por Janer Cristaldo
O Estatuto do Torcedor — lei 10.671/03 — proíbe o consumo de bebidas alcoólicas nos estádios, ou arenas, como prefere o jornalismo contemporâneo. Proíbe ou proibia? Com a proximidade da Copa de 2014, o governo quer suspender a restrição imposta pelo Estatuto. Com isto, a venda de bebidas nos estádios ficaria liberada no âmbito federal, mas continuaria proibida nos estados que possuem legislação própria. É o caso de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará, Bahia e Rio Grande do Sul. A FIFA teria então de negociar com cada governo local o fim da restrição.
O governo quer ou queria? Difícil saber. Ora diz que quer, ora que não quer. Ocorre que a Copa, entre outros produtos, é patrocinada pela Budweiser. E quer vender seu peixe nos estádios. Mais ainda, com reserva de mercado: só a Budweiser poderá ser vendida. Para tranquilizar a FIFA, nos últimos dias o governo prometeu — in extremis, se for o caso — uma medida provisória que liberaria o álcool em todos os Estados. Mas atenção: só durante a Copa. Suspende-se a lei para atender os interesses do futebol. Passada a Copa, a lei volta a viger.
Em 2007, o então presidente Lula e os governadores dos 12 estados que vão abrigar os jogos de 2014 assumiram, o compromisso de permitir a venda de bebidas nos estádios. A lei? Ora, a lei. ... A lei que se lixe. O que importa é a Copa.
Divertido país este nosso, onde a vigência de leis pode ser interrompida para atender a interesses econômicos. Mais que divertido, ridículo. O Brasil emergente se equipara à África. Em 2010, para atender à FIFA, o ministério da Indústria e Comércio da África do Sul liberou a venda de bebidas alcoólicas nos estádios, até então proibida.
Se alguém pensa que isto é novidade no Brasil, é porque não tem memória. Memória que está faltando à imprensa tupiniquim. Nesta discussão toda, não vi jornalista algum lembrando o precedente levantado por Marta Suplicy, em 2003. Naquele ano, a então prefeita de São Paulo, renovou o contrato para a realização do Grande Prêmio de Fórmula 1 em São Paulo, que passou a vigorar até 2009. O problema é que várias das escuderias de F-1 eram patrocinadas por empresas fabricantes de cigarro.
O então presidente Lula desatou o nó górdio baixando medida provisória, a pedido de Marta. E assim foi revogada uma lei de 1996, que proibia a propaganda de cigarros em eventos esportivos. Foi também contrariada outra lei de 2000, que restringia a propaganda de cigarros aos pontos de venda.
Na ocasião, até mesmo José Serra, ex-ministro da Saúde, andou declarando que eventos de grande apelo internacional, como a Fórmula 1, têm grande importância turística para o país e que a solução seria aproveitar a mídia que geram para propaganda contra cigarros. Solução de jerico: permitir a propaganda de cigarros para gerar propaganda contra cigarros. O que não é de espantar em Serra. Em algum momento de sua campanha presidencial — lembro muito bem — esteve em Santa Cruz do Sul (RS) prometendo seu apoio à indústria do tabaco.
Semana passada, eu comentava a insólita decisão do Supremo Tribunal Federal, a de legalizar o caos legislativo para evitar o caos jurídico. Na ocasião se descobriu que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) não podia existir legalmente. Foi criado por medida provisória (MP), que por lei tem de passar por comissão especializada antes de ir ao plenário. Mas não passou.
O ICMBio foi criado pela lei 11.516, de 28 de agosto de 2007, em função de lobbies ianques que queriam criar um herói amazônico, na figura de um comunista obsoleto, que pretendia impedir o desmatamento através dos "empates” — manifestações em que os seringueiros protegiam as árvores com seus próprios corpos. A única coisa que o Instituto gerou até agora, pelo que se sabe, foi a candidatura de Marina Silva — o ET de Xapuri — à Presidência da República.
O Supremo Tribunal Federal (STF) — que tem entre suas funções julgar o que é constitucional ou não — decidiu então que o ICMBio tinha existência ilegal. E deu ao Congresso o generoso prazo de 24 meses para que aprovasse uma nova norma sob pena de a autarquia ser extinta. Até aí, o imbróglio teria conserto. Ocorre que, desde 2007, mais de 400 outras MPs haviam chegado ao plenário sem cumprir aquele requisito legal. Hoje, cerca de 50 MPs tramitam no Senado, sem terem passado pela tal comissão. Se a decisão prevalecesse elas caducariam imediatamente.
Então deixa estar como está. Uma lei foi revogada por ser descumprida sistematicamente. No Brasil, como diria Pessoa, leis são papéis pintados com tinta. Ou talvez papeizinhos, como diria Serra. São coisas que se revogam a qualquer momento e conforme os interesses do momento.
A partir deste ano da graça, que ninguém mais se queixe de projetos de lei que não passam no Congresso. Já existe um recurso infalível para fazer passar leis: chame a FIFA.
Por ocasião do Grande Prêmio Brasil em São Paulo, Bernie Ecclestone, o dirigente da F-1, demonstrou entender este país nosso: — This is Brazil!
Fonte: Janer Cristaldo
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