André Borges Lopes
Quando a gente acha que não vai mais se surpreender com a escola Ali Kamel de jornalismo hipotético, as Organizações Globo conseguem se superar. Ontem, algumas horas após o terrível acidente aéreo em Madrid (restos do avião ainda fumegavam na pista, na imagem ao vivo da CNN) a Globo News colocou no ar um "especialista em aviação" para falar sobre as possíveis causas do desastre.
Às 13h51, a notícia já estava no G1 — com um impagável subtítulo:
Se a falha foi na decolagem, pode ser causada por objeto na turbina. Se for no pouso, é possível que seja falha do piloto, no pneu ou na pista."
Ou seja: quatro horas depois do momento do acidente (9h45, no horário de Brasília) o portal da Globo ainda era incapaz de confirmar se o avião havia se acidentado numa decolagem ou num pouso, mas — apesar desse pequeno detalhe — o "especialista" Gustavo Cunha Mello não se furtava de conjecturar hipóteses sobre as causas da tragédia.
Instigante tarefa para uma noite de insônia: tentar descobrir quem é esse fantástico especialista, capaz de especular sobre as causas de acidentes aéreos apenas vendo pela TV a fumaça dos destroços. Uma busca no oráculo Google nos indica que o sujeito é, de fato, uma fera no assunto. Em matéria no jornal O Globo de 1º/08/2007, discorrendo sobre as hipóteses kamelianas do acidente com o Airbus TAM em Congonhas, nosso expert foi assim descrito:
Para Gustavo Cunha Mello, especialista que analisou mais de 175 mil acidentes aéreos, e foi ouvido por 'O Globo' em reportagem publicada nesta quinta, a possibilidade de falha mecânica não pode ser descartada. Clique aqui.
Vejam só! Eu nunca poderia imaginar que já tenham ocorrido no mundo 175 mil acidentes aéreos, mesmo começando a contá-los pela queda de Ícaro! Mas surpreendente mesmo é haver um ser humano que se dedicou a estudar cada um deles. Supondo que tenha gasto em média 30 minutos em cada breve análise, dedicando 8 horas por dia a essa extenuante tarefa, o infatigável Gustavo entregou nada menos que 24 anos de sua vida adulta (incluindo sábados, domingos e feriados) ao estudo dessas fatalidades. Não me admira que seja capaz de desvendar suas causas apenas aspirando o aroma do querosene queimado.
Querem mais? Apesar dessa tarefa hercúlea, sobrou-lhe tempo para cursar faculdades, fazer pós-graduação, dedicar-se a outras especialidades e até mesmo ao ensino dos nossos jovens.
Gustavo Mello inicia sua colaboração com O Globo em outubro de 2006, na época do acidente da GOL com o Legacy, no qual já é citado (grifos meus):
(...) para o engenheiro Gustavo Tavares da Cunha Mello, autor de tese de mestrado sobre acidentes aeronáuticos, é possível que o piloto do Legacy tenha se esquecido de ligar ou até mesmo desligado o sistema anticolisão, para voar mais alto. clique aqui.
Em 25/07/07, na sequência imediata do acidente da TAM, retorna ao periódico, ostentando títulos mais convincentes:
Gustavo Cunha Melo, engenheiro da Universidade Federal Fluminense e especialista em gerenciamento de risco, diz que estudos recentes desenvolvidos na Europa indicam que as pistas dos aeroportos devem ter, no mínimo, 2.400 metros para receber aviões de grande porte. Clique aqui.
O especialista volta ao jornal dos Marinho (com ainda mais diplomas e títulos) em 5/8/2007, em matéria de Soraya Aggege falando sobre as causas do "Caos Aéreo":
Um ano depois, os lobbies das empresas já estavam criados, e, no ano seguinte, a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) foi criada. O setor ficou desde então sem controle — diz o economista e engenheiro Gustavo Cunha Mello, professor da Universidade Federal Fluminense e consultor de riscos e seguros da Correcta. Clique aqui.
Em 21/11/07 sua fama já chegava à Band News, que também contou com sua preciosa colaboração:
A medida poderia ser a primeira ação do governo em direção à desmilitarização do setor, segundo o professor da Universidade Federal Fluminense especializado em aviação, Gustavo Cunha Melo. Clique aqui.
Curiosamente, a Universidade Federal Fluminense não inclui o professor Gustavo na lista oficial de docentes (datada de 2006) que está disponível para download no seu site: clique aqui.
Também não é possível encontrar seu currículo no sistema Lattes, do CNPq (http://lattes.cnpq.br/), embora por lá restem traços da sua dissertação de mestrado, defendida em 2005, com o título "Uma hierarquia dos fatores contribuintes de acidentes aéreos".
Querem saber quem de fato é o consultor de seguros Gustavo Tavares da Cunha Mello? Seu currículo, por ele mesmo, está no site da sua corretora: clique aqui.
Não o conheço. Pode ser que seja um excelente corretor de seguros. É possível que entenda de aviação bem mais do que eu, ou do que vocês que me leem. Ao que parece, também entende um pouco de seguro saúde, de recursos humanos, de gestão de risco em plataformas de petróleo. Também pode ser que não tenha sequer um brevê, e não saiba a diferença que existe entre um MD-82 e um Focker 100.
O fato é que, hoje, Gustavo Mello é um grande especialista em acidentes aeronáuticos da maior rede brasileira de mídia.
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Em 16/09/2008:
Gustavo Cunha Mello, citado no "post" original acima, que deu origem a essa discussão, me escreveu ontem à noite um e-mail muito bem educado em que esclarece alguns pontos importantes levantados no texto. Faço um resumo:
Sobre a relação profissional com a Universidade Federal Fluminense:
Gustavo esclarece que é professor do MBA de Gerenciamento de Riscos, uma parceria da UFF com a FUNENSEG. Esclarece também que fez MBA na COPPE da UFRJ em gerenciamento de riscos, e que seu mestrado sobre acidentes aéreos (citado no artigo original) foi feito na própria UFF na área de engenharia de produção — sistemas de gestão (segurança e saúde ocupacional). Reitera que fez "inúmeros cursos técnicos, entre os quais os de sinistro aeronáutico no CENIPA em Brasília", como consta no seu currículo — também citado no artigo original.
Quanto aos 175 mil acidentes aéreos:
Gustavo esclarece que — no seu mestrado — leu e estudou mais de três centenas de acidentes aéreos na íntegra. Além disso, montou um banco de dados com 174.573 acidentes aéreos ocorridos nos EUA de 1970 até 2004 (ano do mestrado), no qual fez "diversas pesquisas por palavras chaves para apontar as causas do acidente". O banco de dados foi montado a partir de informações baixadas do arquivo do NTSB americano.
Ele concorda que o "resumo da minha pesquisa que vai ao jornal desfavorece", mas alega que ninguém lhe dá o tempo para explicá-la.
Quanto à sua citação como "especialista" pela mídia:
Gustavo diz que nunca pediu para dar as entrevistas, nem recebeu nada em pagamento por isso. Diz que muitas vezes lhe telefonam para o celular e começam imediatamente uma entrevista.
Alega que isso ocorre porque — desde que deu uma primeira entrevista à uma amiga da rádio CBN (com observações sobre o acidente da GOL com Legacy) e, posteriormente, sobre o da TAM em Congonhas — acertou o que ocorrera antes das caixa pretas serem abertas. Segundo ele, depois disso veio uma avalanche, o que não lhe tiraria o mérito de ter acertado nas observações.
Sobre o trabalho como corretor de seguros:
Gustavo diz que precisa trabalhar para viver, e apenas dando aulas, neste país, não é possível e que não há nada de errado em ser "corretor de seguros" — um fato que, eu gostaria de ressaltar, não foi de qualquer maneira colocado em questão pelo artigo original. Diz que gerenciamento de riscos aeronáuticos e uma corretora de seguros aeronáuticos tem tudo a ver, já que algumas certificadoras técnicas (bureau veritas, DNV, ABS, etc.) nasceram do mercado de seguros, e que as seguradoras fazem vistorias técnicas e permitem os aviões a voar ou não. Há ainda os seguros obrigatórios para aeronaves (RETA) — enfim, muita afinidade com seguros. Reitera ainda, que sua especialidade é gerenciamento de riscos.
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Deixo registrados aqui os esclarecimentos do Gustavo Mello.
Fonte: Blog do Luis Nassif
COMENTO: Coloquei este texto só para que se tenha uma ideia sobre os especialistas que nos são "empurrados goela abaixo" pelas redes de televisão. De forma alguma tenho o intuito de desmerecer o sr. Gustavo Mello, aqui citado como exemplo de uma pessoa que, por ter conhecimento sobre algum assunto, dá uma entrevista e passa a ser assediada por outros veículos de comunicação, sendo projetada "ex-officio" como "especialista". O assunto tem a ver com o texto que segue abaixo.
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