Reportagem especial do Metrópoles.
Primeiro vieram os católicos, depois os evangélicos e, agora, o grupo Asham catequiza dezenas de crianças e adolescentes de São Gabriel da Cachoeira (AM) para convertê-los em muçulmanos.
O corre-corre era intenso em uma das maiores escolas públicas de Manaus (AM). Diante do fim do ciclo escolar, uma professora decidiu chamar os formandos do ensino médio para uma roda de conversa. O objetivo era falar sobre os planos para o futuro e qual faculdade pretendiam fazer, mas o assunto ali discutido acabou culminando em uma operação de resgate da Polícia Federal.
Entre os estudantes, havia um grupo formado por indígenas, que tinha entrado recentemente na escola. Em resposta à pergunta sobre o futuro, e para a surpresa da professora, um deles disse: “O tio falou que ano que vem a gente já vai para a Turquia”.
Abdulhakim Tokdemir leva indígenas de São Gabriel da Cachoeira até Manaus desde 2019 |
O tio em questão era Abdulhakim Tokdemir, chefe de um grupo islâmico que, desde 2019, tem catequizado dezenas de crianças e adolescentes indígenas da Amazônia para seguir o islã. Não há registro de islamização de indígenas antes disso na história do Brasil.
Além da doutrinação em território brasileiro, esses adolescentes são levados de suas comunidades, em São Gabriel da Cachoeira (AM), cidade mais indígena do Brasil e que fica na divisa com a Colômbia e a Venezuela, e enviados para Manaus, com parada em São Paulo e destino final na Turquia, quando completam a maioridade.
Da Amazônia para a Turquia
Na capital amazonense, crianças e adolescentes vivem em um sobrado transformado em internato, onde ganham nomes em árabe. Lá, eles ficam diariamente em contato com o idioma turco e árabe. Os internos são ensinados ainda sobre o Alcorão e seguem uma rotina religiosa, que inclui cinco orações diárias e respeito ao jejum do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos.
Alguns frequentam escolas de ensino regular, outros nem isso. Em São Paulo, ficam mais um tempo em outro tipo de internato, e os mais velhos são enviados para as cidades de Kütahya e Tarsus, interior da Turquia, onde são matriculados em escolas religiosas.
Pelo menos cinco indígenas já foram retirados do Brasil e levados para território turco de 2019 para cá. O grupo islâmico que comanda a doutrinação se autointitula Associação Solidária Humanitária do Amazonas (Asham), e só se interessa por garotos indígenas. Nenhuma menina indígena foi levada pela organização.
Os pais dos alunos assinam uma autorização informal para a entrada dos filhos nesse grupo islâmico, com a promessa de fazer faculdade. Para famílias em situação de vulnerabilidade, em uma das cidades mais remotas do Brasil, a possibilidade de uma vida com mais oportunidades é um grande atrativo.
A autorização, no entanto, não vale nada na prática. A instituição islâmica não tem cadastro para funcionar como abrigo nem a guarda das crianças e dos adolescentes. De olho no grupo, a polícia desconfia das boas intenções pregadas.
Da Mata para o Islã
Mais jovem de 10 irmãos, Ângelo (*nome fictício) nasceu e viveu até os 14 anos em Cucura Manaus, uma comunidade indígena no meio da Floresta Amazônica, perto da fronteira com a Colômbia, cerca de 4 Km ao norte da Comunidade Maracajá (às margens do rio Tiquié).
Filho de mãe do povo Tukano e pai Desana, o garoto indígena cresceu sob os cuidados dos irmãos mais velhos. Culturalmente, os indígenas da região recebem a responsabilidade de cuidar dos irmãos mais novos.
Em Cucura Manaus, a maior parte das moradias é de barro e de palha, interligadas por trilhas que cortam a mata. Os ribeirinhos, de diferentes etnias, vivem da roça e da pesca. O estreito igarapé Macacu passa pela comunidade e deságua no rio Tiquié, que, por sua vez, segue ziguezagueando no sentido leste até os rios Uaupés e Negro.
Foi nesse lugar que Ângelo ficou sabendo de uma história vinda da cidade mais próxima, São Gabriel da Cachoeira (AM). “Minha tia disse que uma associação ajudava as pessoas carentes”, resumiu Irene, de 28 anos, uma das irmãs de Ângelo, que mora no município.
Duas irmãs de Ângelo já tinham deixado a comunidade para estudar e trabalhar na cidade, assim como tios e primos, mas o caçula da família saiu da aldeia por um motivo bastante atípico: ele foi enviado para ser educado por um grupo de turcos islâmicos.
Um familiar de Ângelo negociou diretamente com Abdulhakim Tokdemir a ida do sobrinho para a Asham em Manaus (AM). O caminho é longo e feito pela água. Em linha reta, são mais de mil quilômetros.
Voadeira - Imagem de Vinícius Schmidt/Metrópoles |
O caçula da família foi acomodado na chamada voadeira (uma canoa de metal) com um pequeno motor atrás (a rabetinha). O trajeto até São Gabriel da Cachoeira, local de onde partem embarcações para Manaus dura cinco dias.
“A gente tem que levar mosquiteiros porque tem muito carapanã e pinhõ [tipos de mosquito]. Dá medo um pouco, por causa das cachoeiras. É muito cansativo”, lembra Irene, que só fez essa viagem duas vezes em toda sua vida.
Depois, são mais três dias de deslocamento até Manaus em um ferry boat (tipo de balsa) ou 24 horas em um barco menor chamado de “expresso”. A passagem custa cerca de R$ 500 por pessoa.
O caminho de Ângelo
Durante o caminho entre Cucura Manaus e São Gabriel da Cachoeira, Ângelo e seus familiares acampam na beira do rio para descansar e dormir.
As paradas são feitas, de preferência, em praias naturais e sob a proteção de árvores maiores, onde realizam as refeições que levam embaladas ou que pescam ali mesmo. As refeições também podem ser oferecidas pelos parentes (outros indígenas) de comunidades que ficam no caminho. Os pratos mais comuns são beiju, mingau e quinhãpira (um caldo de peixe apimentado).
Também é preciso fazer paradas em caso de chuva. Durante tempestades, ondas grandes são formadas no rio e podem naufragar embarcações.
A segunda parte da viagem é entre São Gabriel e Manaus. Essa parte pode ser feita de balsa ou em um barco maior, durando entre 24 horas e três dias. Na balsa, os viajantes dormem em redes, na parte superior.
Os turcos pagam a passagem e recebem o novo integrante no porto manauara de São Raimundo.
Vai e volta
Depois de um ano morando na associação islâmica em Manaus, na tarde do dia 28 de fevereiro de 2023, Ângelo foi um dos 14 adolescentes e uma criança resgatados no sobrado em que eles ficavam em Manaus, em uma operação com apoio da Polícia Federal por causa de irregularidades na documentação e nas condições do imóvel.
Equipes de conselheiros tutelares, com apoio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), constataram três freezers cheios de carnes vencidas desde 2021 — o alimento era consumido pelos adolescentes.
Os agentes também identificaram que a instituição muçulmana não tinha a guarda das crianças e dos adolescentes, o que seria necessário para mantê-los longe das famílias. Além disso, o registro do CNPJ da Asham não era para abrigo e não havia cadastro na prefeitura.
Todos os adolescentes e crianças resgatados voltaram para a casa dos pais, entre eles Ângelo. Os conselheiros tutelares e a polícia não têm um número exato de quantos indígenas passaram pela instituição, mas sabem que são dezenas.
Em outubro, eram oito abrigados com idades entre nove e 15 anos. No começo de fevereiro, havia 18 adolescentes e crianças.
Ângelo, que atualmente tem 16 anos, recebeu a reportagem em sua atual casa, no bairro Miguel Quirino, na periferia de São Gabriel da Cachoeira, duas semanas após ter deixado o centro islâmico.
A maior parte das crianças, dos adolescentes e jovens levados pelo grupo islâmico é desse bairro. Um parente de Ângelo, que mora na mesma vizinhança, ajuda a escolher os adolescentes e as crianças que vão ingressar no grupo muçulmano. Um primo de Ângelo já está na Turquia há dois anos.
Ângelo vive agora com duas irmãs mais velhas e dois sobrinhos em uma casa cercada de pés de açaí e terra batida. As paredes externas da moradia são feitas por blocos de cimento, e os cômodos, divididos por paredes improvisadas, fabricadas com tecidos e uma placa de madeira pintada com uma ilustração do Fuleco, o mascote da Copa do Mundo de 2014.
Diferentemente dos outros membros da casa, o garoto recém-chegado de Manaus não tem um quarto privativo. Ele dorme em uma cama na cozinha, dividindo espaço com geladeira, fogão e alimentos.
Obrigado a rezar
Com sorriso tímido e olhar inicialmente desconfiado, Ângelo contou que até gostava de viver em Manaus com outros garotos da idade dele e os “abi” (irmão em turco), que é a forma como eram chamados os três turcos, assistentes de Abdulhakim Tokdemir, que vivem na instituição com os meninos indígenas. No entanto, o que ele não gostava era das rezas diárias, que no começo eram opcionais, mas, depois, passaram a ser obrigatórias.
“O responsável acordava a gente às cinco da madrugada. Nós, então, arrumávamos as nossas camas, limpávamos a casa e tomávamos o café. Depois do banho, os professores nos davam aulas de árabe e turco. As classes de línguas eram seguidas de um momento de oração. Em seguida, a gente lavava os uniformes da escola. Nós rezávamos antes da janta e de novo antes de dormir. Essa era a nossa rotina todos os dias”, contou o adolescente Desana na língua Tukano.
Ângelo fala português, mas só se sentiu à vontade para contar mais sobre a situação da instituição islâmica falando em tukano, língua materna de diferentes povos da região do rio Uaupés, onde fica Cucura Manaus, na parte de baixo da chamada Cabeça do Cachorro. A região noroeste do Amazonas é conhecida por esse nome por causa do formato do mapa — que lembra a cabeça de um animal.
Além do português, São Gabriel da Cachoeira tem outras três línguas oficiais
TUKANO
Além do povo Tukano, a língua tukano é usada por outros povos dos rios Uaupés, Tiquié e Papuri. O idioma acabou se transformando em língua franca nessa região para que diferentes povos se comuniquem
BANIWA
Nome dado aos povos que falam diferentes línguas da família Aruak, na região do rio Içana. No fim dos anos 1990, a gramática do idioma foi unificada — a língua também é falada pelo povo Koripako
NHEENGATU
Conhecida como Língua Geral ou Tupi Moderno, criada a partir do Tupinambá. O idioma é falado pelos Baré e Warekena dos rios Xié e Alto Rio Negro
Vergonha de rezar
No dia a dia dessa espécie de internato islâmico criado em Manaus, as atividades religiosas aconteciam com mais intensidade durante a manhã. Parte dos alunos ia para a escola regular à tarde. Por falta de documentação, oito estavam sem matrícula na rede estadual neste ano.
As aulas de árabe, por exemplo, eram repetições de páginas do Alcorão que deveriam ser decoradas em detalhes. Nas sextas-feiras, os jovens eram levados para uma reza especial na mesquita. Durante feriados e folgas prolongadas, os alunos tinham intensivão de árabe e turco. Nas férias, voltavam para a casa dos pais em São Gabriel da Cachoeira.
Foi tentado contato com a mesquita, que funciona no Instituto Islâmico de Manaus, mas os pedidos de entrevista não foram atendidos.
Durante uma visita à instituição islâmica em janeiro de 2023, conselheiros tutelares de Manaus relataram que se depararam com um local insalubre: um quarto com beliches e “muitas carnes expostas penduradas”. “Para ser um abrigo, precisa melhorar muito”, escreveram os conselheiros em um relatório.
Polícia Federal verifica a qualidade da comida refrigerada durante operação que retirou jovens indígenas da Asham |
No islamismo, o abate dos animais para consumo deve ser feito de um jeito específico, evocando o nome de Deus (Alá). As carnes exportadas para países muçulmanos, por exemplo, são produzidas seguindo essa forma de corte.
Por conta disso, os turcos que moravam com crianças e adolescentes indígenas compravam frangos e bovinos vivos. Eles mesmos matavam os animais. As aves eram abatidas na própria instituição, e os bovinos sacrificados atrás de um açougue de Manaus. Isso explicaria as carnes penduradas no quarto com beliches.
No mês do Ramadã, o almoço não era servido, e os adolescentes tinham apenas café da manhã e jantar reforçados. Nesse período, os muçulmanos celebram a data em que Mohammad recebeu a revelação da palavra de Alá. Eles realizam um jejum do nascer ao pôr do sol.
Mesmo quando não era época do Ramadã, a alimentação dos indígenas abrigados era inadequada, segundo o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA).
De acordo com o conselho, o cardápio da instituição ficava longos períodos sem proteína. Durante uma visita em outubro de 2022, os turcos serviram um almoço apenas com feijão, arroz, farofa e refrigerante. Uma criança disse que sentia vontade de comer peixe e farinha, base da alimentação nas comunidades ribeirinhas da fronteira com a Colômbia.
Abdulhakim diz que apenas os adultos eram obrigados a seguir o Ramadã, mas os pais e adolescentes disseram que todos eram incluídos no jejum. O líder da Asham também diz que houve um período em 2022 sem carne de gado, por falta de fornecedor, mas que havia frango e peixe. Sobre a carne vencida, seria uma doação de São Paulo, que não teria sido consumida, mas os internos dizem que comeram.
Nos fins de semana, os jovens podiam jogar futebol em um campo de grama sintética, comer pizza e, às vezes, passear pela Praia de Ponta Negra, mas não tinham autorização para entrar na água, só era permitido molhar as pernas e as mãos.
“Eles levavam a gente na Ponta Negra para jogar bola. No fim do jogo, antes de retornar para casa, faziam reza com a gente. Eu ficava com vergonha nesse momento de reza em público”, relata Ângelo, dando uma risada. “Me dá vergonha só de contar.”
Outros dois adolescentes que viveram na instituição acrescentaram que era proibido tomar banho no rio porque “não podia mostrar as partes e ficar sem roupa, ... porque é a religião deles”.
Dupla doutrinação
No quarto da irmã mais velha de Ângelo, o guarda-roupa de madeirite é enfeitado com uma porção de símbolos católicos: uma imagem de Nossa Senhora de Fátima grudada com fita adesiva, Jesus Cristo crucificado, São Jorge sobre o cavalo branco matando o dragão e um terço de cruz branca com bolinhas coloridas.
“Eu não sei se os turcos querem que a gente seja igual a eles… Eu acho. Porque a gente é católico e não sei qual a religião deles”, pontua Rosa, a dona do quarto, ao comentar a diferença religiosa.
A comunidade de onde a família de Ângelo veio passou por um processo de catequização católica, desde o começo do século 20, por missionários da Congregação Salesiana. A família, que é Desana, se converteu ao catolicismo desde antes de seus avós.
“Meu pai começou a trabalhar com os missionários para ajudar a catequizar o povo Hupda quando eu era pequena. Aí ele foi ajudando e ficou. Até hoje meu pai catequiza. Ele pega a estrada por meia hora e pouco. Ele acorda 6h da manhã e chega lá às 7h”, conta Irene.
O povo Hupda fala maku, uma língua totalmente diferente de tukano, baniwa ou nheengatu, os idiomas oficiais do município. Eles são considerados de recente contato com não indígenas. Muitos não falam português e não têm habitação fixa.
Para realizar esse trabalho de catequização católica, o pai de Ângelo sai de sua moradia, em Cucura Manaus, por volta das 6h e caminha por cerca de 45 minutos até Fundação Nova, uma comunidade mais ao norte para dentro da floresta, onde vive o povo dessa etnia.
Mosaico da Fé
A população estimada de São Gabriel da Cachoeira era de 46,3 mil habitantes em 2020. Desse total, mais de 75% são indígenas. Isso fica evidente andando pelas ruas da cidade. O prefeito é indígena, o dono do supermercado é indígena, o padeiro é indígena. O pastor e o padre também.
O município fica na região denominada como Médio e Alto do Rio Negro e é composto por uma área urbana com mais infraestrutura e 750 comunidades e povoados espalhados nas beiras dos rios e nas matas, que englobam 23 etnias.
A área do município é gigantesca, maior que a do estado de Santa Catarina e da Guatemala, por exemplo. Navegar de uma comunidade para outra depende de embarcações e gasolina, um insumo valioso e motivo de disputa.
Município mais indígena do país é o terceiro com mais território
O valor do litro da gasolina chega a R$ 15 nas aldeias mais longínquas, três vezes mais que o preço médio no Brasil. Em algumas áreas, o insumo é adquirido mediante troca por objetos e alimentos.
“Eu não vendi meu filho”
Embora São Gabriel da Cachoeira tenha um território tão amplo, as informações já circulam rapidamente no município, ainda mais com o aumento de comunidades com sinal de internet e a propagação dos smartphones.
A ida de dezenas de crianças e adolescentes para uma instituição islâmica que leva indígenas à Turquia não passou batida pelo sistema informal de notícias, mais conhecido como “fofoca”.
Não foi difícil encontrar moradores de São Gabriel da Cachoeira que diziam saber alguma coisa sobre a associação turca que levava filhos dos moradores, mas os comentários costumam estar acompanhados de estigmas e preconceitos.
“Relação com terrorismo”, “obrigados a usar drogas”, “iam transformar os meninos em homens-bomba” e “venda de crianças” são alguns dos relatos ouvidos. Inclusive autoridades e agentes públicos, ao conversar com a reportagem de forma reservada, mencionaram comentários semelhantes, embora não se tenha nenhum indício de terrorismo ou tráfico humano.
Os rumores se intensificaram depois que os garotos indígenas foram retirados da instituição em uma operação envolvendo a PF, conselhos tutelares e a Funai. Uma comitiva, incluindo o prefeito, foi para o porto de São Gabriel receber as crianças e os adolescentes, que chegaram de ferry boat no dia 4 de março, acompanhados de uma assistente social.
“A fofoca que mais ouvimos era que os turcos iam vender as nossas crianças. Muita gente falava na minha cara: ‘Certeza que está recebendo dinheiro’. Eu não ganho dinheiro com isso. Mas eu não me preocupo, sei que meu filho vai voltar. Eu não vendi meu filho”, conta em tom melancólico o carpinteiro do povo Tuyuka Osvaldo Dias Sanches, de 43 anos.
Osvaldo é o principal articulador da ida dos indígenas para a Asham em Manaus. Ele organizou a viagem de Ângelo, por exemplo, que é seu parente. O filho de Osvaldo, o jovem Edney, hoje com 19 anos, fez parte do primeiro grupo a ir para a capital amazonense e também foi o primeiro a se mudar para a Turquia, ainda com 16 anos.
Em dias difíceis, quando chega a faltar comida, Osvaldo pede ajuda para Abdulhakim Tokdemir, que envia pequenas quantias de dinheiro, como, por exemplo, um montante de R$ 200. Um pai de um outro jovem que foi levado para fora do país ganhou uma cirurgia de catarata.
Diretora na Funai, Lúcia Alberta Baré vê com desconfiança esse assistencialismo da instituição islâmica. Ela reconhece a eficiência de uma política de assistência para povos em situação vulnerável, como a entrega de cestas básicas, mas, no caso da Asham, entende que há má-fé e que o objetivo real do grupo é o proselitismo religioso.
“O que se tem de conhecimento sobre esse grupo islâmico é que eles usavam a questão da cesta de alimentos e a doação de dinheiro como uma forma de manipular esses pais, para que eles não fizessem denúncias e não buscassem mais informações sobre essas ações que esse grupo desenvolve.”
Autorização inválida
Ao lado da esposa, Nazária, de 52 anos, Osvaldo contou que recebe demandas de Abdulhakim Tokdemir sobre a quantidade de garotos que deve selecionar. Muitos dos escolhidos são amigos e familiares do mesmo bairro, o Miguel Quirino.
“Eu falava com os pais deles, se estavam interessados em enviar seus filhos para estudar em Manaus, São Paulo e fora do Brasil. Eu explico para os pais: ‘Como a gente não tem dinheiro para pagar os estudos, na instituição deles ninguém gasta nada, ninguém paga, tu não vai gastar nada, eles vão comprar tudinho — roupa, comida, tudo que precisar é com eles”, explica Osvaldo.
Nos relatos dos familiares ouvidos pela reportagem, é comum a citação do nome de Osvaldo. A ida de Edney para a Turquia costuma ser usada como um exemplo de que o esquema dá certo. “Se o filho do Osvaldo conseguiu ir e está tudo bem, então meu filho também pode conseguir”, diz um dos familiares ouvidos pela reportagem.
De acordo com o carpinteiro, Tokdemir costuma ser específico nos pedidos: “Este ano eu vou querer 10 alunos”. Por conta das exigências, houve uma dificuldade inicial para conseguir levar os filhos dos moradores. O turco ainda exige a autorização assinada pela mãe e pelo pai. Nos casos dos filhos registrados apenas pela matriarca, basta uma assinatura.
A autorização é chamada de “termo de consentimento” e tem a assinatura dos pais da criança reconhecida em cartório. No entanto, segundo as autoridades, esse documento não tem validade jurídica para a Asham manter a guarda dos garotos.
O texto tira a responsabilidade da associação islâmica e de seus integrantes de qualquer incidente que aconteça com as crianças e os adolescentes. Mas perante a lei, a cláusula não vale nada.
Mesmo com esse documento, tanto a instituição quanto os pais podem ser responsabilizados em caso de violência contra a integridade das crianças e dos adolescentes. É o que explica a advogada Luiza Simonetti, presidente da Comissão de Direito de Família e Adoção da OAB do Amazonas.
“O consentimento dos pais não é suficiente para institucionalizar uma criança. Eles precisam formalizar essa vontade para o Judiciário”, explica a advogada. Segundo Luiza Simonetti, esse processo passa pelo Ministério Público e pelo Juizado da Infância. Um magistrado deve autorizar o ingresso da pessoa com menos de 18 anos em uma instituição.
Pioneiro
O primeiro grupo a ir para a Asham em Manaus foi formado por cinco adolescentes, entre eles o filho de Osvaldo, Edney, que está atualmente na Turquia. Os outros quatro “não se adaptaram” à instituição e voltaram para São Gabriel da Cachoeira.
Desde que a instituição islâmica passou a atuar no Amazonas, crianças e adolescentes retornaram para a casa dos pais por opção ou, segundo a Asham, por mau comportamento.
De acordo com Abdulhakim, houve um caso de um adolescente que teria assaltado um posto de gasolina com colegas da escola. Também há relatos dos pais de alunos sobre um garoto que teria aplicado pasta de dente no rosto dos colegas enquanto eles dormiam, como forma de brincadeira.
Uma mãe disse que o filho foi expulso porque malinava muito (fazia travessuras) e ficava rindo do sotaque dos assistentes turcos, que não falam bem português. Assim, a instituição vem mantendo apenas os adolescentes que consideram mais adequados e comportados.
Essas características fazem parte, inclusive, das exigências de Abulhakim a Osvaldo, na escolha dos novos alunos. A preferência é por adolescentes com idade entre 12 e 15 anos, que seriam obedientes e que realmente quisessem estudar.
Uma nova perspectiva
No início de 2023, em paralelo à investigação da Polícia Civil, outros integrantes da Polícia Federal do Amazonas começaram a se debruçar novamente sobre o caso da Asham.
Membros recém-empossados do governo federal, mais especificamente da Funai e do Ministério de Direitos Humanos, em Brasília, começaram a articular uma solução junto à PF, ao conselho tutelar de Manaus e a assistentes sociais de São Gabriel da Cachoeira.
Conselheiros tutelares das duas cidades realizaram pelo menos quatro visitas na instituição durante o mês de fevereiro, quando constataram que a associação não teria nenhum respaldo judicial para funcionar, além de questões sanitárias envolvendo alimentação e limpeza.
Todas as informações que os conselheiros colheram foram repassadas à PF. Em uma operação conjunta, as crianças acabaram retiradas do local e levadas de volta para São Gabriel da Cachoeira.
Procurada pela reportagem, a corporação disse que não passa informações sobre investigações em andamento.
Bastidores
O novo desdobramento sobre o caso dos indígenas levados pelo grupo islâmico começou no alto de um prédio de Brasília, com vista para o Parque da Cidade, na sede da Fundação Nacional do Indígena (Funai).
A atual coordenadora de Gênero, Assuntos Geracionais e Participação Social da Funai, Lídia Lacerda, voltou cismada de uma viagem de rotina que fez a São Gabriel da Cachoeira em outubro de 2022. Aos prantos, uma conselheira tutelar do Alto do Rio Negro contou sobre a situação dos turcos que levavam crianças e adolescentes.
Lídia então ajudou a articular a retirada das crianças junto ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), do novo Ministério dos Direitos Humanos.
“Por mais que a instituição [Asham] pense em apresentar documentação e regularizar a sua atuação, antes desse processo, as crianças devem ser retiradas. O modo como elas estavam lá é totalmente ilegal. É ilegal do ponto de vista não só da criança indígena, mas é ilegal para qualquer criança e adolescente”, frisa a servidora.
Negação da cultura
Acima de Lídia, a diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, Lúcia Alberta, acompanhou a situação, que a fez relembrar sua infância difícil. Lúcia é do povo Baré e nasceu na região da Cabeça do Cachorro, em uma comunidade na divisa com a Venezuela.
A gestora Baré recebeu a reportagem na sede da Funai usando brincos com desenhos indígenas que contam a história da região de onde ela veio. Um dos brincos tem o desenho da “cobra-canoa”, que, segundo a cosmologia do Alto do Rio Negro, serviu de transporte para os primeiros seres humanos e saiu espalhando as comunidades nas margens do rio.
Lúcia ficou espantada ao saber que adolescentes indígenas estavam sendo proibidos de mergulhar no rio, tendo permissão apenas para molhar as mãos e os pés. Segundo ela, isso é a negação da própria cultura.
“Somos povos ribeirinhos, o Rio Negro e os seus afluentes são nossa vida. Consegue imaginar um indígena da região do Rio Tiquié proibido de tomar banho no rio? Essa é uma das maiores afrontas, porque, para nós, o mergulho na água, além da limpeza do corpo, é limpeza da nossa alma”, pondera.
Assim como as crianças e os adolescentes levados pela Asham, Lúcia deixou sua comunidade quando tinha apenas 9 anos de idade para poder estudar na cidade.
“Quando não tem escolas na comunidade, as pessoas procuram escolas na cidade. E lá na cidade não tem escolas indígenas específicas e diferenciadas. Se as escolas não dão resposta para os projetos de vida dos povos indígenas, eles vão procurar outras alternativas”, analisa Lúcia Alberta.
Em entrevista ao pesquisador Gersem Baniwa, em 2011, Lúcia Alberta Baré definiu a escola indígena “como espaço de diálogo possível entre os conhecimentos indígenas e os conhecimentos da sociedade moderna”.
A diretora da Funai defende que as escolas indígenas devem ter uma pedagogia própria, com professores que falam as línguas dos povos dos alunos, para ter uma comunicação melhor com eles, mas também deve ter um bom ensino formal.
“A estratégia deve ser de levar conhecimentos não indígenas — ou mesmo de outros povos indígenas —, mas de forma harmônica e respeitosa, sem colocar aquele conhecimento como melhor ou superior.”
No entanto, além de não ter escolas indígenas com esse diferencial, as instituições de ensino de São Gabriel da Cachoeira passam por outros tipos de precariedade, como professores com salários baixos e contratos temporários que chegam a ser interrompidos antes do fim do ano letivo. A falta de atividades esportivas e culturais para os jovens também é uma questão.
“A vulnerabilidade desses povos, tanto social como educacional, os levou a serem cooptados por esses turcos, que ofereceram educação melhor para os filhos, mas por trás tinha outra coisa, que nós estamos acompanhando, mais ligado ao proselitismo religioso.”
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Fonte: Metrópoles
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