por Janer Cristaldo
As piadas antigas são sempre atuais. Quem não lembra daquele senhor que foi queixar-se ao médico de que tinha sarna?
- Que sarna que nada – disse o médico. Um homem de sua condição social tem escabiose.
A Folha de São Paulo de hoje (23/7) traz um caso interessante sobre como pintar com palavras eruditas o que vulgarmente atende por um nome bem banal. Nos traz a notícia de um contador de 31 anos que não conseguiu mais pagar a comida nem o passe de ônibus:
"Cheguei ao fundo do poço em três anos. Devia cerca de R$ 35 mil quando ganhava R$ 1.000 por mês." O contador, que não quer se identificar, participa de reuniões do Devedores Anônimos em São Paulo, um grupo de apoio a pessoas que sofrem de compulsão pelas compras (oniomania).
Em meus dias de guri, isso tinha outro nome. Quem assim se portava, só por eufemismo chamávamos de irresponsável. Na verdade, era um caloteiro. E merecia ser punido. Hoje é um oniômano. E faz terapia. Desde 2010 – prossegue o jornal - três grupos desse tipo foram abertos na capital paulista, na Grande São Paulo e no Rio de Janeiro. Em São Paulo, o grupo mais antigo, que funciona nos Jardins desde 1998, aumentou o número de encontros de um para dois por semana desde janeiro.
Pelo jeito, ao lado dos equoterapeutas e bototerapeutas, temos agora os oniomanoterapeutas. Nestes dias de crédito fácil, a profissão tem futuro. Me pergunto como serão as reuniões desses grupos. Vai ver que discutem as melhores fórmulas de como rolar a dívida, de banco a banco, de cartão a cartão.
Ainda não decidi se sou honesto ou bobalhão. Nunca tive dívidas em minha vida. Jamais comprei além do que poderia pagar. Deve ser herança de meu pai. Camponês, se horrorizava ante a ideia de dever algo para alguém. É fácil. Basta não pretender dar passo maior que as pernas. Isso de comprar o que não se pode comprar está minando a economia de muitos países. Só vim a usar cartão de crédito há poucos anos. E isso porque hoje é impossível viajar sem cartão, mesmo que você tenha dinheiro a granel.
Foi esta mania que gerou a chamada crise do subprime nos Estados Unidos, desencadeada em 2006. Segundo leio na rede, os subprimes incluíam desde empréstimos hipotecários até cartões de crédito e aluguel de carros, e eram concedidos, nos Estados Unidos, a clientes sem comprovação de renda e com histórico ruim de crédito. Eram os chamados clientes ninja (no income, no job, no assets): sem renda, sem emprego, sem patrimônio. Essas dívidas só eram honradas mediante sucessivas "rolagens", o que foi possível enquanto o preço dos imóveis permaneceu em alta.
Quando os juros dispararam nos Estados Unidos - com a conseqüente queda do preço dos imóveis - houve inadimplência em massa. O que arrastou vários bancos para uma situação de insolvência, repercutindo fortemente nas bolsas de valores de todo o mundo.
A mesma mania está na origem da crise espanhola, o que fez muita gente devolver imóveis de alto preço que haviam comprado sem ter lastro. Sem ser economista, suponho que o mesmo fator terá gerado a crise na Grécia. O Brasil vai em bom caminho. Com São Paulo na liderança. Abençoado país este nosso. O que no Primeiro Mundo gera crise econômica, no Brasil é tratado como doença passível de terapia.
Não por acaso São Paulo abriga três grupos de Devedores Anônimos. Confesso jamais ter visto cidade onde tanta gente vive de aparências. Foram picados pela mosca azul, como diria o Machadinho. Status oblige. Conheci não poucos casos de perto. O mais emblemático foi o de um vizinho de bairro, em cujas festas caí meio por acaso. Era pessoa culta e generosa, gostava de gente em torno a si e de cozinhar para a alegria de seus convivas. Vivia confortavelmente em um apartamento de uns 150 m2, onde pelo menos uma vez por mês reunia seu povo. Sua mosca azul terá sido uma belíssima baiana. Que um dia deve ter-lhe sussurrado: quem sabe a gente compra uma casa em Alphaville?
Comprou. Agora havia mais espaço para os convivas, que podiam dançar em torno à piscina. Várias vezes fui convidado para tais festas, o que me gerava um problema. Não tenho carro e acabava pagando uns 300 reais de táxi. Ou seja: comer de graça chez mon hôte me custava bem mais caro do que pagar uma refeição em um bom restaurante. Mesmo assim, eu rumava a Barueri, que mais não fosse pelo prazer da festa.
Mon hôte era obcecado pelas cabrochas. “Foi por elas que vim para o Brasil”, costumava dizer. Suas festas eram sempre ornadas por negras tão lindas quanto sua companheira. Contratava garçons e banda de música. Mas o que é bom dura pouco, dizem as gentes.
Sufocado por dívidas, sem poder sequer pagar o condomínio, recorreu aos convivas. Fui sensível a seu drama. Em um primeiro momento, pensei em contribuir com cinco mil reais, a fundo perdido, em memória daqueles dias de festa. Na caminhada rumo ao banco, pensei melhor: peraí, eu não vivo em condomínio de luxo, não tenho carro nem piscina. Quem precisa de ajuda sou eu. Minha generosidade diminuiu para mil reais. Na hora de depositá-los, pensei mais uma vez: tampouco tenho condições de dar festas para 50 ou 60 pessoas. Repassei apenas 500 reais.
Pelo que sei, boa parte de seus convivas dele se afastaram. Se não todos. Houve quem contribuísse com remédios, mas não com dinheiro para a vida farta. Ele deve ter considerado que, na hora do infortúnio, os “amigos” se revelam como são e desaparecem. Ocorre que fere o bom senso pedir ajuda para viver em condomínio de luxo a pessoas que não têm condições de viver em condomínio de luxo. E que talvez neles jamais viveriam, mesmo que as tivessem.
O mal parece ser universal. Na rica Suécia, me dizia um político: “Todo mundo é rico aqui, não é verdade? Todos têm carro, casa secundária, iate ou veleiro, não é verdade? Não é. Todos estão pendurados em empréstimos que jamais poderão pagar”.
Não tenho ideia do que foi feito deste – como direi? – oniômano. Certamente não estará freqüentando grupos de devedores anônimos, não era homem de iludir-se com modismos. Tampouco tinha contatos com o poder, a ponto de viver de corrupção. Homem de saúde frágil e bastante além del mezzo del cammin di nostra vita, deve ter encontrado sua selva escura. Se é que ainda vive.
Eles são legião em São Paulo. O crédito fácil lhes dá uma ilusão de riqueza. Pelo menos por alguns anos. Até que a fonte seca. A imprensa fala em consumo compulsivo. Vá lá! Mas no fundo, no fundo mesmo, o que os impele a gastos além das posses é a maldita mania de status.
Deste mal não sofro. Nunca me ative a bens. Respeito o homem rico que vive com inteligência, mas estes são raros. O que mais grassa neste mundinho são os novos ricos, que vivem de aparências. As posses que uma pessoa possa possuir não me impressionam. Mas me rendo a uma virtude cada vez mais rara, a cultura. Virtude que não exige muito dinheiro. Mas é cada vez mais escassa. Meu anfitrião era homem culto. Mas deixou-se picar pela mosca azul. Ou talvez pelas cabrochas.
Clínicas privadas estão tratando a nova “doença” junto com a dependência química. Ora, dependência química é orgânica, ataca o organismo do doente. Consumismo depende de volição. Não ter vontade suficiente para deixar de consumir o que não se pode consumir, não me parece ser doença, mas falta de caráter.
Mas, obviamente, tratar falta de caráter como doença é sempre mais civilizado.
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