A anistia concedida em 1979 a crimes políticos e conexos cometidos durante a vigência do regime militar foi admitida na Constituição vigente por meio da mesma emenda constitucional que convocou a assembléia nacional constituinte, em 1985. O arremate dado pelo ministro Eros Grau em seu voto sobre a revisão da Lei de Anistia arrancou elogios de pelo menos três dos mais experientes ministros do Supremo Tribunal Federal na sessão desta quarta-feira (28/4). “Foi o voto mais brilhante do ministro Eros Grau em toda a sua atuação na corte”, disse o ex-presidente da corte, Gilmar Mendes. O julgamento será retomado nesta quinta-feira (29/4).
O relator foi cumprimentado também pelo ministro Marco Aurélio, que fez questão de elogiá-lo quando o fim da sessão já era anunciado pelo presidente da corte, Cezar Peluso, abrindo caminho para os louvores de Gilmar Mendes e do próprio presidente da corte.
Em voto lido em mais de três horas, Eros rejeitou cada um dos argumentos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que alegou descumprimento de preceitos fundamentais da Constituição pela Lei 6.683, editada em 1979. A lei perdoou crimes cometidos por militantes e militares durante a luta contra a ditadura depois do golpe de 1964. Foram cobertos atos praticados entre 2 de setembro de 1964 e 15 de agosto de 1979, quando a norma passou a valer.
Para a OAB, o perdão não poderia incluir crimes de lesa-humanidade cometidos por agentes do Estado, como torturas, seqüestros, estupros e assassinatos. A entidade afirma que os crimes dos agentes do regime não foram políticos, nem conexos, e que tratados internacionais e a própria Constituição brasileira proíbem anistia a atos dessa natureza. Além disso a OAB questionava a legitimidade do Congresso Nacional que aprovou a lei em 1979, ainda sob o regime de exceção.
No entanto, para o ministro relator, único a votar na sessão desta quarta, a anistia foi confirmada pela Constituição justamente na Emenda Constitucional 26, de 1985. A EC 26, já na fase de transição para a democracia, convocou a Assembléia Nacional Constituinte que elaborou, aprovou e promulgou a Constituição de 1988. Para Eros, o parágrafo 1º do artigo 4º da emenda repetiu o que cravou o artigo 1º da Lei 6.683/1979. Ou seja, a anistia prevista na lei foi incorporada à Constituição, esvaziando os argumentos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental da OAB.
“Esse argumento, na minha opinião, poderia estar no início do voto”, disse o ministro Gilmar Mendes, ao reconhecer a força do raciocínio. O ministro lembrou que o fenômeno da Emenda 26/1985 é estudado hoje até mesmo fora do país. No Brasil, é fruto de doutrina do jurista Tercio Sampaio Ferraz, citada por Eros, que a define como um marco fundante da nova ordem constitucional do país.
Legitimidade
O voto rebateu também a acusação da OAB de que, embora fruto de um pacto social, a lei de 1979 foi aprovada por um Congresso ilegítimo, formado por senadores nomeados pelo regime e sancionada por um general não eleito pelo povo. Eros confrontou a alegação dizendo que, se o argumento fosse levado ao pé da letra, todas as leis anteriores a 1988 teriam de ser confirmadas novamente pelo Legislativo. Nesse caminho, segundo o ministro, o próprio perdão concedido aos crimes cometidos por revolucionários contrários à ditadura também cairia.
A Lei 6.683 perdoou crimes cometidos a partir do Ato Institucional 1, que oficializou o golpe militar em 9 de abril de 1964, até a sua sanção pelo presidente João Baptista Figueiredo, em 28 de agosto de 1979. Entre militantes presos, exonerados de funções públicas ou exilados devido à corrente política que defendiam, foram beneficiados pela anistia 4,6 mil pessoas. O perdão permitiu o retorno ao país de perseguidos políticos conhecidos, como Miguel Arraes, Leonel Brizola, José Dirceu, Vladimir Palmeira, Fernando Gabeira e Betinho — o “irmão do Henfil” —, além do ex-ministro Carlos Minc, do Meio Ambiente, e do ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação. A ex-ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, presa e torturada, depois da lei, mesmo não tendo sido exilada, pôde voltar às suas atividades normais.
Conquista
Em longa digressão histórica, Eros bateu forte no que chamou de “OAB de hoje contra a OAB de ontem”. Segundo ele, a entidade desprezou o processo histórico pelo qual ela mesma conquistou a anistia. “Reduzir a nada essa luta é tripudiar contra os que, com assombro e coragem, na hora certa, lutaram pela anistia”, disse. “É a página mais vibrante de atividade democrática da nossa história.”
Na contextualização histórica da medida, Eros chegou a afirmar que a concessão do perdão aos militares foi o preço pago por quem queria o fim da violência. “Os subversivos tiveram que ceder à autoanistia dos militares”, resumiu. “É uma lei-medida, não uma regra para o futuro. É preciso ser interpretada segundo o momento em que foi editada.”
Rebatendo outro argumento a favor da revisão, o voto contradisse afirmações de que outras ditaduras sulamericanas tiveram seus agentes punidos mesmo depois das anistias. Segundo ele, Argentina, Uruguai e Chile editaram leis que revogaram as anistias, antes que os tribunais passassem a limpo os atos dos repressores. “Nem mesmo o STF está autorizado a reescrever leis de anistia. Só ao Legislativo incumbe escrever leis”, defendeu.
Antes de entrar no mérito de seu voto, Eros rejeitou as preliminares alegadas pela Advocacia-Geral da União, e foi acompanhado pela maioria dos ministros. O governo federal alegou falta de controvérsia sobre o assunto nos tribunais, omissão da Ordem em não refutar todo o ordenamento jurídico decorrente da Lei de Anistia, como a EC 26/1985, e não só a Lei 6.683, a falta de indicação dos responsáveis pelos abusos e a prescrição dos crimes.
Apenas o ministro Marco Aurélio reconheceu que, passados 31 anos da edição da norma, não seria mais cabível à corte opinar sobre o assunto. “Não vejo como o STF pode dar um ato declaratorio constitutivo negativo. ‘Justiça e segurança jurídica’ é um binomio. Se potencializarmos a justiça, não teremos o término dos processos. O caso é mais afeito à segurança jurídica”, afirmou.
Revisão da História
Antes da manifestação dos ministros, as partes envolvidas dividiram a tribuna em sustentações orais. O advogado-geral da União, Luís Inácio Lucena Adams, afirmou que a intenção da OAB é fazer retroagir uma determinação feita quase dez anos depois pela Constituição Federal. No artigo 5º, incisos XLII e XLIV, o texto constitucional de 1988 classificou como insuscetíveis de anistia a tortura e os crimes hediondos. A Lei de Anistia foi publicada em 1979, e produziu efeitos antes da determinação constitucional atual. “Não há expressa retroatividade da impossibilidade de anistia”, disse em sua sustentação oral.
Adams também afirmou que a lei afastou os efeitos penais dos crimes, o que não quer dizer que eles serão esquecidos. “O governo não está inerte quanto a ações compensatórias às famílias das vítimas”, disse.
A mesma linha defendeu o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, para quem uma revisão da lei, agora, poderia atrapalhar os esforços para revelar crimes contra militantes. O receio é que haja sonegação de documentos e informações em poder de quem pode ser incriminado caso a anistia caia. “Não é aceitável fazer análise atemporal da norma, que foi aprovada inclusive pela OAB”, afirmou.
A avaliação se refere a pareceres do ex-ministro Sepúlveda Pertence, então conselheiro federal da OAB, e do advogado Sérgio Tostes, representante do Instituto dos Advogados do Brasil, que entenderam, em nome das entidades, que a lei abrangeu todos os crimes cometidos durante o regime, inclusive “ações degradantes de violência física e moral”, como citou Gurgel.
O parecer de Pertence, aprovado pelo Conselho Federal e entregue ao Senado, afirmou também que o então projeto de lei, pela primeira vez, ampliava “o conceito de crime comum conexo a crimes políticos, para beneficiar com a anistia, não apenas os delitos comuns de motivação política, mas também os que tenham com os políticos qualquer tipo de relação”.
Já no documento emitido pelo Instituto dos Advogados do Brasil, também enviado ao Senado em 1979, o advogado Sérgio Tostes afirma que a lei “deve também abranger todos aqueles que, de uma forma ou de outra, estiveram envolvidos no processo de exacerbação de ânimos”.
Clique aqui para ler o voto do ministro Eros Grau
Clique aqui para ler o parecer da OAB a favor da Lei de Anistia
Clique aqui para ler a Emenda Constitucional 26/1985
O relator foi cumprimentado também pelo ministro Marco Aurélio, que fez questão de elogiá-lo quando o fim da sessão já era anunciado pelo presidente da corte, Cezar Peluso, abrindo caminho para os louvores de Gilmar Mendes e do próprio presidente da corte.
Em voto lido em mais de três horas, Eros rejeitou cada um dos argumentos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que alegou descumprimento de preceitos fundamentais da Constituição pela Lei 6.683, editada em 1979. A lei perdoou crimes cometidos por militantes e militares durante a luta contra a ditadura depois do golpe de 1964. Foram cobertos atos praticados entre 2 de setembro de 1964 e 15 de agosto de 1979, quando a norma passou a valer.
Para a OAB, o perdão não poderia incluir crimes de lesa-humanidade cometidos por agentes do Estado, como torturas, seqüestros, estupros e assassinatos. A entidade afirma que os crimes dos agentes do regime não foram políticos, nem conexos, e que tratados internacionais e a própria Constituição brasileira proíbem anistia a atos dessa natureza. Além disso a OAB questionava a legitimidade do Congresso Nacional que aprovou a lei em 1979, ainda sob o regime de exceção.
No entanto, para o ministro relator, único a votar na sessão desta quarta, a anistia foi confirmada pela Constituição justamente na Emenda Constitucional 26, de 1985. A EC 26, já na fase de transição para a democracia, convocou a Assembléia Nacional Constituinte que elaborou, aprovou e promulgou a Constituição de 1988. Para Eros, o parágrafo 1º do artigo 4º da emenda repetiu o que cravou o artigo 1º da Lei 6.683/1979. Ou seja, a anistia prevista na lei foi incorporada à Constituição, esvaziando os argumentos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental da OAB.
“Esse argumento, na minha opinião, poderia estar no início do voto”, disse o ministro Gilmar Mendes, ao reconhecer a força do raciocínio. O ministro lembrou que o fenômeno da Emenda 26/1985 é estudado hoje até mesmo fora do país. No Brasil, é fruto de doutrina do jurista Tercio Sampaio Ferraz, citada por Eros, que a define como um marco fundante da nova ordem constitucional do país.
Legitimidade
O voto rebateu também a acusação da OAB de que, embora fruto de um pacto social, a lei de 1979 foi aprovada por um Congresso ilegítimo, formado por senadores nomeados pelo regime e sancionada por um general não eleito pelo povo. Eros confrontou a alegação dizendo que, se o argumento fosse levado ao pé da letra, todas as leis anteriores a 1988 teriam de ser confirmadas novamente pelo Legislativo. Nesse caminho, segundo o ministro, o próprio perdão concedido aos crimes cometidos por revolucionários contrários à ditadura também cairia.
A Lei 6.683 perdoou crimes cometidos a partir do Ato Institucional 1, que oficializou o golpe militar em 9 de abril de 1964, até a sua sanção pelo presidente João Baptista Figueiredo, em 28 de agosto de 1979. Entre militantes presos, exonerados de funções públicas ou exilados devido à corrente política que defendiam, foram beneficiados pela anistia 4,6 mil pessoas. O perdão permitiu o retorno ao país de perseguidos políticos conhecidos, como Miguel Arraes, Leonel Brizola, José Dirceu, Vladimir Palmeira, Fernando Gabeira e Betinho — o “irmão do Henfil” —, além do ex-ministro Carlos Minc, do Meio Ambiente, e do ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação. A ex-ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, presa e torturada, depois da lei, mesmo não tendo sido exilada, pôde voltar às suas atividades normais.
Conquista
Em longa digressão histórica, Eros bateu forte no que chamou de “OAB de hoje contra a OAB de ontem”. Segundo ele, a entidade desprezou o processo histórico pelo qual ela mesma conquistou a anistia. “Reduzir a nada essa luta é tripudiar contra os que, com assombro e coragem, na hora certa, lutaram pela anistia”, disse. “É a página mais vibrante de atividade democrática da nossa história.”
Na contextualização histórica da medida, Eros chegou a afirmar que a concessão do perdão aos militares foi o preço pago por quem queria o fim da violência. “Os subversivos tiveram que ceder à autoanistia dos militares”, resumiu. “É uma lei-medida, não uma regra para o futuro. É preciso ser interpretada segundo o momento em que foi editada.”
Rebatendo outro argumento a favor da revisão, o voto contradisse afirmações de que outras ditaduras sulamericanas tiveram seus agentes punidos mesmo depois das anistias. Segundo ele, Argentina, Uruguai e Chile editaram leis que revogaram as anistias, antes que os tribunais passassem a limpo os atos dos repressores. “Nem mesmo o STF está autorizado a reescrever leis de anistia. Só ao Legislativo incumbe escrever leis”, defendeu.
Antes de entrar no mérito de seu voto, Eros rejeitou as preliminares alegadas pela Advocacia-Geral da União, e foi acompanhado pela maioria dos ministros. O governo federal alegou falta de controvérsia sobre o assunto nos tribunais, omissão da Ordem em não refutar todo o ordenamento jurídico decorrente da Lei de Anistia, como a EC 26/1985, e não só a Lei 6.683, a falta de indicação dos responsáveis pelos abusos e a prescrição dos crimes.
Apenas o ministro Marco Aurélio reconheceu que, passados 31 anos da edição da norma, não seria mais cabível à corte opinar sobre o assunto. “Não vejo como o STF pode dar um ato declaratorio constitutivo negativo. ‘Justiça e segurança jurídica’ é um binomio. Se potencializarmos a justiça, não teremos o término dos processos. O caso é mais afeito à segurança jurídica”, afirmou.
Revisão da História
Antes da manifestação dos ministros, as partes envolvidas dividiram a tribuna em sustentações orais. O advogado-geral da União, Luís Inácio Lucena Adams, afirmou que a intenção da OAB é fazer retroagir uma determinação feita quase dez anos depois pela Constituição Federal. No artigo 5º, incisos XLII e XLIV, o texto constitucional de 1988 classificou como insuscetíveis de anistia a tortura e os crimes hediondos. A Lei de Anistia foi publicada em 1979, e produziu efeitos antes da determinação constitucional atual. “Não há expressa retroatividade da impossibilidade de anistia”, disse em sua sustentação oral.
Adams também afirmou que a lei afastou os efeitos penais dos crimes, o que não quer dizer que eles serão esquecidos. “O governo não está inerte quanto a ações compensatórias às famílias das vítimas”, disse.
A mesma linha defendeu o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, para quem uma revisão da lei, agora, poderia atrapalhar os esforços para revelar crimes contra militantes. O receio é que haja sonegação de documentos e informações em poder de quem pode ser incriminado caso a anistia caia. “Não é aceitável fazer análise atemporal da norma, que foi aprovada inclusive pela OAB”, afirmou.
A avaliação se refere a pareceres do ex-ministro Sepúlveda Pertence, então conselheiro federal da OAB, e do advogado Sérgio Tostes, representante do Instituto dos Advogados do Brasil, que entenderam, em nome das entidades, que a lei abrangeu todos os crimes cometidos durante o regime, inclusive “ações degradantes de violência física e moral”, como citou Gurgel.
O parecer de Pertence, aprovado pelo Conselho Federal e entregue ao Senado, afirmou também que o então projeto de lei, pela primeira vez, ampliava “o conceito de crime comum conexo a crimes políticos, para beneficiar com a anistia, não apenas os delitos comuns de motivação política, mas também os que tenham com os políticos qualquer tipo de relação”.
Já no documento emitido pelo Instituto dos Advogados do Brasil, também enviado ao Senado em 1979, o advogado Sérgio Tostes afirma que a lei “deve também abranger todos aqueles que, de uma forma ou de outra, estiveram envolvidos no processo de exacerbação de ânimos”.
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