quinta-feira, 2 de julho de 2020

Empoderada — Mary Ellis: Piloto da II Guerra Mundial que Sobreviveu a Acidentes e Bombas Nazistas

Numa época em que as mulheres no "cockpit" eram criticadas, Ellis fez seu nome levando aviões às bases da RAF para ajudar no esforço de guerra

"Ocasionalmente, pegava um Spitfire e ia brincar com as nuvens" (AFP-Getty)

No auge da Segunda Guerra Mundial, Mary Wilkins, 26 anos, medindo 1,80m, sem capacete e com cabelos loiros encaracolados, desceu da cabine de um poderoso bombardeiro bimotor Wellington pronto para o combate, em uma base da Royal Air Force na Inglaterra.
"Onde está o piloto?" perguntou alguém da equipe de terra.
"Eu sou o piloto!" ela respondeu.
Como piloto voluntária do ATA (Air Transport Auxiliar) da Grã-Bretanha, seu trabalho era levar aviões de guerra — caças Spitfire e Hurricane, os famosos Wellingtons (apelidados de Wimpys), bombardeiros Lancaster e mais de 70 outros tipos de aeronaves militares — das fábricas às bases, onde eram entregues aos pilotos homens da RAF e da frota aérea da Marinha Real. Ela trouxera o Wellington — construído para uma tripulação de cinco homens — sozinha, desde sua fábrica.

"Bem, eles não acreditaram em mim", escreveu ela em suas memórias, A Spitfire Girl. "Um ou dois deles ainda decidiram subir a escada para checar o avião à procura do piloto 'desaparecido' ... Eles simplesmente não podiam acreditar que as mulheres podiam pilotar esses aviões".

A morte de Mary Wilkins Ellis (seu nome de casada) aos 101 anos — um ano a mais que a própria RAF — foi confirmada por Graham Rose, presidente da Associação do Transporte Aéreo Auxiliar. A organização trabalha para garantir que os pilotos da ATA — incluindo a mãe de sua presidente, Molly Rose — sejam lembrados.
Ellis morreu em sua casa, ao lado de uma pista em Sandown, na Ilha de Wight, na costa sul da Inglaterra.
Ela foi uma das últimas mulheres piloto sobreviventes da ATA. Apenas três delas ainda estão vivas.
As “Attagirls”, como eram apelidadas, quase sempre voavam sozinhas, sempre sem bússola ou rádio-assistência, guiando-se através de mapas e seguindo rios ou linhas ferroviárias. Principalmente britânicas, mas incluindo várias voluntárias americanas, canadenses e de outros países aliados.  Elas não voaram em combate, mas enfrentaram o perigo diário de ataques de caças da Luftwaffe  e colisões com os enormes balões de barragem flutuando ao redor do sul da Inglaterra como obstáculos antiaéreos ao voo baixo de aviões inimigos.
Ellis certa vez teve que tomar medidas evasivas para evitar uma bomba voadora nazista mortal, conhecida como "doodlebug" ou "bomba zumbidora" por causa de seu barulho. Com o avião desarmado, ela não pôde fazer nada para impedir que atingisse seu alvo em Londres ou em outro lugar.
Em seu livro de memórias de 2016, co-escrito com a jornalista Melody Foreman, ela lembra de estar sobrevoado Pershore em Worcestershire, quando um avião de combate da Luftwaffe com marcas suásticas pretas voou ao seu lado.
"Com uma mão, acenei para este piloto para ele se afastar e sair da minha vista", escreveu ela. “Eu posso lembrar seu rosto sorridente agora. Então ele acenou atrevidamente de novo e de novo — e de repente ele se foi. Eu me perguntei se eram meus cachos loiros que o levaram a me encarar, pois eu nunca usei capacete em toda a minha carreira na ATA. Qual era o sentido de um capacete quando não podíamos falar com ninguém? Também não fez muito pelo penteado.
Ela também foi atingida em Bournemouth, no sul da Inglaterra, por um "fogo amigo" do chão ("não é uma experiência que eu queira repetir") e quase morreu ao aterrissar em uma névoa espessa ao mesmo tempo em que um Spitfire de combate aterrissou na mesma pista e na direção oposta. Entre suas camaradas, esse episódio ganhou o apelido de "Fog Flyer".
Ela também sobreviveu a um pouso forçado quando o trem de pouso do Spitfire atolou. Durante a guerra, o ATA entregou mais de 309.000 aeronaves usando 1.152 pilotos do sexo masculino e 168 mulheres. Perdeu 159 homens e 15 mulheres em acidentes, geralmente devido ao mau tempo ou a bases aéreas tão bem camufladas que não foram encontradas.
Um dos mortos foi uma boa amiga de Ellis, a renomada aviador inglesa Amy Johnson, a primeira piloto a voar sozinha da Inglaterra para a Austrália. Em um voo de entrega do ATA, o avião Airspeed Oxford que pilotava caiu no estuário do rio Tamisa, perto de Londres, em 1941, e seu corpo nunca foi recuperado.
Ao fim das contas, Ellis, homenageada com o posto de primeira oficial da ATA, pilotou mais de 1.000 aviões de guerra de 76 tipos — incluindo 400 Spitfires — entre mais de 200 aeródromos britânicos de 1942 até o final da guerra em 1945.

Em uma família com cinco irmãos, Mary Wilkins nasceu em 1917, na fazenda de 405 hectares de sua família, perto da vila de Leafield, em Oxfordshire.
Ela tinha oito anos quando seu pai a levou em um voo em um biplano Havilland DH-60 Moth de dois lugares. Ela ficou viciada. Quando adolescente, ela convenceu o pai a pagar aulas de voo e conquistou sua licença de piloto aos 22 anos em 1939, no momento em que a guerra se aproximava.
Após a Batalha da Grã-Bretanha em 1940, quando a RAF repeliu com sucesso a Luftwaffe, mas a um alto custo, ela ouviu um anúncio na rádio da BBC para pilotos qualificados para ajudar no esforço de guerra.
Críticas, até indignações, se seguiram rapidamente. CG Gray, editor fundador da revista britânica Airplane, estava entre as vozes mais ardentes contra as mulheres no cockpit. "A ameaça é a mulher que pensa que pode voar em um bombardeiro de alta velocidade quando ela realmente não tem inteligência para esfregar o chão de um hospital adequadamente", escreveu ele.
Anos depois, Ellis lembrou: "As meninas que pilotavam aviões eram quase um pecado naquela época".
A Grã-Bretanha precisava muito de pilotos de combate, mas não havia o suficiente para entregar aviões e combater o inimigo neles. Assim foi fundado o ATA em 1940, para permitir que pilotos aptos para o trabalho, mas não prontos para o combate, apoiassem a RAF e o Fleet Air Arm. A missão era levar aviões da fábrica para a base, ou vice-versa para reparos.
Quando o ATA foi dissolvido no final da guerra, Ellis foi destacada para a RAF e se tornou uma das primeiras mulheres a pilotar o primeiro caça a jato da Grã-Bretanha, o Gloster Meteor. Após seu licenciamento, ela se tornou piloto de rally; ao volante de seu carro esportivo preto Allard, com o qual venceu muitas competições, incluindo o Rally da Ilha de Wight.
Tendo se estabelecido na ilha, tornou-se administradora do aeroporto de Sandown, na ilha de Wight, em 1950. Pensa-se que ela foi a primeira mulher a administrar um aeroporto na Europa e, nas duas décadas seguintes, fez de tudo, desde trabalhar na torre de controle, correr para afastar ovelhas e acenar guiando as aeronaves em direção ao terminal. Ela até cortou a grama e ajudou o aeroporto a se transformar em uma pista movimentada, com voos entre a Ilha de Wight e muitas cidades inglesas do continente.
Ela se casou com o piloto Donald Ellis em 1961. Ele morreu em 2009 e eles não tiveram filhos.
No ar, você está por sua conta”, Ellis disse a um entrevistador de TV britânico quando completou 100 anos. "E você pode fazer o que quiser. Eu voei 400 Spitfires. Eu amo o Spitfire. É o favorito de todo mundo. Eu acho que é um símbolo da liberdade. E ocasionalmente eu pegava uma e ia brincar com as nuvens. Eu gostaria de fazer tudo de novo. Houve uma guerra, mas por outro lado foi absolutamente maravilhoso".
Mary Wilkins Ellis, nascida em 2 de fevereiro de 1917, faleceu em 24 de julho de 2018.
© Washington Post
Fonte: tradução livre de The Independent
COMENTO:  Mary Ellis, ex-piloto do ATA — Air Transport Auxiliary — da RAF, foi homenageada quando da produção do documentário “Spitfire”.
No vídeo abaixo, Maxi Gainza, proprietário do Spitfire Mk VIIIC, matrícula ZX-M, explica que aquele avião em particular foi pilotado por Mary Ellis em 1944, quando ela assinou seu nome no cockipt, visível até hoje. No vídeo, muito emocionada, Mary revê o “seu Spitfire”.
Duas semanas após o lançamento do filme, evento em que foi ovacionada pelo público expectador, Mary Ellis, a última Spitfire Girl, faleceu aos 101 anos. Grandes almas jamais morrerão.....

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