por Sérgio Pinto Monteiro*
Imagem: O Globo - edição de 6 de Novembro de 1969 |
(Estela).
O processo histórico brasileiro, especialmente os episódios ocorridos durante os chamados “governos militares” — 1964 a 1985 — tem sido objeto de análises, narrativas e interpretações dos mais variados matizes, nem sempre focados na verdade dos fatos. A vasta literatura disponível sobre aquele período assim o demonstra. Há muito que no Brasil proliferam jornalistas, pesquisadores e pseudo-historiadores comprometidos, apenas, em contar a história à luz de suas posições politico-ideológicas e, até mesmo, por vezes, reescrever e inventar fatos e ocorrências.
O ano de 1969 foi um dos mais conturbados daqueles dias. Pouco antes, com a intensificação da luta armada desencadeada pelos opositores da contrarrevolução de 1964, o governo federal editou o Ato Institucional nº 5, cujo objetivo, entre outros, era o de enfrentar e derrotar os rebelados que tentavam, a todo custo, a tomada do poder. Nesse contexto, sucederam-se inúmeros confrontos armados entre revoltosos e agentes do Estado, um dos quais ocorreu em 4 de novembro de 1969, na Alameda Casa Branca, próximo à Avenida Paulista, em São Paulo.
Carlos Marighella foi um ex-deputado do Partido Comunista Brasileiro. Dissidente do PCB, fundou, em 1962, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), com o qual rompeu e acabou expulso. É de sua autoria o Mini Manual do Guerrilheiro Urbano, publicado em vários idiomas, onde ensina aos seus comparsas como matar pessoas, explodir instalações, sequestrar, torturar. Em 1964, o terrorista Marighella foi baleado e preso num cinema do Rio de Janeiro. Solto pela Justiça, criou a Ação Libertadora Nacional, organização terrorista responsável por inúmeras ações criminosas, inclusive o sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Elbrick.
Marighella foi um dos alvos da Operação Bandeirante, desencadeada pela polícia paulista. Sua morte polêmica, em confronto com as forças policiais, tem sido objeto de inúmeras versões, algumas totalmente inverossímeis. Na época, os principais jornais do país noticiaram, em manchetes de primeira página, que Marighella teria sido traído por dois frades dominicanos, seus amigos e cúmplices, detidos anteriormente. Numa tentativa de prender o terrorista, o Delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DOPS paulista, planejou, em 4 de novembro de 1969, uma emboscada na Alameda Casa Branca. O dispositivo contava com a participação de vários policiais disfarçados, inclusive duas investigadoras. Uma delas, Estela Borges Morato — recém-nomeada em concurso público para a polícia civil de São Paulo — e Ana Pereira Leite. No relato da época, a policial Estela estava num veículo particular, parado no local, simulando um namoro com o Delegado Rubens Tucunduva.
A dinâmica da ocorrência até hoje não foi totalmente esclarecida. Há versões conflitantes e até claramente fantasiosas, inclusive da desacreditada “Comissão da Verdade” que, estranhamente, concluiu não ter havido tiroteio e que Carlos Marighella foi sumariamente executado. Estranhamente porque, se não houve enfrentamento, como justificar a existência de outras vítimas, inclusive policiais? Alegam os defensores dos terroristas — sem provas — que os agentes da lei teriam sido vitimados pelo chamado “fogo amigo”. Ao final da operação, logo após as 20 horas, além do terrorista Marighella, morreu um transeunte, o protético Friederich Rohmann. A investigadora Ana Pereira Leite ficou levemente ferida. O Delegado Tucunduva foi gravemente atingido na perna [NR: o que lhe causou sequela permanente] e sua parceira, a jovem investigadora Estela Borges Morato, de 22 anos, foi atingida por um tiro na cabeça, falecendo três dias após, no Hospital das Clínicas.
No sepultamento, seu corpo foi conduzido num Carro de Bombeiros, seguido pelo governador de São Paulo, Abreu Sodré e pelo Secretário de Segurança, General Viana Moog. Diante de uma chuva torrencial, centenas de policiais dispararam para o alto, saudando a Agente 2706.
Estela Borges Morato foi homenageada com a designação do seu nome para uma das ruas da cidade de São Paulo e para uma Escola Estadual. Muito pouco para quem, tão jovem, perdeu a vida combatendo terroristas. Lamentavelmente, na Alameda Casa Branca, no local onde Estela tombou, há hoje uma placa homenageando o bandido Marighella, recentemente travestido de herói em filme nacional. Tempos estranhos. Creio ter sido Estela a nossa primeira policial feminina sacrificada no cumprimento do dever.
Lembrando Estela
Estela Borges Morato nasceu em Campo Limpo, São Paulo, em 22 de janeiro de 1947. Filha de policial civil, cursou o primário no Externato Santo Antônio e no Colégio Paulistano, o ginasial e o científico. Em 1964 participou de um concurso bíblico instituído por uma estação de rádio da Capital Paulista, obtendo o primeiro lugar.
Recebeu como prêmio mil discos e um aparelho de televisão. Em 18 de dezembro de 1965 casou-se com Marcos Morato, com quem permaneceu unida até a sua morte em 1969. Foi bancária, ingressando no Banco Comércio e Indústria de São Paulo, em 1966, através de concurso. Aperfeiçoando-se na profissão, fez o curso de grafo-datiloscopia bancária, denominado "Preventivo de Falsificação", da Academia de Polícia de São Paulo, se familiarizando com a atividade policial.
Em 1969, foi nomeada investigadora de polícia, após prestar concurso público. Como primeira lotação, foi destacada para atuar no Departamento de Ordem Política e Social, onde, segundo os seus chefes, foi um exemplo de disciplina e abnegação ao serviço público. Dois meses antes de sua morte, ainda bancária, Estela escreveu uma crônica no jornal do Sindicato dos Bancários, onde revelava sonhos e desejos que, tristemente, seriam frustrados pela infâmia do terrorismo:
“Que tipo de mundo você queria? Para esta pergunta, a resposta é sempre a descrição de uma utopia. Porém, eu gosto deste século, cheio de vivacidade e colorido, planos e esforços que nos fazem participar de uma experiência excitante e maravilhosa, sendo exatamente isso que dá a vida sua única atração verdadeira. Vida é movimento. Quero este mundo assim como ele é, com sonhos para sonhar, problemas para resolver e lutas para lutar. Vivamos intensamente a vida que Deus nos deu, afinal ela nos oferece mais prazer que dor, mesmo que haja sempre algo para ser resolvido ou remediado. Este mundo merece voto de confiança, porque ele é bom, só é mau para gente dura e de cabeça mole. O homem, enfrentando suas dificuldades, pode mostrar que é homem, aceitando o desafio. As dificuldades serão superadas e a vida valerá a pena ser vivida. Afinal já conquistamos a Lua.”“Estela”
DESCANSE EM PAZ, JOVEM E LINDA GUERREIRA.
JAMAIS A ESQUECEREMOS.
MISSÃO CUMPRIDA, ESTELA!
*é Professor, Historiador e Oficial da Reserva do Exército.
É fundador, ex-presidente e Patrono do Conselho Nacional de Oficiais da Reserva.
É membro da Academia Brasileira de Defesa, da Academia de História Militar Terrestre do Brasil e do Instituto Histórico de Petrópolis.
É presidente do Conselho Deliberativo da Associação Nacional dos Veteranos da FEB e vice-presidente da Liga da Defesa Nacional/RJ.
Recebido por mensagem eletrônica.
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