por Demétrio Magnoli (*)
"A Petrobrás é um Estado dentro do Brasil — felizmente, um Estado amigo", costumava dizer Lula. O primeiro elemento da ironia é indiscutível: os investimentos da petroleira em ciência e tecnologia são um múltiplo do orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia, e os investimentos em cultura e comunicação social são maiores que os dos Ministérios correspondentes. Infelizmente, o segundo elemento da ironia é discutível.
Desde a descoberta de petróleo no pré-sal, os investimentos da Petrobrás saltaram de R$ 16,5 bilhões, em 2006, para R$ 76,4 bilhões, em 2010. O endividamento cresceu paralelamente, atingindo R$ 117,9 bilhões no ano passado. Desse total, quase 40% representam dívidas com bancos públicos: BNDES, R$ 36,3 bilhões; CEF, R$ 5,66 bilhões; e BB, R$ 4,35 bilhões. Além disso, o BNDES detém quase R$ 44 bilhões em ações da petroleira. Sobre tais empréstimos a Petrobrás paga taxas de juros internacionais, ao redor de 6% ao ano. Contudo o capital de empréstimo dos bancos públicos deriva de aportes do Tesouro, que capta a taxas de juros anuais em torno de 12%. A diferença é paga por todos os brasileiros, ricos e pobres, que financiam a dívida pública. O "imposto Petrobrás", um tributo oculto, mas bem real, deveria conceder à Nação o direito de investigação das estratégias da petroleira. Mas quem está disposto a formular perguntas que incomodam o "Estado dentro do Brasil"?
A narrativa oficial, fixada pela bilionária publicidade da Petrobrás, sedimentada nos livros escolares, conta a epopeia de uma empresa triunfante, que fez do mar a fronteira do petróleo no Brasil. É uma história de esforços hercúleos, rupturas tecnológicas, recordes de perfuração sucessivos sob uma lâmina d"água sempre mais profunda. Mas, e se, fora do olhar do grande público, existir uma história não contada? Lula: "A Petrobrás é motivo de orgulho para nós. Se fosse uma mulher, seria a mulher com quem toda mãe gostaria que o seu filho casasse". Mas, e se, sob o rosto imaculado da mulher perfeita, existir uma fria manipuladora, uma carreirista hábil, uma egoísta sem limites em busca de dinheiro, poder e prestígio?
A estatal foi fundada em 1953. Logo em seguida contratou os serviços do geólogo americano Walter Link, um renomado ex-funcionário da Standard Oil, para avaliar o potencial petrolífero brasileiro. O Relatório Link foi preparado entre 1955 e 1960, com base apenas em levantamentos geológicos rudimentares. Ele recomendava que a Petrobrás voltasse as costas para o território continental, entregando-se à prospecção offshore. A primeira descoberta offshore deu-se em 1968 e seis anos depois a Petrobrás identificou petróleo na Bacia de Campos. Quando a empresa detentora do monopólio da exploração tinha apenas 15 anos, a marcha épica rumo às profundezas do mar já selava um destino: ninguém mais se preocuparia com o onshore.
Link quase nada conhecia sobre o potencial das bacias sedimentares onshore, que perfazem cerca de 5 milhões de km2 do território brasileiro. Pouco se sabe até hoje. Desde 1953, foram perfurados cerca de 24 mil poços exploratórios onshore no Brasil, um número ridiculamente pequeno se confrontado com a prospecção em países de tamanho comparável. Nos EUA, perfuraram-se milhões de poços pioneiros. No Canadá, perfuram-se anualmente pelo menos 25 mil poços, o equivalente a todas as perfurações pioneiras em terra na história petrolífera brasileira. A prospecção em terra custa uma fração da prospecção sob águas profundas. Os fantásticos investimentos offshore podem resultar em taxas de retorno insignificantes. Entretanto, redundam em imensa concentração de poder econômico e político. O "Estado dentro do Brasil" não busca exatamente petróleo, mas o incremento de seu próprio poder.
A descoberta de petróleo no pré-sal reproduz, em escala ampliada, os efeitos dos primeiros poços na Bacia de Campos. Meses atrás, sob o influxo de investimentos comparativamente modestos, empresas privadas anunciaram três grandes descobertas de gás em terra, no Maranhão, em bacia classificada como pouco atraente pelo Relatório Link. Indícios recentes sugerem que podem existir maiores reservas exploráveis onshore do que no pré-sal. As novidades, porém, não ultrapassaram o círculo dos iniciados. Ensurdecido pela fanfarra nacionalisteira do pré-sal, hipnotizado pelas imagens repetitivas de um Lula abraçado à bandeira verde e amarela, as mãos sujas de óleo, o público aplaude a nova encenação de uma farsa antiga. Homem ao mar: com vastos subsídios públicos ocultos, perfuraremos agora uma camada instável de 2 mil metros de sal, sob 7 mil metros de água.
"Eu penso que vai ter algum momento na História do Brasil que vai ter de ter eleição direta para presidente da Petrobrás, e ele indicará o presidente da República, tal é a capacidade de investimento", sugeriu Lula em 2008. Por ora, ocorre o oposto. O "Estado dentro do Brasil" serve aos seus próprios interesses de poder, mas serve também ao poder de turno, fazendo política enquanto prospecta petróleo. A Petrobrás impulsiona os negócios de empresas parceiras, moldando o comportamento político de poderosos empresários. A Petrobrás transfere fortunas para agências de publicidade que operam no tabuleiro da política partidária. A Petrobrás divulga peças de propaganda governista em período eleitoral. A Petrobrás patrocina os "amigos do rei" nos movimentos sociais, em ONGs e fundações diversas, na esfera opaca dos negócios "culturais".
O "Estado dentro do Brasil" sabota ativamente a Agência Nacional de Petróleo, com a finalidade de restringir a concorrência no setor petrolífero. Ele triunfou na formulação do novo marco regulatório, que lhe reserva uma posição quase monopolista no pré-sal, e conseguiu protelar por três anos a retomada das rodadas de licitações de blocos exploratórios. "O petróleo é nosso" — e a Petrobrás, desgraçadamente, também.
(*) Sociólogo e Doutor em Geografia Humana pela USP.
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