sábado, 6 de dezembro de 2008

Como o Diabo Gosta

por Guy Sorman
O ataque de 27 de novembro contra a cidade de Mumbai iniciou um novo capítulo na guerra contra o terror. Foram lembradas e ressaltadas as nítidas características da Al-Qaeda, que têm mais a ver com o clássico pensamento leninista do que com o Alcorão. Leiam as Sagradas Escrituras dos muçulmanos e ninguém encontrará muitas pistas sobre a atual guerra terrorista. Porém, voltando-se para os clássicos livros de textos revolucionários do século 19 — incluindo Trotski no fascista Técnica do Golpe de Estado (1931), de Malaparte, a batalha de Mumbai faz sentido. Não foi um movimento desesperado de suicidas para fazer uma declaração. Foi uma operação cuidadosamente planejada, sob o comando de alguma liderança sofisticada, para alcançar um objetivo estratégico nítido.
Os governos indianos e paquistaneses estavam às vésperas de selar uma aliança contra o inimigo comum deles de fato — o radicalismo islâmico — sob a orientação do governo dos EUA. O ataque em Mumbai, ao reviver o medo dos indianos de que, mais uma vez, estavam sob ataque dos serviços secretos paquistaneses, poderá muito bem prejudicar essa aliança planejada.
A descoberta de passaportes paquistaneses no corpo de alguns terroristas não é uma pista de que eles vieram do Paquistão, mas foi importante para se fazer acreditar de onde vieram. Contudo, o ataque em Mumbai ocorreu alguns dias antes de eleições provinciais decisivas na Índia: sem dúvida que os ruidosos partidos nacionalistas hindus vão explorar os sentimentos antimuçulmanos para ganhos políticos. Como as bombas em Madri, lançadas pela Al-Qaeda em 2003, o timing eleitoral confirma a sofisticação da estratégia do movimento terrorista.
O propósito essencial dessa estratégia militar também se tornou muito claro a partir de Mumbai. A Al-Qaeda, desde os primórdios de suas operações, precisa conquistar um país para servir como base para suas ações militares e como modelo para a futura sociedade que planeja organizar. A ambição geográfica é um alvo móvel, enquanto Bin Laden e seus aliados se transferem da Arábia Saudita para o Sudão, Afeganistão e Paquistão. Na percepção da Al-Qaeda a inexperiência de Obama abre novas possibilidades.
Depois que tal base territorial fosse estabelecida, os líderes da Al-Qaeda estariam — assim pensam eles — em melhor posição para promover o tipo perfeito de sociedade muçulmana que gostariam de vender para o resto do mundo. Eles iriam construir o islamismo em um país, uma paráfrase do socialismo em um país de Stalin. Esse seria o primeiro passo rumo a grandiosa ambição revolucionária de restabelecer o califado: um líder global iluminado, com o Alcorão como Constituição.
Esse proclamado ideal metafísico e revolucionário pode explicar por que a Al-Qaeda consegue facilmente recrutar homens-bombas como os bolcheviques e os anarquistas russos eram capazes de fazer no início de seus movimentos.
A estratégia da Al-Qaeda está muito facilitada pela recente evolução no mundo muçulmano. Esse é bem o caso da Índia. Após o Islã interromper sua expansão no século 16, os muçulmanos em todos os lugares de fato misturaram tradições locais com os preceitos do Alcorão. Sobretudo os muçulmanos indianos foram bastante influenciados pelas práticas hindus e sufis: ser um muçulmano na Índia não exclui ir a cerimônias hindus. O culto muçulmano também era local, com orações freqüentemente dedicadas a algum santo local.
Esse Islã sincrético e enraizado geograficamente está sendo progressivamente substituído por um Islã mais global. As diferenças regionais tendem a desaparecer pela influência das migrações para os países árabes em busca de emprego, pela urbanização que corta as raízes com as antigas mesquitas, pela imersão em um novo Islã global transmitido pela TV e pela internet. Assim, um jovem trabalhador muçulmano sem raízes, em Mumbai, vai progressivamente passar do Islã tradicional de sua vila para um Islã internacional mais sintético e mais radical.
Para ser justos, não vamos idealizar o passado da Índia. A coexistência de muitas religiões na Índia nem sempre foi harmoniosa, mas os conflitos entre hindus e muçulmanos nas vilas indianas pobres tinham mais a ver com disputas pelos raros recursos do que eram rixas estritamente religiosas. Isso está mudando radicalmente, mesmo quando o governo indiano tende a preferir um estado de negação.
Há 20, até há 10 anos, os muçulmanos na Índia não mostrariam nenhuma preocupação com os conflitos no Oriente Médio, eles não usariam roupas árabes, cantariam nos feriados religiosos na tradição sufi indiana. Uma Índia democrática e multicultural era o país deles. Não tinham forte simpatia por seus vizinhos pobres e caóticos, Paquistão e Bangladesh, ainda que países muçulmanos.
Nessa parte do mundo, não existe outro país onde qualquer muçulmano tenha tantas oportunidades e liberdade quanto na Índia. Mas, estatisticamente, os recrutadores da Al-Qaeda vão encontrar no enorme grupo da população muçulmana da Índia (entre 100 e 200 milhões, ninguém sabe ao certo), adolescentes insatisfeitos o bastante para serem convertidos em atacantes suicidas.
A Índia, por ter rapidamente passado de uma economia rural conservadora para uma sociedade urbanizada e desenvolvida, tornou-se assim o terreno de caça perfeito para os agentes da Al-Qaeda. Como já foi mencionado, a negação dessa nova realidade pelos líderes indianos é mais fácil do que admiti-la. Ao mesmo tempo que é o grande sucesso econômico dos últimos anos que está perturbando a relativa harmonia entre as religiões tradicionais da Índia.
Não existe uma solução fácil para restabelecer a harmonia, nem uma forma fácil de vencer a guerra contra a Al-Qaeda. O que o ataque em Mumbai confirma é que há uma guerra de fato e ela é global. Nenhum país onde vivem muçulmanos está seguro das intervenções da Al-Qaeda. A democracia e o desenvolvimento econômico não reduzem a influência da Al-Qaeda. Num primeiro estágio, num período de transição, isso pode até funcionar nas mãos da Al-Qaeda. Sendo ela uma organização militar, só pode ser combatida com meios militares.
Finalmente, qual é a relação entre a Al-Qaeda e o Islamismo? Os terroristas pegam emprestados termos do Alcorão e da remota vida épica de Maomé. Isso os torna muçulmanos. A maioria dos muçulmanos pelo mundo discorda da interpretação de Bin Laden do Islã, mas esses muçulmanos moderados, até agora, não foram capazes de condenar a heresia da Al-Qaeda com voz nítida e forte.

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