por Janer Cristaldo
O ano era 1980 e eu vivia em Paris. Hospedei por alguns dias o namorado de uma advogada trabalhista gaúcha, que se dirigia a Moscou para um curso de cinco anos na Patrice Lumumba. Muito ingênuo, uns vinte anos antes eu havia postulado a mesma bolsa. Queria sair do Brasil, não importava para onde fosse. Quis o bom deus dos ateus que minha aplicação fosse interceptada pelos serviços de segurança, o que me valeu um interrogatório e uma noite de prisão em Dom Pedrito. Dos males, o menor. Ganhasse a bolsa, faria de minha vida um inferno e, na época, teria dificuldades para voltar ao Brasil.
Mas falava do gaúcho que ia para Moscou. Eu o recebi com meus melhores vinhos e charlamos por pelo menos duas noites. Que vais fazer em Moscou? — perguntei. “Vou fazer arquitetura, na Patrice. Um curso de cinco anos”. Sabes desenhar caixas de fósforos? — voltei à carga. Ele me olhou com um gesto de que eu não merecia resposta. Bom, meu caro, se sabes desenhar caixas de fósforo, já dominas toda a arquitetura soviética. Nem precisa ir.
Ofendeu-se, o gaúcho. Queria ir embora lá de casa. Instei-o a ficar, eu apenas fazia um comentário. Mas predisse: tu vives boa vida em Porto Alegre. Não vais agüentar nem seis meses em Moscou. Despediu-se de mim irritado.
Mês seguinte, chega sua namorada, a advogada trabalhista. Iria visitá-lo em Moscou. Ficou um mês esperando pelo visto. Nesse meio tempo, fui lhe apresentando as delícias do capitalismo. Bom, vai daí que a moça acabou indo ao paraíso socialista. Voltou um mês depois. De cabeça gacha. Como é que foi? — perguntei. Ela não falou muito. Disse apenas que era uma cidade concebida para gigantes. Antes de voltar ao Brasil, fez-me algumas confidências. “Tudo é escasso lá. E não há escolha. Os absorventes higiênicos são enormes”.
Pois é, minha querida. País de gigantes é assim mesmo. Mas a história não termina aqui. Continuamos a trocar correspondência. Era a época das cartas, que demoravam pelo menos uma semana para chegar. Três meses depois, ela me dá notícias de Porto Alegre e fala que o namorado havia decidido voltar, que não via muito sentido em ficar cinco anos estudando agronomia em Moscou. (Agora, era agronomia. O curso inicial era arquitetura). Continuou escrevendo e, ao final, um PS: “Tche, o Rui chegou ontem”.
O bravo militante comunista, que fora à Rússia para um curso de cinco anos, não agüentou nem seis meses, como eu previra. Nos encontramos mais tarde em Porto Alegre. Viu? — perguntei . Nem seis meses.
— Ah! Não vou te explicar. Não vais entender.
Não iria entender mesmo. Só afirmei que ele não suportaria nem seis meses em Moscou. Mas bom cabrito não berra.
Digo isto a propósito do retorno de Cuba de Luciana Genro. A ex-deputada stalinista nos prometeu um relato de seu périplo, pelo qual esperei ansiosamente. Boa stalinista também não berra. Apesar de todos os relatos da miséria que assola a ilha, da fuga em massa dos cubanos para Miami, dos fuzilamentos sumários ordenados por Castro e Guevara, Luciana Genro encontra palavras para louvar uma ditadura de mais de cinqüenta anos — a mais longa do século passado.
“A vitória da guerrilha de Fidel e Che Guevara foi o coroamento de uma luta de massas que derrubou uma ditadura sangrenta que fazia do país o quintal de recreação da burguesia americana, à custa da pobreza extrema dos cubanos — escreve Genro —. Por isso esta revolução ainda é reivindicada pelo povo. Mesmo quem critica o regime sabe que a revolução cumpriu um papel fundamental para a libertação do país”.
Se antes era o quintal de recreação da burguesia americana, hoje é o bordel de todo Ocidente. Castro conseguiu um milagre. Banalizou a tal ponto a prostituição, que hoje um cubano oferece alegremente aos turistas sua mulher, em troca dos malditos dólares do império. Quando perguntaram a Fidel porque em sua ilha as universitárias se prostituíam, o Líder Máximo foi olímpico: é que em Cuba até as prostitutas têm grau universitário.
Quanto à pobreza extrema dos cubanos, esta não é exatamente dos dias de Fulgêncio Batista. O salário médio de um médico cubano, hoje, é de 15 dólares por mês, quantia que um mendigo tira fácil por dia no Brasil. As libretas de racionamento são achados do regime castrista, não do governo de Batista. Naqueles dias, quem queria sair de Cuba saía quando bem entendesse. Na ditadura de Castro, só fugindo e arriscando a vida no mar do Caribe.
A ex-deputada consegue ser um pouco mais honesta que Michael Moore em Sicko, mas acaba enredando-se em suas dialéticas contradições: “Depois do fim da URSS a situação econômica de Cuba piorou terrivelmente”. Qual era o subsídio da extinta à Cuba? Cinco bilhões de dólares anuais. Para uma ilhota de 10 milhões de habitantes. O que dá 500 dólares per capita ao ano. Hoje, um médico ganha 180 dólares por ano, menos da metade do subsídio soviético. Em uma frase, Genro atesta o fracasso total da dita revolução cubana.
“Não conheci a Cuba de antes, mas hoje a miséria anda nas ruas e contrasta com a opulência ostentada pelos turistas, que inclusive utilizam outra moeda para consumir o que é inacessível ao cidadão nacional. O que um turista paga por uma refeição em um restaurante médio equivale ao salário de um mês inteiro de um cubano, ou mais, dependendo da profissão. É verdade que o abismo entre ricos e pobres que vivemos no capitalismo não existe entre os cubanos, mas ele revela-se de forma cruel no contraste entre a capacidade de consumo dos cubanos versus a dos turistas”.
O turista usa outra moeda porque o regime não permite que os cubanos usem a mesma moeda do turista. E se um turista paga por uma refeição em um restaurante médio o equivalente ao salário de um mês inteiro de um cubano, a culpa não é do turista, mas do regime que oferece tais salários. Desde há muito um cubano não come no mesmo restaurante que um turista, e isto sempre foi assim em todo país socialista. Genro estabelece uma espécie de luta de classes entre os malvados turistas — esquecendo que ela também é turista — e os coitadinhos cubanos. Mas turistas vêm de economias capitalistas e conseguem pagar o preço dos restaurantes cubanos ... para turistas.
Quanto aos cubanos, vivem em economia socialista ... e que se lixem. Diga-se de passagem, é o turismo que traz a Cuba os raros dólares que entram na ilha. Outros dólares são enviados pelos familiares refugiados naquele malvado país capitalista, os Estados Unidos.
A deputada até que reconhece algumas manchas no paraíso: “As glórias da revolução não anulam um fato que é claro como o dia: a população não tem canais de expressão. A direção do Partido Comunista Cubano é uma burocracia fossilizada que mantém a política interditada no país. Quem diverge é tratado como traidor e enquadrado como agente imperialista. Se eles lessem este meu relato eu possivelmente seria assim qualificada”.
Mas ... qual partido comunista não é fossilizado? Ou ela conhece algum que seja ágil e moderno? Por que a ex-deputada não disse isto lá em Cuba? Mesmo assim, a militante do PSOL endossa todas as ditaduras do século passado:
“Pois finalizo reiterando as minhas convicções socialistas, reivindicando a revolução russa, chinesa, cubana … e a minha aversão aos burocratas ditos comunistas que desfiguraram o projeto comunista, que na tradição marxista registrada no Manifesto escrito por Marx e Engels é um projeto de igualdade, solidariedade e libertação de toda a exploração e opressão, seja ela exercida pela burguesia ou pela burocracia”.
Genro está endossando o preço das revoluções que louva: cem milhões de cadáveres. Desvios do projeto original. Quem sabe, numa outra tentativa... Afinal, quando as estatísticas estão na ordem dos milhões, centenas de milhares de cadáveres constituem apenas um detalhe. Tanto faz como tanto fez.
Mas falava do gaúcho que ia para Moscou. Eu o recebi com meus melhores vinhos e charlamos por pelo menos duas noites. Que vais fazer em Moscou? — perguntei. “Vou fazer arquitetura, na Patrice. Um curso de cinco anos”. Sabes desenhar caixas de fósforos? — voltei à carga. Ele me olhou com um gesto de que eu não merecia resposta. Bom, meu caro, se sabes desenhar caixas de fósforo, já dominas toda a arquitetura soviética. Nem precisa ir.
Ofendeu-se, o gaúcho. Queria ir embora lá de casa. Instei-o a ficar, eu apenas fazia um comentário. Mas predisse: tu vives boa vida em Porto Alegre. Não vais agüentar nem seis meses em Moscou. Despediu-se de mim irritado.
Mês seguinte, chega sua namorada, a advogada trabalhista. Iria visitá-lo em Moscou. Ficou um mês esperando pelo visto. Nesse meio tempo, fui lhe apresentando as delícias do capitalismo. Bom, vai daí que a moça acabou indo ao paraíso socialista. Voltou um mês depois. De cabeça gacha. Como é que foi? — perguntei. Ela não falou muito. Disse apenas que era uma cidade concebida para gigantes. Antes de voltar ao Brasil, fez-me algumas confidências. “Tudo é escasso lá. E não há escolha. Os absorventes higiênicos são enormes”.
Pois é, minha querida. País de gigantes é assim mesmo. Mas a história não termina aqui. Continuamos a trocar correspondência. Era a época das cartas, que demoravam pelo menos uma semana para chegar. Três meses depois, ela me dá notícias de Porto Alegre e fala que o namorado havia decidido voltar, que não via muito sentido em ficar cinco anos estudando agronomia em Moscou. (Agora, era agronomia. O curso inicial era arquitetura). Continuou escrevendo e, ao final, um PS: “Tche, o Rui chegou ontem”.
O bravo militante comunista, que fora à Rússia para um curso de cinco anos, não agüentou nem seis meses, como eu previra. Nos encontramos mais tarde em Porto Alegre. Viu? — perguntei . Nem seis meses.
— Ah! Não vou te explicar. Não vais entender.
Não iria entender mesmo. Só afirmei que ele não suportaria nem seis meses em Moscou. Mas bom cabrito não berra.
Digo isto a propósito do retorno de Cuba de Luciana Genro. A ex-deputada stalinista nos prometeu um relato de seu périplo, pelo qual esperei ansiosamente. Boa stalinista também não berra. Apesar de todos os relatos da miséria que assola a ilha, da fuga em massa dos cubanos para Miami, dos fuzilamentos sumários ordenados por Castro e Guevara, Luciana Genro encontra palavras para louvar uma ditadura de mais de cinqüenta anos — a mais longa do século passado.
“A vitória da guerrilha de Fidel e Che Guevara foi o coroamento de uma luta de massas que derrubou uma ditadura sangrenta que fazia do país o quintal de recreação da burguesia americana, à custa da pobreza extrema dos cubanos — escreve Genro —. Por isso esta revolução ainda é reivindicada pelo povo. Mesmo quem critica o regime sabe que a revolução cumpriu um papel fundamental para a libertação do país”.
Se antes era o quintal de recreação da burguesia americana, hoje é o bordel de todo Ocidente. Castro conseguiu um milagre. Banalizou a tal ponto a prostituição, que hoje um cubano oferece alegremente aos turistas sua mulher, em troca dos malditos dólares do império. Quando perguntaram a Fidel porque em sua ilha as universitárias se prostituíam, o Líder Máximo foi olímpico: é que em Cuba até as prostitutas têm grau universitário.
Quanto à pobreza extrema dos cubanos, esta não é exatamente dos dias de Fulgêncio Batista. O salário médio de um médico cubano, hoje, é de 15 dólares por mês, quantia que um mendigo tira fácil por dia no Brasil. As libretas de racionamento são achados do regime castrista, não do governo de Batista. Naqueles dias, quem queria sair de Cuba saía quando bem entendesse. Na ditadura de Castro, só fugindo e arriscando a vida no mar do Caribe.
A ex-deputada consegue ser um pouco mais honesta que Michael Moore em Sicko, mas acaba enredando-se em suas dialéticas contradições: “Depois do fim da URSS a situação econômica de Cuba piorou terrivelmente”. Qual era o subsídio da extinta à Cuba? Cinco bilhões de dólares anuais. Para uma ilhota de 10 milhões de habitantes. O que dá 500 dólares per capita ao ano. Hoje, um médico ganha 180 dólares por ano, menos da metade do subsídio soviético. Em uma frase, Genro atesta o fracasso total da dita revolução cubana.
“Não conheci a Cuba de antes, mas hoje a miséria anda nas ruas e contrasta com a opulência ostentada pelos turistas, que inclusive utilizam outra moeda para consumir o que é inacessível ao cidadão nacional. O que um turista paga por uma refeição em um restaurante médio equivale ao salário de um mês inteiro de um cubano, ou mais, dependendo da profissão. É verdade que o abismo entre ricos e pobres que vivemos no capitalismo não existe entre os cubanos, mas ele revela-se de forma cruel no contraste entre a capacidade de consumo dos cubanos versus a dos turistas”.
O turista usa outra moeda porque o regime não permite que os cubanos usem a mesma moeda do turista. E se um turista paga por uma refeição em um restaurante médio o equivalente ao salário de um mês inteiro de um cubano, a culpa não é do turista, mas do regime que oferece tais salários. Desde há muito um cubano não come no mesmo restaurante que um turista, e isto sempre foi assim em todo país socialista. Genro estabelece uma espécie de luta de classes entre os malvados turistas — esquecendo que ela também é turista — e os coitadinhos cubanos. Mas turistas vêm de economias capitalistas e conseguem pagar o preço dos restaurantes cubanos ... para turistas.
Quanto aos cubanos, vivem em economia socialista ... e que se lixem. Diga-se de passagem, é o turismo que traz a Cuba os raros dólares que entram na ilha. Outros dólares são enviados pelos familiares refugiados naquele malvado país capitalista, os Estados Unidos.
A deputada até que reconhece algumas manchas no paraíso: “As glórias da revolução não anulam um fato que é claro como o dia: a população não tem canais de expressão. A direção do Partido Comunista Cubano é uma burocracia fossilizada que mantém a política interditada no país. Quem diverge é tratado como traidor e enquadrado como agente imperialista. Se eles lessem este meu relato eu possivelmente seria assim qualificada”.
Mas ... qual partido comunista não é fossilizado? Ou ela conhece algum que seja ágil e moderno? Por que a ex-deputada não disse isto lá em Cuba? Mesmo assim, a militante do PSOL endossa todas as ditaduras do século passado:
“Pois finalizo reiterando as minhas convicções socialistas, reivindicando a revolução russa, chinesa, cubana … e a minha aversão aos burocratas ditos comunistas que desfiguraram o projeto comunista, que na tradição marxista registrada no Manifesto escrito por Marx e Engels é um projeto de igualdade, solidariedade e libertação de toda a exploração e opressão, seja ela exercida pela burguesia ou pela burocracia”.
Genro está endossando o preço das revoluções que louva: cem milhões de cadáveres. Desvios do projeto original. Quem sabe, numa outra tentativa... Afinal, quando as estatísticas estão na ordem dos milhões, centenas de milhares de cadáveres constituem apenas um detalhe. Tanto faz como tanto fez.
Fonte: Janer Cristaldo
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CONTINUAÇÃO:
Stalinista Não Tem Cura
Leitor acha que exagerei ao escrever que Luciana Genro justifica cem milhões de cadáveres. Ora, é o que diz a moça quando escreve em seu blog, ao voltar de seu turismo privilegiado em Cuba: “finalizo reiterando as minhas convicções socialistas, reivindicando a revolução russa, chinesa, cubana”. Cem milhões de mortos é o saldo aproximado das vítimas do comunismo no século passado, assim distribuídas, conforme Le Livre Noir du Communisme (Stéphane Courtois et allia):
- URSS — 20 milhões de mortos;
- URSS — 20 milhões de mortos;
- China — 65 milhões;
- Vietnã — 1 milhão;
- Coréia do Norte — 2 milhões;
- Cambodja — 2 milhões;
- Europa do Leste — 1 milhão;
- América Latina — 150 mil;
- África — 1,7 milhão,
- Afeganistão — 1,5 milhão;
- movimento comunista internacional e PCs fora do poder — uma dezena de milhar de mortos.
Atenção: não estamos falando de soldados mortos em guerra. Mas de civis assassinados pelos regimes comunistas. Vamos a mais alguns feitos do comunismo, relacionados no livro supra:
- fuzilamento de dezenas de milhares de reféns ou de pessoas aprisionadas sem julgamento e massacre de centenas de milhares de operários e camponeses rebelados entre 1918 e 1922;
- epidemia de fome de 1922, provocando a morte de cinco milhões de pessoas;
- extermínio e deportação dos cossacos do Don em 1920;
- assassinato de dezenas de milhares de pessoas nos campos de concentração entre 1918 e 1930;
- extermínio de aproximadamente 690 mil pessoas por ocasião da Grande Purga de 1937-1938;
- deportação de dois milhões de kulaks em 1930-1932;
- destruição pela fome provocada e não socorrida de seis milhões de ucranianos em 1932-1933;
- deportação de centenas de milhares de poloneses, ucranianos, bálticos, moldavos e bessárabes em 1939-1941, e depois em 1944-1945;
- deportação de alemães do Volga em 1941;
- deportação e abandono os tártaros da Criméia em 1944;
- deportação e abandono dos chechenos em 1944;
- deportação e abandono dos inguches em 1944;
- deportação e liquidação das populações urbanas do Camboja entre 1975 e 1978;
- lenta destruição dos tibetanos pelos chineses após 1950.
Estou cansado dessa gente que pretende ter as mãos limpas de sangue, mas endossa serenamente a morte de milhões. Tudo em nome da Ideia, como se dizia no auge do comunismo. Não se admite que, em pleno século XXI, Luciana Genro não esteja a par destas informações. Mesmo assim, admite, com a tranqüilidade dos justos, o massacre desta humanidade toda. Albert Camus não o admitia, e por isto foi considerado, em sua época, mais ou menos como um leproso. Disse Sartre, visando Camus: “tout anticomuniste est un chien”. Todo anticomunista é um cão. Sartre não tinha as mãos sujas de sangue, mas sempre apoiou os tiranos que assassinavam em massa. Tenho de voltar à minha tese, Mensageiros das Fúrias, defendida em 1981, na Université de la Sorbonne Nouvelle:
Em 1946, Camus publica em Combat uma série de artigos, sob o título genérico de "Ni victimes ni bourreaux", reflexões que antecipam O Homem Revoltado. Se o século XVII foi o século das matemáticas, argumenta Camus, se o XVIII foi o século das ciências físicas, se o XIX foi o da biologia, o homem contemporâneo vive o século do medo.
"Dir-me-ão que isto não é uma ciência. Mas, primeiramente, a ciência aí está para qualquer coisa, pois seus últimos progressos teóricos a levaram a negar-se a si mesma, dado que seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam a terra inteira de destruição. Além disso, se o medo em si mesmo não pode ser considerado como uma ciência, não resta dúvida alguma que seja uma técnica".
O que choca Camus é o fato de que homens que viram "mentir, aviltar, matar, deportar, torturar" se façam de surdos cada vez que se tenta dissuadir os homens que mentiam, aviltavam, matavam, deportavam e torturavam, pois estes lutavam em nome de uma abstração. O diálogo entre os homens morreu. "Um homem que não se pode persuadir é um homem que faz medo".
Camus não aceita os constrangimentos de sua época, ou ao menos os constrangimentos de certas correntes intelectuais: não se pode falar do expurgo de artistas na Rússia porque isto favoreceria a "reação". Impossível condenar o apoio dos anglo-saxões a Franco, porque isto seria favorecer o comunismo. Homens concretos, em carne e osso, são massacrados, triturados em nome de solenes ideais. Este massacre não deve ser denunciado, para não impedir a marcha da Ideia. "Vivemos no mundo da abstração, no mundo dos escritórios e das máquinas, das idéias absolutas e do messianismo sem nuanças".
Para escapar a este terror, Camus propõe uma pausa para reflexão, sem esquecer que o terror não é propício à reflexão. Chama os homens sem partido, ou mesmo os homens de partido e que nele se sentem mal, todos aqueles que duvidam da realização do socialismo na Rússia e do liberalismo na América, chama mesmo aqueles que têm crenças mas que se recusam a impô-las pelo assassinato, individual ou coletivo. Revolta-se contra a justificação do assassinato em nome de abstrações, por mais atraentes que sejam. E lança a seus contemporâneos duas questões fundamentais:
"Sim ou não, direta ou indiretamente, você quer ser assassinado ou violentado? Sim ou não, direta ou indiretamente, você quer assassinar ou violentar? Todos aqueles que responderem negativamente a estas duas questões estão automaticamente embarcados em uma série de conseqüências que devem modificar sua maneira de expor o problema".
O que ele pede é um mundo, não onde não se assassine — "não somos loucos a tal ponto!" — mas onde ao menos o assassinato não seja legitimado. Choca-se com o fato de que todos aqueles que lutam por ideais históricos são homens cheios de boa vontade e que o resultado de sua ação seja o assassinato, a deportação e a guerra. A recusa de legitimar o assassinato deve conduzir-nos a uma reconsideração da noção de utopia.
"A utopia é o que está em contradição com a realidade. Deste ponto de vista, seria totalmente utópico querer que ninguém mate ninguém. É a utopia absoluta. Mas é uma utopia de grau bem mais viável pedir que o assassinato não mais seja legitimado".
Mais de meio século depois desta denúncia, duas décadas após a queda do Muro e do desmoronamento da União Soviética, assestando sua poltrona no sentido da História — como diria Camus — Luciana Genro legitima assassinatos.
Espanta ver que tal cúmplice de massacres tenha um dia sido eleita deputada.
Fonte: Janer CristaldoAtenção: não estamos falando de soldados mortos em guerra. Mas de civis assassinados pelos regimes comunistas. Vamos a mais alguns feitos do comunismo, relacionados no livro supra:
- fuzilamento de dezenas de milhares de reféns ou de pessoas aprisionadas sem julgamento e massacre de centenas de milhares de operários e camponeses rebelados entre 1918 e 1922;
- epidemia de fome de 1922, provocando a morte de cinco milhões de pessoas;
- extermínio e deportação dos cossacos do Don em 1920;
- assassinato de dezenas de milhares de pessoas nos campos de concentração entre 1918 e 1930;
- extermínio de aproximadamente 690 mil pessoas por ocasião da Grande Purga de 1937-1938;
- deportação de dois milhões de kulaks em 1930-1932;
- destruição pela fome provocada e não socorrida de seis milhões de ucranianos em 1932-1933;
- deportação de centenas de milhares de poloneses, ucranianos, bálticos, moldavos e bessárabes em 1939-1941, e depois em 1944-1945;
- deportação de alemães do Volga em 1941;
- deportação e abandono os tártaros da Criméia em 1944;
- deportação e abandono dos chechenos em 1944;
- deportação e abandono dos inguches em 1944;
- deportação e liquidação das populações urbanas do Camboja entre 1975 e 1978;
- lenta destruição dos tibetanos pelos chineses após 1950.
Estou cansado dessa gente que pretende ter as mãos limpas de sangue, mas endossa serenamente a morte de milhões. Tudo em nome da Ideia, como se dizia no auge do comunismo. Não se admite que, em pleno século XXI, Luciana Genro não esteja a par destas informações. Mesmo assim, admite, com a tranqüilidade dos justos, o massacre desta humanidade toda. Albert Camus não o admitia, e por isto foi considerado, em sua época, mais ou menos como um leproso. Disse Sartre, visando Camus: “tout anticomuniste est un chien”. Todo anticomunista é um cão. Sartre não tinha as mãos sujas de sangue, mas sempre apoiou os tiranos que assassinavam em massa. Tenho de voltar à minha tese, Mensageiros das Fúrias, defendida em 1981, na Université de la Sorbonne Nouvelle:
Em 1946, Camus publica em Combat uma série de artigos, sob o título genérico de "Ni victimes ni bourreaux", reflexões que antecipam O Homem Revoltado. Se o século XVII foi o século das matemáticas, argumenta Camus, se o XVIII foi o século das ciências físicas, se o XIX foi o da biologia, o homem contemporâneo vive o século do medo.
"Dir-me-ão que isto não é uma ciência. Mas, primeiramente, a ciência aí está para qualquer coisa, pois seus últimos progressos teóricos a levaram a negar-se a si mesma, dado que seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam a terra inteira de destruição. Além disso, se o medo em si mesmo não pode ser considerado como uma ciência, não resta dúvida alguma que seja uma técnica".
O que choca Camus é o fato de que homens que viram "mentir, aviltar, matar, deportar, torturar" se façam de surdos cada vez que se tenta dissuadir os homens que mentiam, aviltavam, matavam, deportavam e torturavam, pois estes lutavam em nome de uma abstração. O diálogo entre os homens morreu. "Um homem que não se pode persuadir é um homem que faz medo".
Camus não aceita os constrangimentos de sua época, ou ao menos os constrangimentos de certas correntes intelectuais: não se pode falar do expurgo de artistas na Rússia porque isto favoreceria a "reação". Impossível condenar o apoio dos anglo-saxões a Franco, porque isto seria favorecer o comunismo. Homens concretos, em carne e osso, são massacrados, triturados em nome de solenes ideais. Este massacre não deve ser denunciado, para não impedir a marcha da Ideia. "Vivemos no mundo da abstração, no mundo dos escritórios e das máquinas, das idéias absolutas e do messianismo sem nuanças".
Para escapar a este terror, Camus propõe uma pausa para reflexão, sem esquecer que o terror não é propício à reflexão. Chama os homens sem partido, ou mesmo os homens de partido e que nele se sentem mal, todos aqueles que duvidam da realização do socialismo na Rússia e do liberalismo na América, chama mesmo aqueles que têm crenças mas que se recusam a impô-las pelo assassinato, individual ou coletivo. Revolta-se contra a justificação do assassinato em nome de abstrações, por mais atraentes que sejam. E lança a seus contemporâneos duas questões fundamentais:
"Sim ou não, direta ou indiretamente, você quer ser assassinado ou violentado? Sim ou não, direta ou indiretamente, você quer assassinar ou violentar? Todos aqueles que responderem negativamente a estas duas questões estão automaticamente embarcados em uma série de conseqüências que devem modificar sua maneira de expor o problema".
O que ele pede é um mundo, não onde não se assassine — "não somos loucos a tal ponto!" — mas onde ao menos o assassinato não seja legitimado. Choca-se com o fato de que todos aqueles que lutam por ideais históricos são homens cheios de boa vontade e que o resultado de sua ação seja o assassinato, a deportação e a guerra. A recusa de legitimar o assassinato deve conduzir-nos a uma reconsideração da noção de utopia.
"A utopia é o que está em contradição com a realidade. Deste ponto de vista, seria totalmente utópico querer que ninguém mate ninguém. É a utopia absoluta. Mas é uma utopia de grau bem mais viável pedir que o assassinato não mais seja legitimado".
Mais de meio século depois desta denúncia, duas décadas após a queda do Muro e do desmoronamento da União Soviética, assestando sua poltrona no sentido da História — como diria Camus — Luciana Genro legitima assassinatos.
Espanta ver que tal cúmplice de massacres tenha um dia sido eleita deputada.
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