por Ricardo Amaral
O Brasil tem 1.400 agentes secretos e não sabe o que fazer com eles. Não sabe porque não levou a sério um problema que todos os países têm de enfrentar um dia: a segurança do Estado e o papel dos serviços de inteligência. Há agentes secretos por todo o planeta. Podem ser úteis, mas nunca são populares. Inspiram repulsa por ser espias, dedos-duros, aves de rapina. Os nossos não são falcões nem abutres. São arapongas. São patéticos.O Brasil é uma das mais dinâmicas economias do mundo. Fazemos negócios com quase todos os países. Temos recursos naturais estratégicos, setores de excelência tecnológica na indústria e na agricultura. Temos o privilégio e o ônus de incorporar a maior parte da Amazônia — e temos alguns vizinhos em situação de instabilidade. São razões, nenhuma delas imprevisível, para investir num serviço de inteligência digno do nome. Razões para proteger o Estado e a democracia que construímos.
Por vários motivos, não tratamos o tema com profundidade no momento adequado — a Assembléia Nacional Constituinte, há 20 anos. O ímpeto democratizante dos constituintes não foi o bastante para enfrentar um dado daquela conjuntura: mesmo derrotados politicamente, os militares ainda exerciam forte influência no governo José Sarney (a posse do presidente civil, com a morte de Tancredo Neves, foi decidida pelo ministro do Exército, Leônidas Pires). Inteligência e segurança do Estado eram assunto para generais. O tabu ficou intocado com a preservação do Serviço Nacional de Informações e da Lei de Segurança Nacional.
Havia outro motivo para que o assunto fosse esquecido: 21 anos de ditadura acabaram provocando, no imaginário político brasileiro, uma nefasta confusão entre Inteligência e repressão, entre autoridade e arbítrio. A sociedade se recusou a discutir o problema, como se Inteligência e segurança não fossem tão necessárias numa democracia quanto eram vitais para o governo autoritário. Da mesma forma, nunca promovemos um debate real sobre o papel das Forças Armadas.
O Brasil nunca discutiu seriamente como deve funcionar a Inteligência na defesa do Estado democrático.
Essa atitude evasiva permitiu que o ex-presidente Fernando Collor de Mello decretasse, demagogicamente, a extinção do SNI, em 1990, sem colocar nada sólido no lugar. Os remanescentes da “comunidade de informações” continuaram agindo sem controle, mesmo depois da criação da Agência Brasileira de Inteligência, a ABIN dos 1.400 arapongas, em 1997. A criação da agência, no governo Fernando Henrique Cardoso, foi uma idéia bem-intencionada, mas de resultados cosméticos. Pode-se dizer o mesmo do Ministério da Defesa, uma obra em construção. Até a posse do ministro Nelson Jobim, no ano passado, os Comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica despachavam com o presidente como se fossem ministros. Não são, mas convencê-los disso é parte do ofício de Jobim.
A tarefa de construir um aparelho eficaz e democrático de Inteligência e segurança do Estado fica mais difícil à medida que a ABIN se confunde com seus malfeitos. Cada relatório estúpido e cada ação arbitrária dos arapongas — como as campanas ilegais em parceria com a Polícia Federal na Operação Satiagraha — contribuem para desacreditar a atividade. Na raiz do problema está a falta de legitimidade do aparato de segurança do Estado, que não é fruto de um momento especial, como foi a Constituinte, nem de uma discussão com o Congresso e a sociedade sobre seus objetivos e limites. Para que precisamos de Inteligência? A quem prestará contas? Qual o limite entre a segurança do Estado e o direito do cidadão?
O presidente Lula nunca leu um relatório da ABIN. Já está no quinto diretor-geral da agência e deve continuar improvisando. O governo FHC não se saiu melhor. Quem não se lembra das fitas da privatização das teles, que a ABIN achou “embaixo de um viaduto”? Não é necessário dividir o mundo e o país entre amigos e inimigos, comunistas e capitalistas, para organizar um bom serviço de Inteligência. O primeiro passo é não ter vergonha de enfrentar o problema. Afinal, uma das obrigações do Estado democrático é se defender — para poder defender os cidadãos.
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