por Augusto Nunes
A platéia sempre em luta contra o cochilo iminente arregalou os olhos já no começo do discurso do presidente da República. "Hoje é um dia tão marcante para a nossa linda literatura", lembrou em 30 de setembro à platéia reunida na Academia Brasileira de Letras o único chefe de governo do mundo que, faz pouco tempo, confessou que preferia exercício em esteira a qualquer leitura. Dois parágrafos além, o mais cético dos imortais desconfiou de que estava testemunhando uma espantosa reedição do "estalo de Vieira". Segundo a lenda, o padre Antonio Vieira foi um perfeito imbecil até erguer-se da cama onde o atirara a tremenda dor de cabeça transformado no maior orador do Brasil colonial. Segundo a discurseira no auditório da ABL, alguma metamorfose misteriosa operara a conversão do inimigo juramentado de vogais, consoantes, pontos e vírgulas. "Ainda faltam muitos capítulos no acesso à leitura no Brasil", continuou a procissão de sobressaltos, encerrada com a notícia formidável: Lula lê livros. E aprecia Machado de Assis.
Bem no dia do centenário da morte do fundador e primeiro presidente da ABL, os corações imortais entraram em descompasso ao saberem que, entre todos os romancistas, Lula considera "insuperável" esse brasileiro "mulato, filho de lavadeira e neto de escravos alforriados". "Machado de Assis venceu pelo seu próprio talento individual, mas quantos outros gênios da raça foram impedidos de surgir e de se desenvolver?", perguntou. O escritor a quem se referiu como "o bruxo genial do Cosme Velho" já lhe soprara a resposta. "Disse Machado de Assis que palavra puxa palavra, uma idéia traz outra, e assim se faz um livro, um governo ou uma revolução", caprichou o homem que formalizara a adesão do Brasil ao acordo sobre a reforma ortográfica. "Façamos juntos a revolução do livro e da leitura em nosso país", exortou.
Na semana passada, com a publicação da conversa entre o presidente e o jornalista Mario Sergio Conti, da revista Piauí, desfez-se o equívoco. Quem sabe quem foi Machado de Assis é o ministro Luiz Dulci, redator do discurso que o chefe recitou. Lula continua a fugir de livros como o diabo foge da cruz, o vampiro da luz do sol ou o Congresso da decência. Parou até de folhear jornais ou revistas, contou na entrevista à Piauí. "Dá azia", resumiu. Embora também se tenha dispensado de ouvir noticiários radiofônicos ou telejornais, considera-se muito bem informado sobre o país e o planeta. Lêem por ele o ministro Franklin Martins e a assessora Clara Ant. Além dos quatro olhos amigos, Lula conta com o mundão de gente que encontra todo dia. E, em momentos críticos, troca idéias com Deus. Longe dos jornais e da internet, consegue avaliar o desempenho da imprensa, dar notas a colunistas ou indicar blogs e sites. Lula só leu Machado de Assis em placas de ruas batizadas com o nome do escritor. Mas decerto já sabe se Capitu traiu.
Augusto Nunes da Silva é jornalista
e dispensa maiores comentários.
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