por Luiz Felipe Pondé
Ditaduras são horríveis. Mas tenho dúvidas quanto a esse debate. A primeira se refere à nossa capacidade de identificar ditaduras em processo de instalação. Todo mundo teria a mesma compreensão do que é uma ditadura? Acho que a Venezuela vive um sistema totalitário. Não importa se o presidente foi eleito. Hitler também foi eleito, não? Voto não garante democracia. Na hora que um sujeito tem voto popular para ficar o tempo que quiser no poder, para mim, se trata de uma ditadura.
Temo tudo que vem acompanhado de gente com camisetas iguais e berrando palavras de ordem. Teóricos espanhóis das novas constituições latino-americanas "gostam" destas reeleições e acham que plebiscitos contínuos garantem a democracia, como se o "povo" fosse índice de comportamentos e decisões democráticas. Piada de mau gosto. O golpe de 64 marca um mito fundador da esquerda brasileira. Sem ele, muita gente não teria carreira intelectual ou política. Teria soçobrado no esquecimento. Neste sentido, além de horroroso fato histórico, ela cumpre uma função mítica facilitando certas identificações, que, com o tempo, podem não significar muita coisa. Heróis "velhos" podem se revelar miseravelmente iguais aos seus inimigos. No caso brasileiro, a sobrevida de muitos "combatentes" contra a ditadura tem essa marca.
Outra dúvida se refere às vítimas da ditadura, verdadeiras ou falsas (sobre as falsas, proponho a leitura do livro "Os Demônios", de Dostoiévski, com seu personagem Stiépan Trofimovich Vierkhovienski, um intelectual preguiçoso, suposta vítima de perseguição por parte do czar).
Fala-se pouco acerca do fato de que muitos "combatentes" da ditadura brasileira eram amantes das ditaduras comunistas. Esse fato não muda a violência de nossa ditadura, mas deveria adicionar um dado de consciência histórica que não me parece receber a devida atenção por parte dos herdeiros do espólio simbólico das vítimas. Esta ausência de consciência histórica se dá porque muitos destes "herdeiros" estão comprometidos até hoje, de um modo ou de outro, com restos dos mesmos ideais totalitários que os animava na época. Seria pura vergonha?
Não se trata de relativizar o sofrimento real causado pela ditadura. Trata-se sim de perguntarmos em que medida muitos daqueles que sempre se colocam como reserva ética do país, por terem uma identidade construída em grande parte graças ao mito fundador da esquerda brasileira (o golpe de 64), não teriam, se vencido a batalha nos anos 60, ajudado a construir um sistema de opressão igual ou pior do que o que vivemos entre 64 e 85. Se levarmos em conta "os ídolos" de então (URSS, China, Cuba, Vietnã, Camboja), podemos supor que sim: teríamos acordado num grande gulag, afogados em sangue. Além do mais, existem ditaduras que são (apenas) um aparelho ideológico repressivo (portanto, tende a ser mais seletivo no massacre), outras visam "criar um homem novo e um mundo novo" (as comunistas), por isso tendem a massacrar mais gente (porque "detestam" o homem comum).
Repito para os leitores apressados: nada disso relativiza o sofrimento das vítimas, mas deveria implicar uma suspensão da falsa moral em relação aos argumentos que põem em dúvida a santidade democrática de muitas destas "vítimas". Quais argumentos são esses? Um deles é que grande parte do combate não era simplesmente entre inimigos da democracia e amigos da democracia, mas sim entre versões distintas de sistemas totalitários.
Nos anos 60 vivemos um "suspense" entre duas formas de totalitarismo. Quis a "história" que um vencesse. Tivesse vencido o outro, os assassinatos teriam sido aos montes; as perseguições, em vez de apoio da CIA, teriam apoio da KGB. Milhares de pessoas (as ditaduras comunistas adoravam grandes cifras) teriam sido torturadas e mortas em nome da revolução socialista (assim como acabaram sendo em países onde os "ídolos" de muitos dessas "vítimas" venceram a batalha). A monstruosa revolução cultural chinesa tinha apoio de muitos dos nossos "santos de 64".
Além disso, existe a dúvida acerca dos "resultados" — comunistas foram incompetentes. Seria bom acordarmos numa grande Cuba? Talvez hoje estivéssemos pior economicamente, atolados numa burocracia e num sistema marcado pelo medo e pelo atraso histórico. De alguma forma, fomos salvos do pior?
luiz.ponde@grupofolha.com.br
Fonte: Folha de São Paulo
COMENTO: o autor erra ao afirmar que o mito fundador das esquerdas brasileiras foi o movimento cívico de 1964. A canalha comunista — bem como os "pensadores" teuto-nazistas — já tinham o Brasil como alvo desde os anos 30, devido a sua até hoje não explorada "liderança natural" na América Latina. Em 64, nas palavras de Prestes, os comunistas já estavam no governo, só lhes faltava o poder. Erra, também, ao afirmar que na década de 60 do século passado houve uma disputa "entre duas formas de totalitarismo". O sistema que sempre se opôs ao comunismo ainda vige na maioria dos países pelo mundo todo e pode ser qualificado de muitas formas, nunca de "totalitarismo". O que ocorreu no Brasil pós-64 pode ser chamado até de autoritarismo, mas nunca totalitarismo — tão bem definido por Anna Harendt em "As Origens do totalitarismo" — que era o objetivo dos "jovens idealistas e revolucionários" da VPR, ALN, MR8 e tantas outras organizações que tinham o assassino Che Guevara como ídolo.
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