por Ipojuca Pontes
“Toca, toca minha gente/Toca, toca a reunir/
Que os matutos quebra-quilos/Por aí não tardam a vir”
Que os matutos quebra-quilos/Por aí não tardam a vir”
(Cantiga nordestina do século XIX)
Em 26 de julho de 1862, o imperador D. Pedro II, com o objetivo de criar meios práticos de controle fiscal e ao mesmo tempo auferir novos recursos financeiros para sustentar os gastos da Corte estabelecida no Rio de Janeiro, assinou uma lei que revogava o sistema de pesos e medidas então vigentes no país. Conforme relatos históricos, a lei impositiva tratava de substituir as antigas medidas de superfície, capacidade e peso (tais como palmos e polegadas, e pesos calculados em arroubas e libras) por novos padrões de quilograma, metro e litro, oficializando-se, com isso, em todo o território nacional, o sistema métrico decimal vigente na França desde o início do século XIX. A regulamentação da lei, no entanto, só foi efetuada dez anos mais tarde, em 1872, por força de instrução baixada pelo então ministro da Agricultura e Comércio da Corte, Francisco do Rego Barros. No ano seguinte, precisamente em 1º de julho de 1873, a lei imperial entrou em vigor e, tal como pretendiam os burocratas da Corte, as mercadorias oferecidas no comércio e nas feiras públicas passaram a ser medidas segundo os novos ditames impostos pela Coroa.
Nos editais públicos afixados nas coletorias e cartórios das vilas e municípios ficava determinado que a partir daquela data, qualquer usuário do antigo sistema de pesos e medidas seria punido com a prisão de cinco a dez dias e multa de 10 a 20 mil réis, ficando o infrator obrigado a adotar os novos padrões de pesos e medidas.
Assim, para cumprir a lei e negociar sem temer as sanções legais, o comerciante, o pequeno proprietário e o artesão de produtos caseiros teriam de alugar ou adquirir junto às autoridades públicas os novos pesos e medidas — pagando por fora, como taxa extra, a sua aferição.
Pior ainda: ao lado da obrigatoriedade de aquisição (ou aluguel) da nova parafernália, os comerciantes passariam a enfrentar um encargo até então impensável, o “Imposto do Chão” — outra forma de tributo paga às autoridades municipais pelo privilégio de expor no chão das feiras suas mercadorias. Num Nordeste inóspito e retardatário, assolado pela crise da produção de açúcar e algodão — commodities em baixa nos mercados nacional e internacional —, a onda impositiva do governo levou ao desespero as populações das pequenas cidades, em particular os negociantes, criadores de gado e agricultores que tinham no comércio de produtos agrícolas e artesanais — tais como feijão, farinha, carne, queijo, milho, cachaça, peneiras, tecidos, etc. — a própria sobrevivência.
O resultado do acosso imperial não se fez esperar: numa crua manhã de outubro de 1874, lideradas pelo almocreve (indivíduo que tem por ofício alugar ou conduzir bestas de carga) João Vieira, o João Carga d`Água, centenas de pessoas desceram a serra do Bodopitá e invadiram a movimentada feira de Campina Grande, na Paraíba, se insurgindo contra as medidas do governo consideradas lesivas.
Aos gritos, munidos de porretes e bacamartes, os revoltosos passaram a quebrar os moldes de medidas dos feirantes. Em seguida, invadiram a Coletoria e a Câmara Municipal, onde, após rasgarem éditos e avisos, destruíram novos moldes e queimaram os arquivos contábeis do poder público repletos de multas. De quebra, os revoltosos jogaram os pesos no Açude Velho da cidade.
Entre os feirantes, foram distribuídos panfletos e manifestos advertindo a população de que ela seria a principal vítima das medidas infligidas pelo poder imperial, pois que, segundo o alerta, ao final das contas os aluguéis e compra dos novos moldes pagos à prefeitura seriam inevitavelmente repassados aos compradores.
Mais tarde, atacando a vila do Ingá do Bacamarte, nas vizinhanças de Campina Grande, os revoltosos do Quebra-Quilos invadiram a casa da Comarca e destruíram os novos editais do governo, obrigando o comandante da polícia local, José Aranha, a assinar um documento no qual se comprometia a acabar, de uma vez por todas, com “os novos impostos, a lei de recrutamento e a aplicação dos novos pesos e medidas e custas judiciais”.
Na capital da Paraíba, o então presidente da província, o magistrado Silvino Carneiro da Cunha, impotente diante da ação dos sediciosos, solicitou a ajuda da Corte, reconhecendo que estava “sem forças para manobrar, sem meios para fazer seguir em perseguição a esses desordeiros, que, certos da nossa fraqueza, ameaçam-nos a cada instante”.
Exaltada em prosa e verso pelo improviso poético dos repentistas sertanejos, em pouco tempo a Revolta dos Quebra-Quilos tomou conta não só dos vilarejos paraibanos, como logo se espraiou por boa parte das províncias nordestinas. Ela se alastrou por quase uma centena de cidades e vilas de Pernambuco, Alagoas e Rio Grande do Norte — chegando até ao Maranhão. Por toda parte, os revoltosos subvertiam a lei, rasgavam editais, invadiam cadeias, soltavam os presos, destruíam medidas e “quebravam” os quilos, livrando a população do “dilúvio armado pelos ladrões”, isto é: o novo sistema métrico decimal.
Após dois anos de muitos combates, a repressão veio solerte e firme. À Paraíba foram enviadas forças comandadas pelo coronel Severiano da Fonseca, irmão do marechal Deodoro, o futuro proclamador da República. No final, não apenas “os matutos e desordeiros” foram punidos pelo braço forte da lei. Padres e advogados solidários aos Quebra-Quilos receberam os castigos devidos, muitos deles supliciados pelo “colete de couro”, uma peça de couro úmido que, uma vez endurecida pelo calor do sol, sufocava a vítima entre golfadas de sangue pela pressão da veste.
Para alguns historiadores tupiniquins, o movimento dos Quebra-Quilos não tinha o menor conteúdo político em suas ações e propósitos. Em última análise, a revolta sertaneja enquadrar-se-ia como mera expressão da “desobediência civil” — uma forma incorreta de se definir o fenômeno, embora, de fato, não exista atitude política mais consciente do que o ato da desobediência civil, caracterizado pelo ensaísta Henry David Thoreau, rebelde que no século XIX se recusou a pagar impostos ao governo norte-americano, como uma forma de resistência à lei criada pelo Estado injusto, instituída para subtrair dos indivíduos seus direitos naturais e inalienáveis. (No dizer de Thoreau, o “Melhor governo é o que de fato não governa”).
Não deixa de ser inspirador o fato de saber que no Brasil, quase um século e meio atrás, tal como ocorreu em 1773 na rebelião do Boston Tea Party (que mais tarde desaguou na guerra da independência norte-americana), a população indignada se reuniu e lutou contra impostos que feriam suas liberdades e riquezas. Nos Estados Unidos atual, para enfrentar um governo pródigo em leis permissivas, como é o do socialista Barack Obama, a população insurgente restabeleceu o Movimento Tea Party para desalojá-lo do poder pela força do voto — no que se vai dando muito bem.
E aqui, no Brasil, restabelecida a famigerada CPMF no futuro governo (seja ele qual for), haverá força moral para se reeditar um movimento inspirado na sedição dos Quebra-Quilos?
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