por Alvaro de Souza Pinheiro
Num fato inédito e extremamente significativo na história militar contemporânea norte-americana, os Comandos do Exército e do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA divulgaram, oficialmente, em 15 de dezembro de 2006, um novo Manual que estabelece a mais recente doutrina referente às operações militares em ambiente de contra-insurreição. O fato de que o FM 3-24 (US Army Field Manual) e o MCWP 3-33-5 (Marine Corps Warfighting Publication) constituem a mesma publicação - "COUNTERINSURGENCY" - é uma demonstração cabal de quão importante se faz, na atualidade, o estabelecimento de uma doutrina comum de contra-insurreição para os corpos de tropa responsáveis pela condução do combate terrestre contra forças irregulares.O Manual pretende preencher um vazio doutrinário que há muito era vivenciado nas Forças Armadas norte-americanas. O último manual específico de contra-insurreição do Exército foi publicado há 20 anos, e no Corpo de Fuzileiros Navais, 25 anos. Esse sempre foi um tema visto com uma significativa conotação de desprezo pela grande maioria de profissionais norte-americanos, educados e profundamente bitolados no contexto do combate convencional, ficando o seu estudo, restrito a nichos específicos, sobretudo, às Forças Especiais.
A premissa básica de sua elaboração foi de que a atualização doutrinária, embora sem relegar estudos históricos, deveria contemplar, com especial relevância, as mais recentes experiências contemporâneas, colhidas nos Teatros de Operações do Afeganistão e do Iraque.
Sua elaboração foi desenvolvida no US Army Combined Arms Center, Fort Levenworth/Kansas, sob a liderança do LtGen David H. Petraeus que, na Operação Iraqi Freedom, comandou a conceituada 101st Airborne Division (Air Assault). Evidente que não é por mera coincidência que, concluída a elaboração deste Manual, o Gen Petraeus foi designado Comandante das Forças de Coalizão, no Iraque, função que desempenha desde de janeiro de 2007.
Considerações Gerais
A presente orientação doutrinária registra que tanto o Exército quanto o Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA reconhecem que as insurreições, ao longo do tempo, são contextuais e assim, não raro, apresentam as suas características próprias. A idéia vigente é que não é possível enfrentar fundamentalistas radicais islâmicos da mesma forma como se conduziu o combate ao Viet Cong (Vietnam) ou aos Moros (Filipinas). A aplicação de princípios e fundamentos para combater cada um desses grupos diferencia-se consideravelmente, principalmente, em função da diversidade de ambientes operacionais em presença. Não obstante, todas as insurreições, mesmo aquelas, atuais, caracterizadas por matizes altamente adaptáveis, possuem algumas características comuns. Permanecem conflitos desenvolvidos em meio a populações civis não combatentes, com intensiva presença de forças irregulares, as quais, embora extremamente heterogêneas no que se refere às suas capacitações, utilizam-se de idéias-força padronizadas e, normalmente, conduzem suas ações num contexto reconhecidamente revolucionário, cujo grande objetivo é a queda do regime vigente e a tomada do poder com o emprego da subversão e da luta armada.
Todos esses aspectos são considerados levando-se em conta um fator complicador de grande complexidade na condução da Estratégia Militar Norte-americana, que é a execução das operações de contra-insurreição no território de "Host Nations" (nações aliadas que recebem dos EUA, meios em pessoal e material, com destaque para forças militares, para fazer face a insurreições).
O Manual pretende estabelecer diretrizes doutrinárias que se constituam no foco principal de uma Campanha de Contra-Insurreição. Campanha essa que, conforme a mais atual concepção, deve ser planejada e conduzida num contexto misto de ofensiva, defensiva e operações de estabilização, executadas em presença de diversificadas linhas operacionais. Forças engajadas em campanhas dessa natureza, além de dotadas de capacitações específicas de combate, devem estar em condições de reconstruir infra-estruturas básicas, restabelecer serviços públicos essenciais, bem como instituições governamentais confiáveis e forças de segurança locais capazes de manter a lei e a ordem. É no equilíbrio entre essas atividades militares, essencialmente operacionais, e cívico-sociais, aparentemente antagônicas, que se fundamentará o êxito da Campanha.
O Manual preconiza que a condução eficiente e eficaz de campanhas de contra-insurreição demanda unidades de combate, apoio ao combate e logísticas adestradas, flexíveis, adaptáveis a diferentes cenários e, sobretudo, lideradas por comandantes ágeis, culturalmente bem informados e astutos.
Há que se ter em mente que, muito embora, as mais recentes intervenções militares norte-americanas após o término da chamada Guerra Fria incluam campanhas de significativa conotação não-convencional como as do Panamá (1989), Somália (1992-93), Haiti (1994), Bósnia (1995), Kosovo (1999), Afeganistão (2001 até agora) e Iraque (2003 até agora), de uma maneira geral, as operações contra forças irregulares têm sido negligenciadas tanto na política de segurança nacional quanto na doutrina militar norte-americana, desde o final da Guerra do Vietnam, há mais de 30 anos atrás.
O Manual tem por finalidade, reverter tal tendência, constituindo-se num documento de orientação do planejamento e da execução de operações dessa natureza, especificamente, para os escalões Batalhão e superiores (Brigada, Divisão e Corpo de Exército).
Síntese da Estrutura e do Conteúdo
O Manual inicia no Capítulo 1 - "INSURGENCY AND COUNTERINSURGENCY" - uma profunda e muito bem fundamentada descrição dos fundamentos básicos que têm marcado a evolução das insurreições e suas conseqüências nos processos de contra-insurreições. Destaca que em função da indiscutível superioridade militar convencional norte-americana, seus potenciais inimigos estão desenvolvendo técnicas, táticas e procedimentos de guerra irregular, a fim de criar ambientes operacionais característicos de conflitos assimétricos, onde se mesclam tecnologia moderna com antigos procedimentos de insurreição e terrorismo. Ressalta que é um significativo erro estratégico tentar vencer esse tipo de ameaça pelos meios convencionais tradicionais que enfatizam a manobra e o poder de fogo maciço e concentrado. Enfatiza que a experiência real tem demonstrado que tal tipo de concepção, via de regra, resulta em insucesso. Após analisar aspectos muito peculiares da atualidade, como por exemplo, a cerrada ligação entre a insurreição, o terrorismo e o crime organizado em diferentes partes do mundo, o Capítulo 1 destaca uma série de princípios básicos indispensáveis na condução de operações de contra-insurreição, concluindo com uma objetiva abordagem sobre a diferenciação das práticas operacionais que têm se mostrado bem e mal sucedidas.
No Capítulo 2 - "UNITY OF EFFORT: INTEGRATING CIVILIAN AND MILITARY ACTIVITIES" - o Manual apresenta uma visão da indispensável participação de organizações não militares, governamentais ou não, nas campanhas de contra-insurreição, destacando técnicas e procedimentos que facilitem a indispensável integração entre as atividades civis e militares. Considerações específicas são feitas a fim de otimizar a divisão de responsabilidades, bem como o estabelecimento de mecanismos de integração civil militares, com destaque para o "Civil Military Operations Center" (CMOC), indispensáveis na consecução do esforço de contra-insurreição.
No Capítulo 3 - "INTELLIGENCE IN COUNTERINSURGENCY" - o Manual enfoca sequencialmente: as características específicas da atividade de inteligência na contra-insurreição; a indispensável preparação de inteligência a ser realizada no ambiente operacional antecedendo as operações; aspectos essenciais do planejamento e da execução de operações de inteligência, reconhecimento e vigilância; aspectos essenciais da contra-inteligência e do contra-reconhecimento, como medidas essenciais de proteção da força; e a colaboração de inteligência com outras agências, inclusive da nação hospedeira. Nesse Capítulo fica evidente a máxima que, na atualidade, numa campanha de contra-insurreição bem sucedida, é impositivo que "a Inteligência conduza as Operações".
No Capítulo 4 - "DESIGNING COUNTERINSURGENCY CAMPAIGNS AND OPERATIONS" - o Manual descreve com profundidade as questões essenciais a serem consideradas nas metodologias que envolvem as diversas fases do planejamento das campanhas de contra-insurreição. Aqui estão contidos subsídios extremamente atualizados para o desenvolvimento do "Trabalho de Comando", quando do planejamento dos escalões Batalhão e superiores.
No Capítulo 5 - "EXECUTING COUNTERINSURGENCY OPERATIONS" - o Manual enfatiza os fundamentos essenciais da condução das operações contra-insurreição, abordando sequencialmente: a natureza das operações; as linhas operacionais lógicas na contra-insurreição; e as considerações essenciais nas diferentes abordagens do modelo empregado. Enfatiza que as operações devem ser conduzidas levando-se em consideração a visão holística do ambiente operacional em presença e serem permanentemente focadas na "Intenção do Comandante" que, por sua vez, é orientada pela "Situação Final Desejada".
No Capítulo 6 - "DEVELOPING HOST-NATION SECURITY FORCES" - o Manual aborda o complexo e crítico problema do desenvolvimento de forças de segurança da nação hospedeira. Destaque especial é dado à discussão das mais significativas questões relativas aos desafios a serem vencidos, meios a serem empregados e a perfeita definição da situação final desejada. Especial atenção é dada ao preparo de forças policiais locais eficientes e eficazes, bem como o seu papel na campanha de contra-insurreição.
No Capítulo 7 - "LEADERSHIP AND ETHICS FOR COUNTERINSURGENCY" - o Manual aborda com significativa relevância as questões relacionadas à liderança e à ética na contra-insurreição. Com base em experiências muito recentemente vivenciadas, algumas delas extremamente negativas e traumáticas, os princípios básicos orientadores da liderança tanto nos escalões mais elevados quanto nos menores são significativamente ressaltados. Nesse contexto, considerações de caráter ético, sobretudo no relacionamento com a população e com o pessoal das diferentes instituições da nação hospedeira, são significativamente ressaltadas. Tópicos específicos abordam condutas a serem diferenciadas quando de ações de combate e de ações policiais de controle da população e recursos; procedimentos relativos à minimização de baixas na população civil não combatente, inclusive assumindo os riscos que tais procedimentos exigem; e considerações essenciais, de caráter eminentemente ético, a serem permanente e prioritariamente observadas quando do aprisionamento e interrogatório de elementos suspeitos. Dois tópicos desse Capítulo impressionam pela ênfase das considerações: "Limits on Detention" e "Limits on Interrogation". A preocupação com os valores éticos e morais envolvidos no contexto do dilema de como extrair informações de prisioneiros, que venham a contribuir para a minimização de baixas nas suas forças, é abordada com um realismo ímpar. Há que se destacar que em nenhuma outra publicação doutrinária norte-americana, problemas dessa natureza foram abordados com tanto realismo, adequação e pertinência. E fica evidente que o processo de ensinamentos colhidos está rendendo significativos lucros.
No último Capítulo, Cap 8 - "SUSTAINMENT" - o Manual tece considerações sobre o apoio logístico a ser desenvolvido nas campanhas de contra-insurreição. Príncipios gerais básicos são objetivamente observados e chama a atenção as considerações feitas no tópico "Contracted Logistic Support", a respeito de como terceirizar atividades logísticas, inclusive por empresas da nação hospedeira. Trata-se também de tema que, até agora, não havia sido doutrinariamente considerado com tal profundidade.
O Manual é complementado por 5 Apêndices :
Appendix A- A GUIDE FOR ACTION;
Appendix B- SOCIAL NETWORK ANALYSIS AND OTHER ANALITICAL TOOLS;
Appendix C - LINGUIST SUPPORT;
Appendix D - LEGAL CONSIDERATIONS;
Appendix E - AIRPOWER IN COUNTERINSURGENCY.
E também por uma Bibliografia específica, um Glossário de Termos Militares e por Referências Militares.
Conclusão
A receptividade da divulgação do FM3-24/MCWP 3-33.5 - "COUNTERINSURGENCY" está sendo excelente, não apenas junto às Forças Armadas norte-americanas, como também na maioria das Forças Armadas do mundo ocidental. Grande parte dos exércitos da OTAN já está em processo de reformulação de seus documentos similares, tendo como base o recente manual norte-americano.
Tal receptividade não deve ser encarada como um evento conseqüente de imposições políticas. Não há dúvidas de que este é o documento doutrinário de contra-insurreição mais bem elaborado que o mundo ocidental já viu até os dias de hoje. E não é por mera coincidência que tenha sido concebido como fruto de ensinamentos colhidos em campanhas extremamente complexas que demandaram um significativo preço pago em sangue, não apenas de profissionais como também de civis não-combatentes, em diferentes partes do mundo e em diferentes épocas.
Inimigos potenciais e latentes dos EUA estão, cada vez mais, desenvolvendo táticas, técnicas e procedimentos que procuram fugir das formas tradicionais convencionais que caracterizam o formidável e, mais do que nunca, inigualável poder militar norte-americano. As vulnerabilidades demonstradas em campanhas históricas mal sucedidas tais como no Vietnam, no Líbano e na Somália têm orientado as atuais ameaças assimétricas que fundamentam a consecução de seus objetivos na subversão, na guerrilha e no terrorismo, sem abrir mão de evoluções tecnológicas como, por exemplo, as proporcionadas pela Internet.
A verdade é que os atuais conflitos armados do Sec XXI, caracterizados por intensiva presença de forças irregulares, não raro motivadas por dramático fanatismo religioso, mescladas no seio de massas populacionais de diferentes matizes, estão a demonstrar inequivocamente que o êxito não se fundamenta mais apenas em fatores eminentemente militares, muito pelo contrário.
O manual, recém concluído, materializa um esforço significativo que reconhece que campanhas de contra-insurreição são desenvolvidas a longo prazo e que não se mensura o sucesso com a contagem de inimigos irregulares capturados ou mortos, ou com o número de ataques diários bem sucedidos. Sobretudo, há que se ter paciência e determinação na consecução dos objetivos, atributos que nem sempre a sociedade norte-americana está disposta a demonstrar.
Mais do que "ganhar a guerra", na atualidade, é fundamental "ganhar a paz". Esse é o grande fundamento que sintetiza toda a dramática experiência colhida que está registrada neste novo Manual. Todavia, muito embora estejam fora de dúvidas os significativos reflexos positivos produzidos pelo advento desta magnífica publicação profissional militar, nada há que assegure que os EUA atingirão, em toda a sua plenitude, os seus atuais objetivos nacionais, tanto contexto global, na chamada "Guerra Global contra o Terror" quanto regionalmente, nos Teatros do Afeganistão e do Iraque.
Alvaro de Souza Pinheiro é
Analista Militar especialista em Operações Especiais e Guerra Irregular
Analista Militar especialista em Operações Especiais e Guerra Irregular
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