por Percival Puggina
Vinte e quatro horas depois de o governo brasileiro anunciar a intenção de rever o prazo para liberação dos documentos classificados como sigilosos, o relator da ONU contra a tortura, Juan Mendez, conclamou "o Ministério Público e os juízes brasileiros a abrir processo contra torturadores", para revelar o que de fato ocorreu durante os governos militares e "para que toda a sociedade brasileira saiba do seu passado". Foi vapt-vupt. Saiu uma decisão que desagradou a esquerda aqui e imediatamente emergiu uma reação forânea, um toque de clarim, para arregimentar as forças internas. Quem disse que as iniciativas da esquerda fluem espontaneamente, de incontidos anseios populares?
Transparência é como respeito. É bom e eu gosto. Já acabar com o extraordinário instrumento da anistia é coisa bem diferente e em nada contribuirá para a maturidade política da sociedade brasileira. Foi exatamente como decorrência da anistia que essa maturidade começou a somar aniversários. Sua extinção restauraria o ambiente político anterior ao pacto que a estabeleceu.
Entendamo-nos. Tortura é prática de seres degenerados, que repugna toda consciência bem formada. No entanto, a utilização de funcionários sádicos, pervertidos, para extrair informação nos processos investigatórios era comum em nosso país (e em inúmeros outros) ao longo de séculos. Não foi uma invenção do regime militar vigente entre 1964 e 1985. Para constrangimento nacional, persiste ainda hoje, como tantas vezes vem a público e como em muitas outras não vem a público. Tanto isso é verdade que somente em 1988 a tortura foi constitucionalmente expulsa do ordenamento brasileiro — "não haverá tortura, tratamento desumano ou degradante" — dando origem a uma lei que a definiu como crime — pela primeira vez! — em 1997.
No entanto, insistentes campanhas promovidas pela esquerda em busca da canonização de seus terroristas e guerrilheiros convenceram a sociedade de que a tortura foi uma invenção dos militares contra os combatentes da democracia naqueles tristes anos loucos. Nem uma coisa nem outra. Nem foi ela uma invenção militar, nem eram beatos os que pegaram em armas contra o regime. Queriam derrubar um regime autoritário para implantar um outro muito pior, totalitário. É impossível diagnosticar na luta armada contra o regime militar a "justiça da causa" e a "inexistência de outra alternativa" que a sã doutrina jurídica exige para legitimar esse tipo de ação armada. De jeito nenhum! Guerrilheiros e terroristas, ávidos por democracia, nos anos 70, treinados em Havana, Moscou e Pequim? Fala sério.
Ofende todos os torturados de ontem e de hoje, o foco meramente político e revanchista da esquerda brasileira em relação à tortura e ao que aconteceu naquele período. Tal preocupação com direitos humanos não é merecedora de respeito.
Dado que a anistia foi para valer, fica a questão do conhecimento dos fatos. Eles jamais virão à tona através de uma Comissão da Verdade interessada apenas em meia verdade. Muito melhor seria abrir os arquivos e dar livre acesso a pesquisadores, historiadores e profissionais qualificados. Não haveria um "relatório da verdade" (provavelmente o mais mentiroso dos textos que viriam a ser produzidos) mas um conjunto de obras que enriqueceriam, desde várias perspectivas, o conhecimento dos fatos ocorridos naquele período. Ademais, isso seria preferível ao sigilo graças ao qual não há, hoje, um único livro didático sobre a história recente do Brasil que não torça e retorça os fatos segundo a perspectiva política da esquerda.
Abram-se, então, os arquivos. Eu gostaria muito de ver expostos e conhecidos os torturadores, os assaltantes de banco, os sequestradores, os terroristas. Mas não nos iludamos com que esse seja um anseio do povo. Não é.
O povo, o homem da rua, tem curiosidades bem mais triviais. Ele quer respostas que lhe são sonegadas por essa mesma esquerda tão preocupada com história e com transparência.
Ele quer informações sobre como aquele japonês pagava as contas do Lula. Quer informações sobre o Mensalão. Quer saber no que deram as investigações sobre o caseiro Francenildo e sobre assunto que derrubou a ex-ministra Erenice Guerra. Quer saber por que o governo exige sigilo sobre os custos das obras da Copa. Ou, também recente: por que e do que blindaram Palocci?
Isso o povo quer saber. Mas não lhe contam porque é imperioso que o povo esqueça. Que esqueça até de perguntar.
*Publicado, originalmente, no Diário do Comércio,
edição do domingo, 26/06/2011
Fonte: Blog do Percival Puggina
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