domingo, 18 de setembro de 2011

A Raiva da Femme Fatale

por Ricardo Menéndez Salmón
Dentro do riquíssimo, variado e longevo imaginário do Ocidente, a mulher tem merecido desde cedo, já nos textos seminais da cultura, uma consideração pejorativa. Não parece necessário insistir nos textos sagrados, com Eva à cabeça dos princípios negativos que regem o mundo, que a mulher com sua atitude destrói a ordem edênica e lança seu companheiro — e com ele a todos nós outros — ao mundo de esforço e dor que ainda hoje padecemos.
Galeria de fotos: Laura Acuña
O Pecado Original é uma queda que traz o signo da feminilidade entre seus escombros. A fruta proibida apresenta uma mordidela de mulher em sua carne apetitosa porém putrefata. A ideologia masculina que faz da imagem da mulher um elemento de desordem surge cedo, e o faz sempre em seus aspectos exemplares. É sabido que educar no medo é uma escola que gera amplos créditos.
Claro que os textos profanos não resultam menos explícitos. Basta pensar em algumas das protagonistas que  estruturam a identidade do povo grego  nosso ancestral mais assinalado em muitos aspectos , para degustar o fel da discórdia. É uma mulher, Helena, que com sua beleza desencadeia as guerras cantadas por Homero.
Os rapsódicos passaram discretamente sobre a ardente vontade de Paris, o ladrão de formosura, ou sobre as culpas do marido ciumento, o corno Menelau, para carregar as tintas do agravo sobre a princesa raptada, cuja peripécia entre dois mundos, o aqueu e o troiano, precipita matanças inumeráveis, desgraças sem  nome e todo tipo de cataclismas. A beleza se orienta desde seus alvores como fatalidade.
E o que dizer de Circe, a maga e bruxa, em cujas redes um dos caudilhos de Ilíada — o astuto e moderno Ulisses —, cai no regresso à sua moderada Ítaca. Circe é a envenenadora caprichosa que, por amor a um homem, converte em cervos os heróis gregos e os lança a um destino de bestas. A feitiçaria também desde cedo é restrita à imagem das mulheres. O contato da fêmea com os arcanos obscuros resulta quase uma petição de principio. A presciência é uma faculdade eminentemente feminina. Não há bolas mágicas em mãos varonis.
O que acrescentar que não já tenha sido dito sobre as Sereias, essas arrebatadoras forças que com seu canto enlouquecem os homens, transformam sua razão em delírio e varrem qualquer esperança de prudência? Corpos ambíguos, que pertencem ao mar e à terra, na posse de poderes inescrutáveis, e por outro lado objetos de perdição mediante o simples expediente de empregar sua voz. Não convém prestar ouvido aos cantos de mulheres: os trinados fúnebres, as palinodias de amor, as mais inocentes melodias podem levar em seu interior uma mensagem de desastre.
Pensemos por último, para não abandonar o mundo clássico, no teatro de Sófocles, Eurípides e Esquilo, esse recipiente do qual os gregos se serviram para educar, disciplinar e comover, e onde Medéia fecha com nota insuperável esta combinação de presenças violentas, confabuladas para domesticar, transformar e, em definitivo, destruir os homens. Nenhuma heroína da Antiguidade supera a sacerdotisa de Medéia em malignidade. Ela é a mulher capaz de cometer, por despeito, o crime de filicídio: matar a seus próprios filhos.
Mulheres que desobedecem aos deuses, mulheres cuja beleza transtorna aos homens, mulheres capazes de mudar a humanidade em animalidade, mulheres que só com o abrir a boca perturbam os sentidos, mulheres canibais do sangue de seu sangue. Em um termo: mulheres fatais.
Mudam os tempos e as artes, porém não mudam os aprendizados. Estas anciãzinhas perversas foram fecundas em descendência. Tenho ante meus olhos, enquanto redijo estas linhas, duas pinturas do final do século dezenove e começos do século vinte. As escolho por que são muito distintas em forma, em talento e no ponto de vista que adotam, porém por que ambas seguem contando a velha historia da mulher perversa.
Na primeira, datada em 1898 e titulada La tentación de San Antonio, um pintor menor, Lovis Corinth, retrata o probo asceta rodeado por um montão de formosas criaturas. Veladas ou desnudas, ruivas ou morenas, delgadas ou generosas em carnes, todas tentam acercar-se ao homem que se arranca os cabelos com uma mensagem em seus lábios: toca-me e arderás nos prazeres do inferno. A mediocridade da pintura não diminui potencia à mensagem que traslada: estas mênades ameaçam devorar bem mais que os genitais do bom Antonio.
A segunda pintura é muito bela. Datada em 1905 e realizada por Albert von Keller, Baronesa B. mostra uma mulher acomodada em companhia do que parece ser sua filha. A solidão que rodeia a mulher, e o fato de que está acompanhada por uma menina, não nos devem enganar. Esta baronesa parece infinitamente mais perigosa que a caterva de mulheres que rodeiam o santo.
Uma noite nesse leito, junto às peles que o rodeiam, as sedas insinuantes e a boca lasciva da modelo, faz empalidecer as desventuras do jovem Harker com as servas do conde Vlad na Transilvânia.
Em silencio, com o simples gesto melancólico de seus lábios entreabertos, a baronesa nos promete toda a desdita que encerra um corpo belo. Que pose com sua filha só acrescenta a estatura do dano. Ao fim e ao cabo, dentro de uns anos essa menina nos prometerá uma torrente parecida de desgraças.
Mais de vinte e cinco séculos mediam entre as fontes escritas do delírio feminino e estas representações pictóricas de uma mesma enfermidade. Galileu, as viagens transoceânicas, a Revolução Francesa, o magistério de Kant ou os ensinamentos de Darwin não lograram que nos desprendamos do manto de superstição: mutatis mutandis, as mulheres seguem sendo perigosas.
Deixo atrás a literatura e a pintura. Volto a mirada para a arte jovem do século passado, o cinema. Minha humilde filmoteca me sacode. Barbara Stanwyck em Perdição, Gloria Grahame em Os subornados, Rita Hayworth em Gilda, Ava Gardner em Pandora ou Linda Fiorentino em A Última Sedução sussurram o que há tempo sabemos: a mulher é uma fruta lasciva e corrupta, por cuja posse os homens matam, roubam, mentem, enlouquecem e traem  bandeiras, credos e princípios.
Porém já sabemos que a arte é extensa e a vida é curta. Com a mulher fatal ocorre o mesmo que com a baleia branca de Melville. Todos falam dela, porém muito poucos a tem visto. Minha educação sentimental e intelectual está repleta de mulheres sombrias, destruidoras, devoradoras; minha experiência pessoal me conduz a supor que essas mulheres só existem na imaginação culposa e culpável dos homens.
Projeções de um inconsciente torturado, ou simplesmente manifestações de um desejo não cumprido, nunca saciado, as mulheres que bebem absinto, se drogam com ópio e copulam a dentadas sob a lua cheia dos Cárpatos resultam suspeitosamente poucas como para ter sido frequentadas por tantos homens. Só houve uma Salomé; só uma Judith; só uma Mata Hari. O resto, o lugar comum, nos fala de mulheres correntes, mais ou menos formosas, mais ou menos inteligentes, mais ou menos cativas de seus medos.
Assim aproveitemos a politica-ficção e nos revolvamos no prejuízo. No ano 2400, quando o mundo seja chinês e as mulheres tenham tomado o poder, abundarão novelas, pinturas e películas povoadas por um novo tipo de ser. As heroínas que então regressem da guerra cairão em mãos de bruxos com capacidade de convertê-las em servas eletrônicas; as artistas representarão sobre leitos virtuais a homens lascivos posando junto a suas mascotes biônicas; as películas do século vinte e cinco, que veremos dentro de nossos cérebros, e não sobre telas de plasma, mostrarão machos armados com raios lazer e dotados de pênis de fibra ótica e vanádio, que tentarão convencer às vítimas da vez de que uma noite entre seus braços lhes promete um mundo de delito, concupiscência e fatalidade.
Pena não estar lá para aproveitar. Certamente, me encantaria representar o papel de homme fatal.
Fonte:  tradução livre da Revista Don Juan

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