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Newton Cruz, 83 anos, entrou para a história recente do país como um ícone da ditadura militar.
por Carlos Wagner
Os anos arquearam o corpo. Mas ficaram ilesos à passagem do tempo o tom forte e vibrante da voz e o uso de um vocabulário sem meias palavras na defesa de sua opinião e do seu currículo. Assim é o general da reserva Newton Cruz, 83 anos. Ele entrou para a história recente do país como um ícone da ditadura militar. O militar concedeu uma entrevista a Zero Hora no último dia 10 em seu apartamento no Rio de Janeiro. Confira a íntegra da conversa:
Zero Hora — Onde o senhor estava em 31 de março de 1964?
Newton Cruz — No dia da revolução era major instrutor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Andava pelos corredores com os alunos quando ouvi os gritos, no telefone, de um dos comandantes, o general (João) Bina Machado. Falava com o Castello Branco (general Humberto Castello Branco, o primeiro presidente da ditadura militar). Lembro bem das palavras de Bina Machado: "Aquele maluco já saiu de Minas e agora o que vamos fazer?" O maluco era o general Olímpio Mourão Filho, que havia partido de Minas Gerais com as tropas. Foi assim que entrei na revolução.
ZH — O senhor não se envolveu com o processo de conspiração contra o governo de João Goulart, que foi fartamente documentado?
Newton Cruz — Militar não conspira. Faz insurreição. Não fui convidado para ser revolucionário. Fui por não concordar com a quebra da hierarquia militar que havia se instalado no país. Logo depois de ouvir o diálogo ao telefone, eu e outros companheiros fomos para o Forte de Copacabana, onde havia servido como tenente. Entramos pela porta dos fundos, no Arpoador, para não passar na frente do Quartel-general do Exército. A nossa missão era convencer a guarnição e o comandante do Forte, tenente-coronel Arídio Brasil, a aderir ao movimento.
ZH — Foi difícil convencê-los?
Newton Cruz — Foi demorado. O Arídio estava esperando um telefonema do seu amigo general Amaury Kruel, na época comandante do II Exército, em São Paulo, para decidir. Enquanto um monte de oficiais ficava na sala dele aguardando a ligação, eu saí pelos corredores do Forte, que fervilhava de soldados e graduados, explicando o que estava acontecendo. Não queríamos que as tropas do Copacabana saíssem para as ruas. Mas que ficassem no quartel, assumissem as posições de defesa da guarnição e se declarassem revoltosas. O Arídio recebeu o telefonema que esperava e nossa missão foi cumprida.
ZH — No governo do sucessor de Castello Branco, o general Arthur da Costa e Silva (presidente de 1967 a 1969), houve a edição do AI-5, que suspendeu garantias constitucionais. Os historiadores descrevem como um golpe militar dentro da própria revolução. De que lado o senhor ficou?
Newton Cruz — Do lado do Exército. Na caserna havia dois grupos. Os castelistas defendiam a posição do Castello Branco, que era arrumar a casa e voltar para o quartel o mais rápido possível. E os costistas, alinhados com general Costa e Silva, que, em nome da caça aos comunistas, defendiam o endurecimento do regime. Eu concordava com o pensamento dos castelistas. Fomos derrotados por uma decisão do Castello Branco.
ZH — Que decisão?
Newton Cruz — Ele não concordava que Costa e Silva fosse o seu sucessor. Não pela pessoa, que era um ótimo camarada de farda. Mas pelo grupo que o rodeava, muitos deles sedentos de vingança contra os comunistas. Castello tinha prestígio suficiente para fazer o seu sucessor. Pela lógica, deveria ser o general Ernesto Geisel (presidente de 1974 a 1979). Ele permitiu que Costa e Silva o sucedesse porque temia que um enfrentamento causasse um racha no Exército, o que poderia culminar com um enfrentamento militar. Foi um erro que nos manteve fora dos quartéis por 21 anos.
ZH — Não era ponto comum entre castelistas e costistas a caça aos comunistas?
Newton Cruz — Posso afirmar com toda convicção que não. Os comunistas eram um pequeno grupo que se aproveitou da situação para se infiltrar entre a juventude rebelde. O problema era o pessoal ligado ao regime populista que havíamos derrubado. Este estava em toda a parte e tinha força de mobilização. A história provou que estávamos certos.
ZH — Os historiadores o colocam como um dos generais linha-dura do regime. No decorrer do regime, o senhor aderiu aos costistas?
Newton Cruz — Não aderi. Quem diz que eu era linha-dura é a imprensa. Sempre fiz as minhas ações dentro da lei vigente e muitas delas foram públicas.
ZH — Mas boa parte da sua carreira não foi pública. O senhor era do Serviço Nacional de Informações (SNI), um órgão que trabalhou nas sombras coletando e analisando informes para o regime O SNI chegou a ser um governo paralelo dentro da revolução?
Newton Cruz — Não. O SNI nunca teve tanto poder. Vou contar uma história. Como eu, o Figueiredo era instrutor da Escola do Estado-Maior em 1964. E logo depois ele foi para o Serviço Federal de Informações e Contra-Informações (SFICI), que funcionava em cima da Casa da Borracha, no Rio de Janeiro. Posteriormente, o SFICI foi absorvido pelo SNI. Fui convocado por ele para ir ajudá-lo, sem ser consultado. Nunca esqueço a cena. Cheguei para me apresentar no serviço. Figueiredo estava sentando em uma cadeira atrás de uma mesa com várias pilhas de papéis. E ao seu redor havia uma dezena de pessoas, todas falando ao mesmo tempo. Em uma sala ao lado, uma senhora, a dona Fausta, era a responsável por receber a papelada, carimbar e passar para o Figueiredo. Perguntei a ele o que deveria fazer. Respondeu que era para ficar por ali. Sugeri para ficar ajudando a dona Fausta a selecionar os documentos. Ele achou uma ótima idéia. E foi assim: entrei no serviço de informação no lugar da dona Fausta.
ZH — Nos anos seguintes, Figueiredo foi presidente e o senhor continuou trabalhando com ele. São duas pessoas com gênio forte. Tiveram muitas brigas?
Newton Cruz — Nada significativo. Nos tornamos amigos no trabalho. Mas jamais participei da intimidade dele. Ele me chamava de Nini, apelido que ganhei do meu irmão mais velho, o Ney, que cursou a Academia Militar comigo. Mas só o Figueiredo me chamava de Nini. Para os outros camaradas de farda eu era Newton, que é meu nome de guerra. A imprensa é que inventou o nome general Newton Cruz.
ZH — Em 1981, quando o senhor era chefe da Agência Central do SNI, aconteceu o episódio do Riocentro. Foi apurado que o então capitão Wilson Dias Machado e o sargento Guilherme Pereira do Rosário foram colocar uma bomba caseira onde ocorria um show musical. A artefato explodiu no colo do sargento e o matou. Em que momento o episódio chegou ao seu conhecimento?
Newton Cruz — Tomei conhecimento quando já estava em execução. E não tive como evitar. Na época, não havia telefone celular. Na noite de 30 de abril, o responsável pelo SNI no Rio me ligou e falou comigo. Disse que havia estado em uma reunião no DOI-CODI com um pessoal que estava se organizando para jogar uma bomba no Riocentro para marcar posição. Não pretendiam machucar ninguém. Mas queriam marcar posição contra os comunistas. Disse que havia conseguido convencê-los a colocar o explosivo em outro lugar. Alertou que poderia haver dissidentes no grupo. Perguntei se tinha como detê-los. Respondeu que não, que a coisa já estava em andamento.
ZH — Na época se comentou que havia um grupo de radicais no DOI-CODI organizado para abortar a abertura política que o presidente Figueiredo conduzia. Seria uma espécie de reprise de 1968. O Inquérito Policial Militar que apurou o caso fez esta relação?
Newton Cruz — Não há tal relação. Foi um ato isolado de pessoas que queriam marcar posição contra os comunistas. Eles agiram errado.
ZH — Durante uma boa parte do regime militar o senhor esteve ligado direta ou indiretamente ao SNI. Em São Paulo, houve a Operação Bandeirante, do DOI-CODI, que resultou em torturas e mortes fartamente documentadas. No Rio Grande do Sul, houve o caso do seqüestro dos uruguaios Universindo Diaz e Lílian Celiberti pelos agentes da Operação Condor. O que o senhor sabe sobre esses episódios?
Newton Cruz — Lembra 1968? Ali, os linha-dura se aglutinaram e se organizaram nos órgãos regionais de coleta de informações, que então passaram a atuar como operadores na luta contra os opositores do regime. Houve muitos excessos, porque agiram igualzinho àqueles a quem perseguiam. As coisas só chegavam ao governo central quando aconteciam grandes rolos. Lembro do Geisel tendo uma crise de raiva quando sabia das barbaridades. Ele retomou o controle da situação quando demitiu (em janeiro de 1976) o comandante do II Exército, general Ednardo D'Avila Melo (havia morrido nas dependências do DOI-CODI paulista o operário Manoel Fiel Filho e, posteriormente, o jornalista Vladimir Herzog). A demissão mostrou à linha-dura quem mandava.
ZH —Mas o senhor nunca viu ou leu relatórios oficiais sobre as torturas?
Newton Cruz — Nunca vi ninguém sendo torturado. Fora do papel circulavam muitas histórias. Uma delas falava que havia uma cobra grande criada em cativeiro em uma unidade militar no Rio. E que era só ameaçar colocar a pessoa com o animal que ela falava o que sabia e o que não sabia.
ZH — O senhor foi julgado e inocentado em 1992 pelo assassinato do jornalista Alexandre von Baumgarten, da mulher dele, Janette, e do barqueiro Manoel Pires. O episódio aconteceu em outubro de 1982. No ano seguinte, veio a público um dossiê preparado por Baumgarten pouco antes de morrer em que ele dizia que seria assassinado a mando do SNI. Só não sabia se a ordem seria dada pelo senhor ou pelo general Octávio Medeiros, então chefe do SNI. Esse episódio alterou o rumo da sua carreira?
Newton Cruz — Indiretamente, sim. Baumgarten era um anticomunista pilantra, tinha inimigos por todos os cantos. A principal testemunha do caso foi um bailarino (Cláudio Werner Polila). O dossiê havia sido feito a quatro mãos, uma delas era as de um coronel canalha que demiti do SNI, já morreu e não vale a pena pronunciar o nome. Nada foi comprovado. Mas eu precisei ir aos jornais falar sobre a minha inocência. Daí, virei ícone do regime militar. Era o general truculento, assassino, linha-dura e sei lá mais o quê.
ZH — Para defender-se, o senhor estudou o caso. E também tinha todo o SNI a seu dispor para investigar. Conseguiu descobrir quem matou o jornalista, a mulher e o barqueiro?
Newton Cruz — A verdade eu sei. Mas soube sob garantia de profissional. Nem que tivesse sido condenado poderia dizer. Não falei nem para o meu advogado.
ZH — O caso Baumgarten tem a ver com a sua transferência do SNI para o Comando Militar do Planalto, em Brasília, em 1983?
Newton — Tudo a ver. O general Medeiros falou com Figueiredo que era hora de eu voltar para a tropa, porque estava muito em evidência. Era tudo o eu que queria. Voltei para fazer manobras militares. Tudo corria às mil maravilhas. Até que o Figueiredo lembrou de mim novamente, ao declarar medidas de emergência. Nem sabia direito o que era, precisei olhar na Constituição. Lá dizia que podia fazer tudo para cumprir a missão.
ZH — Reportagens de jornais da época mostram que o senhor no Comando Militar do Planalto agrediu um jornalista, bateu de chicote nos automóveis que faziam uma carreata, entre outras coisas. Como foi?
Newton — Isso é o que a imprensa escreveu. Muito coisa baseada em relatos inverídicos. Houve duas decretações de medidas de emergência, a primeira em outubro de 1983, para votação pelos deputados de alterações na lei salarial. E a segunda em abril de 1984, para a votação da emenda constitucional das eleições diretas para presidente. O episódio do jornalista aconteceu na primeira. Estava dando uma entrevista a dezenas de repórteres, um deles (Honório Dantas, repórter da Rádio Planalto) insistia em enfiar um gravador na minha cara. Parei a entrevista várias vezes e pedia que tirasse aquele troço dali. Além de não ter atendido, ele ainda fez um desaforo, desligando o gravador na minha cara e saindo da entrevista. Fui atrás dele, o peguei pelo braço e o fiz pedir desculpas perante a TV. O fato foi explorado politicamente. (segundo Dantas, que falou com ZH, o general lhe deu uma chave de braço e o forçou a pedir desculpas).
ZH — E como foi o episódio em que o senhor bateu nos automóveis durante uma carreata em Brasília?
Newton Cruz — Foi no dia da votação da Emenda das Diretas. Eu estava na minha sala e, lá embaixo, uma barulheira. Era uma carreata de automóveis com luzes acesas e buzinando. Desci e ordenei ao sargento da guarda que atravessasse um ônibus no meio da rua para impedir a passagem da carreata. Daí eu, sozinho, desarmado, iniciei uma caminhada no meio dos veículos. No primeiro, cheguei e bati no capô com o meu bastão de comando, que não tem nada a ver com chicote, e disse para o motorista o seguinte: vocês vieram me desmoralizar perante a minha tropa. Estou aqui. O cara parou de buzinar, apagou os faróis e ficou quieto. Notei que os veículos ao seu redor haviam feito a mesma coisa. Então, fui caminhando até o final da carreata batendo no capô dos carros. No final era aquele silêncio de cemitério. Voltei e ordenei ao sargento que deixasse sair dali um veículo de cada vez e anotasse as placas. Horas depois veio o sargento com as anotações. Mandei atirar fora.
ZH — Houve prisões nesse episódio?
Newton Cruz — Depois dos carros veio uma passeata. Daí, mandei os policiais militares do choque dissolverem a manifestação com bombas de gás lacrimogêneo. No meio da nuvem de gás, vindo em minha direção, saiu um grupo de pessoas de braços dados gritando "o povo unido jamais será vencido". Dei voz de prisão para dois líderes dizendo o seguinte: "que povo unido nada, vocês estão presos". Os conduzi até a guarda do QG. Assim que esfriei a cabeça pensei o que iria fazer com aqueles dois. Se ficasse com eles ali, eu causaria uma dor de cabeça a mais para o Figueiredo. Então, dei um sermão neles na frente dos soldados e os mandei embora. Ninguém ficou preso.
ZH — Essa sua exposição acabou lhe custando a sua quarta estrela, a promoção a general-de-exército?
Newton Cruz — Eu fui traído na reunião do Alto Comando onde estava sendo decidido quem iria ganhar a quarta estrela. Fui traído por colegas que sempre elogiaram as minhas ações. Alguns deles tinham feito elogios poucos dias antes do encontro. Por que mudaram de opinião? Para se posicionar bem na Nova República que estava sendo implantada. Ninguém queria ficar perto de um general facínora. Fui o bode expiatório da revolução.
ZH — Depois o senhor tentou a carreira política?
Newton Cruz — Sim. Eu precisava de um palanque para me defender. Na eleição para governador do Rio de Janeiro, em 1994, fiquei em terceiro lugar.
ZH — Como candidato o senhor se envolveu em briga com militantes de partidos adversários. Como foi?
Newton Cruz — Em parte é verdade. Havia saído de um debate em uma emissora de TV e o meu carro foi cercado por militantes do PT. Não o do Lula. O outro, dos loucos. Cercaram o veículo e ficaram ali gritando que eu era truculento, facínora, assassino, ditador e coisas do gênero. Não dei bola. Sempre ouvi tal coisa. Mas aí um dos cara ofendeu a minha mãe. Aí, não. A mãe é sagrada. Saí de dentro do carro e fui para cima dele. Daí, falaram que continuava truculento.
Zero Hora — Onde o senhor estava em 31 de março de 1964?
Newton Cruz — No dia da revolução era major instrutor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Andava pelos corredores com os alunos quando ouvi os gritos, no telefone, de um dos comandantes, o general (João) Bina Machado. Falava com o Castello Branco (general Humberto Castello Branco, o primeiro presidente da ditadura militar). Lembro bem das palavras de Bina Machado: "Aquele maluco já saiu de Minas e agora o que vamos fazer?" O maluco era o general Olímpio Mourão Filho, que havia partido de Minas Gerais com as tropas. Foi assim que entrei na revolução.
ZH — O senhor não se envolveu com o processo de conspiração contra o governo de João Goulart, que foi fartamente documentado?
Newton Cruz — Militar não conspira. Faz insurreição. Não fui convidado para ser revolucionário. Fui por não concordar com a quebra da hierarquia militar que havia se instalado no país. Logo depois de ouvir o diálogo ao telefone, eu e outros companheiros fomos para o Forte de Copacabana, onde havia servido como tenente. Entramos pela porta dos fundos, no Arpoador, para não passar na frente do Quartel-general do Exército. A nossa missão era convencer a guarnição e o comandante do Forte, tenente-coronel Arídio Brasil, a aderir ao movimento.
ZH — Foi difícil convencê-los?
Newton Cruz — Foi demorado. O Arídio estava esperando um telefonema do seu amigo general Amaury Kruel, na época comandante do II Exército, em São Paulo, para decidir. Enquanto um monte de oficiais ficava na sala dele aguardando a ligação, eu saí pelos corredores do Forte, que fervilhava de soldados e graduados, explicando o que estava acontecendo. Não queríamos que as tropas do Copacabana saíssem para as ruas. Mas que ficassem no quartel, assumissem as posições de defesa da guarnição e se declarassem revoltosas. O Arídio recebeu o telefonema que esperava e nossa missão foi cumprida.
ZH — No governo do sucessor de Castello Branco, o general Arthur da Costa e Silva (presidente de 1967 a 1969), houve a edição do AI-5, que suspendeu garantias constitucionais. Os historiadores descrevem como um golpe militar dentro da própria revolução. De que lado o senhor ficou?
Newton Cruz — Do lado do Exército. Na caserna havia dois grupos. Os castelistas defendiam a posição do Castello Branco, que era arrumar a casa e voltar para o quartel o mais rápido possível. E os costistas, alinhados com general Costa e Silva, que, em nome da caça aos comunistas, defendiam o endurecimento do regime. Eu concordava com o pensamento dos castelistas. Fomos derrotados por uma decisão do Castello Branco.
ZH — Que decisão?
Newton Cruz — Ele não concordava que Costa e Silva fosse o seu sucessor. Não pela pessoa, que era um ótimo camarada de farda. Mas pelo grupo que o rodeava, muitos deles sedentos de vingança contra os comunistas. Castello tinha prestígio suficiente para fazer o seu sucessor. Pela lógica, deveria ser o general Ernesto Geisel (presidente de 1974 a 1979). Ele permitiu que Costa e Silva o sucedesse porque temia que um enfrentamento causasse um racha no Exército, o que poderia culminar com um enfrentamento militar. Foi um erro que nos manteve fora dos quartéis por 21 anos.
ZH — Não era ponto comum entre castelistas e costistas a caça aos comunistas?
Newton Cruz — Posso afirmar com toda convicção que não. Os comunistas eram um pequeno grupo que se aproveitou da situação para se infiltrar entre a juventude rebelde. O problema era o pessoal ligado ao regime populista que havíamos derrubado. Este estava em toda a parte e tinha força de mobilização. A história provou que estávamos certos.
ZH — Os historiadores o colocam como um dos generais linha-dura do regime. No decorrer do regime, o senhor aderiu aos costistas?
Newton Cruz — Não aderi. Quem diz que eu era linha-dura é a imprensa. Sempre fiz as minhas ações dentro da lei vigente e muitas delas foram públicas.
ZH — Mas boa parte da sua carreira não foi pública. O senhor era do Serviço Nacional de Informações (SNI), um órgão que trabalhou nas sombras coletando e analisando informes para o regime O SNI chegou a ser um governo paralelo dentro da revolução?
Newton Cruz — Não. O SNI nunca teve tanto poder. Vou contar uma história. Como eu, o Figueiredo era instrutor da Escola do Estado-Maior em 1964. E logo depois ele foi para o Serviço Federal de Informações e Contra-Informações (SFICI), que funcionava em cima da Casa da Borracha, no Rio de Janeiro. Posteriormente, o SFICI foi absorvido pelo SNI. Fui convocado por ele para ir ajudá-lo, sem ser consultado. Nunca esqueço a cena. Cheguei para me apresentar no serviço. Figueiredo estava sentando em uma cadeira atrás de uma mesa com várias pilhas de papéis. E ao seu redor havia uma dezena de pessoas, todas falando ao mesmo tempo. Em uma sala ao lado, uma senhora, a dona Fausta, era a responsável por receber a papelada, carimbar e passar para o Figueiredo. Perguntei a ele o que deveria fazer. Respondeu que era para ficar por ali. Sugeri para ficar ajudando a dona Fausta a selecionar os documentos. Ele achou uma ótima idéia. E foi assim: entrei no serviço de informação no lugar da dona Fausta.
ZH — Nos anos seguintes, Figueiredo foi presidente e o senhor continuou trabalhando com ele. São duas pessoas com gênio forte. Tiveram muitas brigas?
Newton Cruz — Nada significativo. Nos tornamos amigos no trabalho. Mas jamais participei da intimidade dele. Ele me chamava de Nini, apelido que ganhei do meu irmão mais velho, o Ney, que cursou a Academia Militar comigo. Mas só o Figueiredo me chamava de Nini. Para os outros camaradas de farda eu era Newton, que é meu nome de guerra. A imprensa é que inventou o nome general Newton Cruz.
ZH — Em 1981, quando o senhor era chefe da Agência Central do SNI, aconteceu o episódio do Riocentro. Foi apurado que o então capitão Wilson Dias Machado e o sargento Guilherme Pereira do Rosário foram colocar uma bomba caseira onde ocorria um show musical. A artefato explodiu no colo do sargento e o matou. Em que momento o episódio chegou ao seu conhecimento?
Newton Cruz — Tomei conhecimento quando já estava em execução. E não tive como evitar. Na época, não havia telefone celular. Na noite de 30 de abril, o responsável pelo SNI no Rio me ligou e falou comigo. Disse que havia estado em uma reunião no DOI-CODI com um pessoal que estava se organizando para jogar uma bomba no Riocentro para marcar posição. Não pretendiam machucar ninguém. Mas queriam marcar posição contra os comunistas. Disse que havia conseguido convencê-los a colocar o explosivo em outro lugar. Alertou que poderia haver dissidentes no grupo. Perguntei se tinha como detê-los. Respondeu que não, que a coisa já estava em andamento.
ZH — Na época se comentou que havia um grupo de radicais no DOI-CODI organizado para abortar a abertura política que o presidente Figueiredo conduzia. Seria uma espécie de reprise de 1968. O Inquérito Policial Militar que apurou o caso fez esta relação?
Newton Cruz — Não há tal relação. Foi um ato isolado de pessoas que queriam marcar posição contra os comunistas. Eles agiram errado.
ZH — Durante uma boa parte do regime militar o senhor esteve ligado direta ou indiretamente ao SNI. Em São Paulo, houve a Operação Bandeirante, do DOI-CODI, que resultou em torturas e mortes fartamente documentadas. No Rio Grande do Sul, houve o caso do seqüestro dos uruguaios Universindo Diaz e Lílian Celiberti pelos agentes da Operação Condor. O que o senhor sabe sobre esses episódios?
Newton Cruz — Lembra 1968? Ali, os linha-dura se aglutinaram e se organizaram nos órgãos regionais de coleta de informações, que então passaram a atuar como operadores na luta contra os opositores do regime. Houve muitos excessos, porque agiram igualzinho àqueles a quem perseguiam. As coisas só chegavam ao governo central quando aconteciam grandes rolos. Lembro do Geisel tendo uma crise de raiva quando sabia das barbaridades. Ele retomou o controle da situação quando demitiu (em janeiro de 1976) o comandante do II Exército, general Ednardo D'Avila Melo (havia morrido nas dependências do DOI-CODI paulista o operário Manoel Fiel Filho e, posteriormente, o jornalista Vladimir Herzog). A demissão mostrou à linha-dura quem mandava.
ZH —Mas o senhor nunca viu ou leu relatórios oficiais sobre as torturas?
Newton Cruz — Nunca vi ninguém sendo torturado. Fora do papel circulavam muitas histórias. Uma delas falava que havia uma cobra grande criada em cativeiro em uma unidade militar no Rio. E que era só ameaçar colocar a pessoa com o animal que ela falava o que sabia e o que não sabia.
ZH — O senhor foi julgado e inocentado em 1992 pelo assassinato do jornalista Alexandre von Baumgarten, da mulher dele, Janette, e do barqueiro Manoel Pires. O episódio aconteceu em outubro de 1982. No ano seguinte, veio a público um dossiê preparado por Baumgarten pouco antes de morrer em que ele dizia que seria assassinado a mando do SNI. Só não sabia se a ordem seria dada pelo senhor ou pelo general Octávio Medeiros, então chefe do SNI. Esse episódio alterou o rumo da sua carreira?
Newton Cruz — Indiretamente, sim. Baumgarten era um anticomunista pilantra, tinha inimigos por todos os cantos. A principal testemunha do caso foi um bailarino (Cláudio Werner Polila). O dossiê havia sido feito a quatro mãos, uma delas era as de um coronel canalha que demiti do SNI, já morreu e não vale a pena pronunciar o nome. Nada foi comprovado. Mas eu precisei ir aos jornais falar sobre a minha inocência. Daí, virei ícone do regime militar. Era o general truculento, assassino, linha-dura e sei lá mais o quê.
ZH — Para defender-se, o senhor estudou o caso. E também tinha todo o SNI a seu dispor para investigar. Conseguiu descobrir quem matou o jornalista, a mulher e o barqueiro?
Newton Cruz — A verdade eu sei. Mas soube sob garantia de profissional. Nem que tivesse sido condenado poderia dizer. Não falei nem para o meu advogado.
ZH — O caso Baumgarten tem a ver com a sua transferência do SNI para o Comando Militar do Planalto, em Brasília, em 1983?
Newton — Tudo a ver. O general Medeiros falou com Figueiredo que era hora de eu voltar para a tropa, porque estava muito em evidência. Era tudo o eu que queria. Voltei para fazer manobras militares. Tudo corria às mil maravilhas. Até que o Figueiredo lembrou de mim novamente, ao declarar medidas de emergência. Nem sabia direito o que era, precisei olhar na Constituição. Lá dizia que podia fazer tudo para cumprir a missão.
ZH — Reportagens de jornais da época mostram que o senhor no Comando Militar do Planalto agrediu um jornalista, bateu de chicote nos automóveis que faziam uma carreata, entre outras coisas. Como foi?
Newton — Isso é o que a imprensa escreveu. Muito coisa baseada em relatos inverídicos. Houve duas decretações de medidas de emergência, a primeira em outubro de 1983, para votação pelos deputados de alterações na lei salarial. E a segunda em abril de 1984, para a votação da emenda constitucional das eleições diretas para presidente. O episódio do jornalista aconteceu na primeira. Estava dando uma entrevista a dezenas de repórteres, um deles (Honório Dantas, repórter da Rádio Planalto) insistia em enfiar um gravador na minha cara. Parei a entrevista várias vezes e pedia que tirasse aquele troço dali. Além de não ter atendido, ele ainda fez um desaforo, desligando o gravador na minha cara e saindo da entrevista. Fui atrás dele, o peguei pelo braço e o fiz pedir desculpas perante a TV. O fato foi explorado politicamente. (segundo Dantas, que falou com ZH, o general lhe deu uma chave de braço e o forçou a pedir desculpas).
ZH — E como foi o episódio em que o senhor bateu nos automóveis durante uma carreata em Brasília?
Newton Cruz — Foi no dia da votação da Emenda das Diretas. Eu estava na minha sala e, lá embaixo, uma barulheira. Era uma carreata de automóveis com luzes acesas e buzinando. Desci e ordenei ao sargento da guarda que atravessasse um ônibus no meio da rua para impedir a passagem da carreata. Daí eu, sozinho, desarmado, iniciei uma caminhada no meio dos veículos. No primeiro, cheguei e bati no capô com o meu bastão de comando, que não tem nada a ver com chicote, e disse para o motorista o seguinte: vocês vieram me desmoralizar perante a minha tropa. Estou aqui. O cara parou de buzinar, apagou os faróis e ficou quieto. Notei que os veículos ao seu redor haviam feito a mesma coisa. Então, fui caminhando até o final da carreata batendo no capô dos carros. No final era aquele silêncio de cemitério. Voltei e ordenei ao sargento que deixasse sair dali um veículo de cada vez e anotasse as placas. Horas depois veio o sargento com as anotações. Mandei atirar fora.
ZH — Houve prisões nesse episódio?
Newton Cruz — Depois dos carros veio uma passeata. Daí, mandei os policiais militares do choque dissolverem a manifestação com bombas de gás lacrimogêneo. No meio da nuvem de gás, vindo em minha direção, saiu um grupo de pessoas de braços dados gritando "o povo unido jamais será vencido". Dei voz de prisão para dois líderes dizendo o seguinte: "que povo unido nada, vocês estão presos". Os conduzi até a guarda do QG. Assim que esfriei a cabeça pensei o que iria fazer com aqueles dois. Se ficasse com eles ali, eu causaria uma dor de cabeça a mais para o Figueiredo. Então, dei um sermão neles na frente dos soldados e os mandei embora. Ninguém ficou preso.
ZH — Essa sua exposição acabou lhe custando a sua quarta estrela, a promoção a general-de-exército?
Newton Cruz — Eu fui traído na reunião do Alto Comando onde estava sendo decidido quem iria ganhar a quarta estrela. Fui traído por colegas que sempre elogiaram as minhas ações. Alguns deles tinham feito elogios poucos dias antes do encontro. Por que mudaram de opinião? Para se posicionar bem na Nova República que estava sendo implantada. Ninguém queria ficar perto de um general facínora. Fui o bode expiatório da revolução.
ZH — Depois o senhor tentou a carreira política?
Newton Cruz — Sim. Eu precisava de um palanque para me defender. Na eleição para governador do Rio de Janeiro, em 1994, fiquei em terceiro lugar.
ZH — Como candidato o senhor se envolveu em briga com militantes de partidos adversários. Como foi?
Newton Cruz — Em parte é verdade. Havia saído de um debate em uma emissora de TV e o meu carro foi cercado por militantes do PT. Não o do Lula. O outro, dos loucos. Cercaram o veículo e ficaram ali gritando que eu era truculento, facínora, assassino, ditador e coisas do gênero. Não dei bola. Sempre ouvi tal coisa. Mas aí um dos cara ofendeu a minha mãe. Aí, não. A mãe é sagrada. Saí de dentro do carro e fui para cima dele. Daí, falaram que continuava truculento.
Fonte: Zero Hora - 26 Jul 08
Um comentário:
"ícone da ditadura militar"? Que nada ! Gostaria de, um dia, poder ter o privilégio de ouvir suas Histórias pessoalmente. Afinal, ele foi um dos poucos que sobraram, para dizer a verdade e os grandes feitos de um tempo, em que existia Hierarquia e Disciplina neste país! General, tú és MEU HERÓI !!
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