quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Escravos Brancos. Quando a Caça de Peles Claras Semeava o Terror na Europa


Duas naves alongadas se aproximaram da popa da barcaça Francis. Os homens a bordo da Francis, uma pequena embarcação de carga que em 1716 ia de Gênova para a Inglaterra, estremeceram de terror: aquelas naves são xebecs, navios de três velas usados pelos caçadores de homens brancos. Eles vêm do norte da África, e os marinheiros da Francis sabem bem o que lhes espera: a escravidão. Todos perderão a liberdade, e muitos a própria vida. Serão jogados em celas pútridas, serão torturados e humilhados, maltratados até a morte. Poucos conseguirão rever a pátria.
O mercado de escravos de Argel em um desenho europeu de 1700. Os prisioneiros europeus eram acorrentados, desvestidos, examinados como atenção, muitas vezes espancados e depois comprados por mercadores que os revendiam para que executassem trabalhos forçados ou como remadores nas galés.
Ouro branco 
Escravos europeus, senhores africanos: uma situação insólita que só nos últimos tempos está sendo objeto de estudos aprofundados pelos historiadores. O quadro que temos daquela época, quando os cristãos eram chamados de “ouro branco” nos mercados norte-africanos, ainda está recoberto por uma pátina de descrições folclóricas.
No século 19, na Europa, o exotismo oriental estava na moda, sobretudo na pintura e demais artes plásticas (veja o quadro “Mulher branca sequestrada e levada ao harém”) e obras do gênero constituíam um filão muito lucrativo. Esse modismo também encontrou ressonância na produção literária naqueles tempos. Mas os historiadores, curiosamente, nunca levaram o fenômeno realmente a sério. Hoje, um livro do historiador norte-americano Robert Davis traça um panorama radicalmente diverso.
Segundo Davis, não menos de um milhão de europeus foram escravizados e obrigados a servir os seus senhores africanos. Entre 1580 e 1680, em Argel, Túnis, Trípoli e em muitas outras localidades do litoral norte-africano, viviam estavelmente cerca de 35 mil escravos brancos.
Procurando calcular quantos homens tinham de ser capturados para manter estável esse número, levando-se em conta as fugas (menos de 1%), resgates (4%), mortos pela peste que, na África, se espalhava com espantosa regularidade, Davis estimou que a cada ano fosse preciso capturar pelo menos 8.500 pessoas, ou seja 850 mil indivíduos no período entre 1580 e 1680.

1,25 milhão de escravos brancos
Para toda a época da escravidão, de 1500 até 1800, Davis estima “com boa aproximação” um número total de 1,25 milhão de europeus reduzidos à escravidão. E ele se refere apenas às cidadelas dos caçadores de escravos no Mediterrâneo ocidental: Argel, Túnis e Trípoli. Mas também no Marrocos e no Egito, dezenas de milhares de europeus viviam em escravidão, bem como no Império Otomano: em Constantinopla, entre os anos 1500 e 1800, havia uma presença estável de 30 mil escravos.
Os caçadores de escravos do Norte da África chegavam até a Grã Bretanha. Ao chegar aos portos britânicos, saíam das naves e invadiam tavernas e igrejas, vestindo roupas longas e com as cabeças completamente raspadas, empunhando cimitarras e arrastando os clientes das tavernas ou os fieis que assistiam à missa. Em 1627, um grupo argelino de caçadores de homens chegou à Islândia, onde sequestrou cerca de 100 homens, mulheres e crianças.
1,25 milhão de europeus deportados para o norte da África entre 1500 e 1800. Mas os africanos negros deportados para as Américas pelos europeus entre 1451 e 1870 foram cerca de 12 milhões.





















Terror na Itália 
Mas foi sobretudo no sul da Itália onde esses corsários mais agiram. Em 1543, desembarcaram na península cerca de 12 mil corsários, um verdadeiro exército que penetrou cerca de 30 quilômetros no interior das terras. Cerca vez, chegaram a 20 quilômetros do Vaticano. As milícias locais não ousavam atacar os invasores, claramente superiores em número e capacidade de combate. A Itália, na época, não existia como nação. O território italiano era fragmentado em numerosos pequenos Estados e algumas repúblicas, e os centros de poder estavam quase sempre situados bem longe das aldeias e pequenas cidades.
Em 1544, os caçadores de homens fizeram 7 mil prisioneiros no Golfo de Nápoles. Dez anos depois, em 1554, deportaram 6 mil pessoas residentes em Vieste, na Apúlia. Quando as naves voltavam à casa depois dessas incursões e desembarcavam os prisioneiros, contam os testemunhos da época que, nos mercados de escravos do norte da África, “um europeu valia o preço de uma cebola”.
Algumas vezes as expedições alcançaram um êxito tão grande que as naves corsárias não conseguiam transportar todos os passageiros. Estes eram então vendidos com grandes descontos aos seus próprios parentes. Era o momento em que entravam em ação os agiotas europeus locais que faziam empréstimos a quem não tinha condições de pagar o resgate de parentes sequestrados e, como abutres, tiravam proveito da desventura dos seus conterrâneos. Em situações como essa, os parentes do prisioneiro empenhavam a própria casa e todos os bens que existiam nelas. Assim, em poucas horas poderiam abraçar de novo os seus familiares queridos, mas não tinham mais como viver.
A escravidão foi praticada em toda a parte no mundo inteiro, desde as primeiras grandes civilizações como o Egito e a Grécia. Em Roma, os escravos estavam tão desesperados que, guiados por Espártaco, ousaram se rebelar. Com o advento do cristianismo, aos cristãos foi proibido comprar outros cristãos escravizados (mas a regra não se aplicava aos fieis de outras religiões). Mesmo assim, com essa providência, a escravidão na Europa diminuiu. Mas nos tempos coloniais 12 milhões de negros africanos foram deportados para a América, sobretudo para os Estados Unidos e o Brasil.
Ao redor do ano 1600, o alcance desse fenômeno foi redimensionado. A vigilância dos litorais melhorou graças à construção de fortalezas para a defesa e de torres de vigilância, ao mesmo tempo em que unidades de cavalaria barravam as estradas aos corsários que voltavam para suas naves carregando o seu botim. A partir daí, inúmeras incursões rápidas substituíram as grandes partidas de caça aos europeus de pele branca. O número das vítimas desses “furtos de cristãos” se somava àquele de pessoas capturadas no decurso de grandes operações espetaculares. As populações europeias litorâneas buscaram refúgio no interior das terras, em aldeias fortificadas cercadas por muralhas, sobre as colinas. As zonas costeiras ficaram despovoadas, as ilhas foram abandonadas. Foi por essas razões que começaram os ataques de corsários a navios mercantes. Muitas vezes os caçadores se aproximavam de suas vítimas a bordo de naves já conquistadas, sob falsa bandeira e vestidos com os uniformes das nações amigas. Entre 1613 e 1621 foram sequestradas e conduzidas a Argélia cerca de mil navios provenientes da Inglaterra, da França, dos Países Baixos e da Espanha.
Os europeus capturados eram levados para as cidades do norte da África, arrastados pelas ruas como animais, espancados e cobertos de cuspidas por uma multidão que gritava insultos. Eram a seguir levados a cárceres subterrâneos. Aglomerados nesses celas infectas, viviam em meio a excrementos, insetos e parasitas. A luz penetrava através de uma abertura gradeada no teto. Para abandonar a prisão, os escravos tinham de se agarrar a uma escada de cordas que era jogada do alto.

Leilão no mercado
Permaneciam nessas condições até o dia do leilão no mercado de escravos. Lá, tinham de se exibir saltando, dançando e cantarolando: os clientes queriam ter certeza que a mercadoria estivesse saudável e em bom estado. Os potenciais compradores avaliavam a musculatura, examinavam as mãos e os pés, observavam atentamente os dentes. No mercado se decidia a partida entre a vida ou a morte. O comprador precisava de um animal de trabalho, queria um escravo ou escrava sexual, ou simplesmente se tratava de um investimento especulativo? Apenas nos casos em que o novo proprietário esperasse obter um resgate elevado pela libertação do prisioneiro, ele evitaria maltratá-lo até a morte.
Várias torturas infligidas aos escravos: empalados, esquartejados por duas naves, queimados vivos, crucificados, queimados com velas, enterrados vivos, cortados em pedaços, arrastados por cavalos.
Prender um bispo era como ganhar na loteria
Por essa razão, os mais procurados pelos caçadores eram os passageiros ricos que viajavam a bordo de navios: comerciantes, sobretudo, com familiares dispostos a pagar elevadas somas pelo seu resgate. Ainda mais que os comerciantes, os bispos da Igreja valiam verdadeiras fortunas. Espalhara-se o boato de que a Igreja pagava regiamente e sem fazer alarde pela devolução dos seus dignitários.
O destino mais benévolo tocava geralmente a quem fosse comprado para trabalhar como serviçal em casas privadas: esvaziar as latrinas, conduzir camelos, talvez tocar música nos jardins e servir o café. Mas aos escravos destinados a trabalhos forçados em obras dos governos era reservado um tratamento duríssimo e impiedoso. Em Argel, tinham de arrastar por quilômetros blocos de pedra de 20 a 40 toneladas, desde a pedreira de onde tinham sido extraídos até o cais do porto. E podia ser ainda pior: a forma mais brutal de exploração do braço escravo era a dos remadores de galés.
A bordo de uma galé, a água de beber era poluída. Quem não resistia e caía doente era simplesmente jogado ao mar. Os homens viviam acorrentados aos remos. Não podiam se afastar deles e nem ficar em pé, e tinham de dormir sentados em filas de 3 a 4 pessoas. Para fazer suas necessidades, tinham de subir sobre os vizinhos até chegar à borda. Muitos deles, exaustos, renunciavam a se mover; por isso as galés eram cercadas por um fedor bestial. Nas galés de guerra otomanas, os remadores permaneciam acorrentados até mesmo quando a nave permanecia no porto durante o inverno. E, quando a nave naufragava em batalha, levava os escravos para o fundo.
Muitos escravos acabavam se convertendo ao Islã. Para os proprietários, a conversão dos escravos era um evento contraditório: útil para agradar a Alá, mas negativo para os negócios. Os convertidos não poderiam mais ser tratados de modo desumano. Para quem, por outro lado, se afastava do cristianismo, a passagem ao Islã significava um pacto com o demônio. Para o governo inglês esse escravo se tornava um traidor e não podia mais esperar por qualquer resgate. Com frequência segundo relatos, os ex-cristãos se distinguiam pelo zelo particular como colaboradores do regime: “Superam inclusive os bárbaros em matéria de crueldade e espancam os seus irmãos sem piedade”.
Mercadoria para o harém.
A compra de uma mulher branca nessa ilustração.
A escravidão no luxo
Alguns poucos escravos brancos, no entanto, conseguiam se sair muito bem. O veneziano Giacomo Colombin, por exemplo, capturado no mar em 1602, foi cortejado e protegido pelo capitão dos corsários porque possuía sólidos conhecimentos de engenharia e arquitetura, o que lhe trouxe grande riqueza: era um escravo, mas morava em um casarão luxuoso sobre as colinas de Argel. Depois de 30 anos, usando uma nave que ele mesmo projetara, conseguiu fugir junto a 22 outros prisioneiros.
Tais exemplos mostram que as sociedades escravagistas do norte da África eram bem mais complexas do que podemos imaginar. Novas fontes de informação possibilitam uma nova visão da vida social que se desenrolava nos assim chamados “banhos” de Argel. Desde o início do século 18, esses bairros-prisão, verdadeiros labirintos de ruelas similares às modernas favelas, nos quais vivia uma população de muitos escravos, possuíam algumas capelas para o culto católico, dirigidas por sacerdotes autorizados pelas autoridades dessas metrópoles dos corsários. Os muçulmanos apreciavam a ajuda desses padres, tanto no campo pastoral quanto médico. Os religiosos, com o tempo, conquistaram também um papel cada vez mais importante como agentes nas tratativas para os resgates. Tais processos, com o tempo, passaram de simples “vendas a varejo” de seres humanos para um comércio no atacado de homens-mercadoria.

Em 1816, a abolição
Os resgates custavam caro: em 646 um emissário inglês pagou 38 esterlinas por escravo, a renda anual de um comerciante inglês abastado. A política europeia em relação aos piratas, particularmente a francesa, permaneceu durante muito tempo caracterizada por hesitações e cinismos táticos: era mais importante um bom acordo comercial do que o destino dos escravos. No final do século 18, o rei da Dinamarca enviava a cada ano um tributo de armamentos aos caçadores de homens para que deixassem suas naves em paz. Mas com o final das guerras napoleônicas as relações mudaram. Durante o congresso de Viena entre 1814 e 1815, sob pressão do governo inglês, foi banido o comércio transatlântico de escravos. Ao mesmo tempo, o almirante inglês Sir Sidney Smith, chefe da “Sociedade dos Cavaleiros Libertadores de Homens Brancos Escravizados” lançou a ideia de uma intervenção humanitária no norte da África.
Em agosto de 1816, uma esquadra composta por 18 navios de guerra ingleses, alguns dos quais dotados de mais de 100 canhões, e com o apoio de naves holandesas, ancorou na baía de Argel. Quando se esgotou um ultimato, todas as naves abriram fogo, e sobre a cidade de Argel caíram cerca de 50 mil balas de canhão. A frota dos corsários ancorada no porto foi queimada. O fogo se propagou nas estruturas do porto e dos arsenais, e em pouco tempo se espalhou por toda a cidade. Argel virou uma ruína. Só nesse ponto foi que o comandante chefe dos corsários se rendeu e colocou em liberdade todos os escravos brancos. Logo em seguida, também Túnis, Trípoli e o Marrocos se apressaram em declarar que a escravidão fora abolida.
A escravidão negra nas Américas, no entanto, durou muito mais tempo. No Brasil, ela só terminou em 1888, pela pena da Princesa Isabel, Regente do Império – e a pressão de governos estrangeiros, sobretudo a Inglaterra.
Fonte:    Luis Pellegrini

Um comentário:

  1. Muito bom artigo, Ferraz!
    Normalmente temos a tendência de classificar povos, ou culturas boas, ou más...
    Porém, já me dei conta a muito tempo que todos os povos e culturas são basicamente similares (caro que existem diferenças culturais!).
    O que salta à vista é que nasta um povo ter poder e muitos malefícios serão cometidos...
    Vide, Espanhóis, Ingleses, Portugueses, Belgas, Franceses, Russos, Vikings, Chineses, Japoneses e, ultimamente, os Americanos.
    Os homens são intrinsicamente selvagens na sua essência.
    Raramente, o caráter, a educação se sobrepõem a essa tendência inata.
    Então temos homens bons...que também podem ser de qualquer cultura, povo, ou país.
    Esse teu artigo vem reforçar essa visão e deixa essa simplória versão do homem branco mau e o mito Rousseauniano do selvagem puro e bom.
    parabéns!

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