudos realizados por outros exércitos. Em geral, os soldados até se abstinham de disparar suas armas durante o combate. Curiosamente, nos arquivos russos foram encontrados indícios de que os oficiais do Exército Vermelho suspeitavam o mesmo de seus próprios homens. Um oficial muito condecorado chegou a dizer que seria oportuno revisar todos os fuzis, imediatamente depois de cada luta com o inimigo, e fuzilar no ato, como desertor, a todo soldado cuja arma não houvesse sido disparada.
Os alemães logo verificaram que os britânicos eram muito arrojados ao defender-se, mas cautelosos na ofensiva. O fenômeno se explicava por numerosas razões, mas convém recordar que, em 1944, o país levava quase cinco años em guerra, pelo que o cansaço era considerável. E a medida que se acercava o final da contenda, cada vez mais homens queriam sair vivos fosse como fosse. Além disso, soldados e suboficiais também se haviam politizado muito mais que na Primeira Guerra Mundial. Como resultado desenvolveram uma mentalidade ‘sindicalista’ que influía no que, a seu modo de ver, podia ou não ser exigido deles. Uma mentalidade que os levava a limitar-se a fazer o trabalho designado e fim. Um canadense observou que os sapadores britânicos consideravam que disparar contra o inimigo não era tarefa deles; e que o pessoal da infantaria se negava «a aterrar uma cratera ou dar uma mão quando um veículo tinha problemas para avançar em um atoleiro». Dita atitude era praticamente desconhecida nos exércitos alemão ou estadunidense.
Em um pelotão de 30 homens só uns poucos entravam em combate, segundo assinalaram informes britânicos e americanos.
Ingleses com um guia da França antes de desembarcar. Os americanos se assombravam de que os britânicos desfrutavam de pausas regulares para tomar chá. Além disso, haviam desenvolvido uma mentalidade sindicalista, diz o historiador, e se limitavam a fazer o que era mandado.
Os observadores americanos e canadenses também ficavam atônitos ao ver que o soldado britânico se encontrava muito normal ao disfrutar de pausas regulares para tomar chá ou fumar. No mesmíssimo dia D, um número assombroso de britânicos, exaustos ao chegar à orla, consideraram que faziam jus a um merecido descanso. Um oficial estadunidense de ligação comentou que «muitos deles diziam que, com o chegar à terra, já haviam feito bastante, e que tinham tempo de sobra para fumar um cigarro, e até para beber uma xícara de chá, em lugar de seguir adiante com a missão de desmantelar as defesas do inimigo e adentrar no território».
Fonte: tradução livre de XL Semanal

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