Pedro Mundin
A fala recente do general Augusto Heleno sobre a demarcação de terras indígenas na fronteira veio, finalmente, a lançar luz sobre um tema importantíssimo que vem sendo desde muito ignorado e relegado às lendas e boatos que surgem periodicamente a respeito do que estaria acontecendo naquelas regiões longínquas. Mas também despertou-me outra impressão. Uma sensação de dejà vu. Explico: pela primeira vez em não sei quanto tempo eu ouvi alguém neste país discorrer uma retórica que pode ser considerada de direita. Pois desde muito só existe esquerda no Brasil. Vários matizes de esquerda, por certo, mas exprimir uma opinião que fosse contra o amontoado de chavões politicamente corretos soava quase como uma afronta à dignidade do povo brasileiro. Agora o general Heleno quebrou o silêncio, e ficamos sabendo que a direita, afinal, continua existindo entre nós, mesmo que possa ficar em estado de animação suspensa por longo período. Mas há de fato, no Brasil, uma "direita histórica"? Bem, existiram os integralistas dos anos 30, bastante caricatos, e que nunca chegaram a ter grande força política, tampouco sobreviveram ao fim do nazi-fascismo na Europa. Depois veio a TFP — Tradição, Família e Propriedade, ainda mais caricato, e mais esotérico que político. Tivemos alguns políticos e intelectuais assumidamente de direita, como Carlos Lacerda. Mas tudo isso é muito pouco. Como explicar, então, que uma direita assim tão débil tenha conseguido derrotar a investida da esquerda nos anos sessenta e, presumivelmente, deteve o poder absoluto por duas décadas?
Bem, se faço uma colocação nesses termos, estou assumindo que o regime de 1964 era de direita, bem como os políticos civis que o apoiaram, como ACM, Maluf e Sarney. Esta afirmação parece inquestionável. Mas será verdadeira, strictu sensu? Eu tenho minhas dúvidas. Por exemplo, não considero exato referir-se ao regime militar de 64 como tendo sido "de direita", ao menos que direita, aqui, seja sinônimo de tudo o que se opõe à esquerda. Os regimes militares sul-americanos, em geral, não possuíam ideologia alguma, eram apenas uma espécie de estado-de-sítio prolongado. Genuínos regimes de direita foram, por exemplo, a Espanha franquista e o Portugal salazarista. Na América Latina, a coisa mais parecida que tivemos com esses regimes foi o peronismo argentino dos anos 40. E a coisa mais parecida com o peronismo argentino que temos na época atual é, veja que ironia, o chavismo na Venezuela! O que bem mostra como as definições de "direita" e "esquerda" ficaram desgastadas, tanto que foram usadas para todos os fins.
Por motivos análogos, não é correto referir-se a tipos como Sarney e ACM como direitistas — eles são anti-esquerdistas, mas de resto não professam nenhuma ideologia tangível ou projeto político que não seja o de manterem-se no domínio de seus currais o máximo de tempo possível. Na realidade, o motivo da quase inexistência de pensamento de direita no Brasil é a falta uma base social que endosse tais idéias. No resto do mundo, a base social da direita é a classe média conservadora, com freqüência setores pouco aquinhoados e caricatos, como o "redneck" norte-americano, aquele caipirão apegado a seu ranchozinho e que não gosta de novidades. Outros países têm estereótipos semelhantes. Mas aqui no Brasil, não só a classe média é rala em número como também acha bonito professar ideais de esquerda, daí ter surgido esta ideia, amplamente disseminada, de que direitistas seriam só os ricos. Conforme é sabido, os ricos, em caso de necessidade, transferem seu capital e a si próprios para outro lugar, e a proletarização que se segue à implantação dos regimes comunistas atinge principalmente a classe média que vive de salários e pequenos negócios. A conclusão a que chego é que, no Brasil, não há direita porque a classe média não tem nenhum orgulho de ser o que é.
Outro exemplo de como os conceitos de direita e esquerda foram enxovalhados é a crença, também amplamente disseminada, de que o antônimo do comunismo seria o nazi-fascismo. Isso é totalmente falso. O verdadeiro antônimo do comunismo é o liberalismo (ou neoliberalismo, como queiram). Nazi-fascismo e comunismo, na realidade, são primos, já que derivam do mesmo tronco. O nome original do partido nazista era Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Mussolini foi socialista em sua juventude, assim como vários outros conhecidos direitistas brasileiros, como Carlos Lacerda, Reinaldo Azevedo e Olavo de Carvalho — isto não é coincidência, mas uma questão de afinidade entre ideologias. De resto, quem conhece a história da Alemanha dos anos 20 sabe que a base social dos nazistas era a mesma dos comunistas — trabalhadores desempregados, militares desmobilizados, desajustados de todo tipo — enquanto a classe média conservadora aderia ao Partido Social-Democrata. No início dos anos 30, o eleitorado comunista mudou-se em massa para o partido nazista, os social-democratas ficaram em minoria, e o resto da história todos conhecem. Bem sei, todos vão dizer: Hitler, socialista? Que absurdo sem tamanho! Como você pode afirmar isso, se o nazismo não extinguiu a propriedade privada, e era apoiado pela alta burguesia?
De fato, Hitler não foi ele próprio nenhum socialista. Mas o arcabouço das idéias socialistas foi por ele aproveitado e repovoado com novos conceitos: o nacionalismo substituiu o internacionalismo, o dogma História = Luta de Classes foi substituído pelo dogma História = Luta de Raças, o proletário foi substituído pelo ariano, o burguês ganhou os contornos do "judeu internacional". O anticapitalismo de Hitler era evidente, pois o capitalismo, tal como o comunismo, é essencialmente internacionalista, e embora não se usasse ainda o termo globalização, esse caráter peculiar do capitalismo foi percebido por Hitler e consubstanciado na execrável figura do banqueiro judeu, explorador do povo, criatura apátrida cuja morada não é um país, mas seu capital. Hitler também desprezava a velha aristocracia alemã, que considerava traidora e responsável pela derrota de 1918. Aos burgueses que o apoiavam, ele impôs um regime de terror, bem mostrado no filme A Lista de Schindler. Qualquer grande industrial ou financista podia ir parar na cadeia caso contrariasse minimamente a política econômica do Reich. O pacto funcionava da seguinte maneira: os burgueses podiam continuar usufruindo do conforto que suas riquezas proporcionavam, mas na prática não mandavam em mais nada, pois era o Estado que efetivamente tinha o controle dos meios de produção. Notem a perfeita simetria com a situação na União Soviética da mesma época, onde os "camaradas administradores" estavam autorizados a viver como ricos burgueses, embora não fossem formalmente proprietários das fábricas que administravam (esta última restrição foi levantada quando da liquidação do comunismo, tendo sido as empresas "privatizadas" justamente para esses ex-membros do politburo).
E eis que, no Brasil, quando se invoca o termo "direita", a imagem que vem à mente de todos não é o dono do botequim da esquina, mas o bigodinho de Hitler e o queixo quadrado de Mussolini. Assumir-se de direita, por aqui, é politicamente incorreto. Significa ser a favor da injustiça social, da concentração de renda, da ditadura militar, das torturas, da censura e da extinção do mico-leão dourado. Basta ver como o PT, o primeiro partido de esquerda a chegar ao poder nessas paragens, foi rapidamente "promovido" à direita tão logo mostrou-se corrupto. Mas francamente, com esquerdistas assim, quem precisa de direita?
Fonte: Pedro Mundin, citado no Blog do Clausewitz
COMENTO: Obviamente, o texto foi escrito há algum tempo, logo após o "episódio do General Heleno" em abril do corrente ano, mas a análise feita sobre a visão brasileira do que é "ser de direita" está perfeita e nos indica, em parte, os motivos da situação exposta no texto abaixo!
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