por Janer Cristaldo
A igreja de Roma elegeu seus doutores por sua sapiência, crença em Deus e piedade. Com os tempos, jogou suas doutrinas ao lixo. É o caso do aborto. Admitido por São Tomás e Santo Agostinho, é punido com excomunhão pela Santa Madre.
Mas não só o aborto. Para Agostinho, inversamente, o suícidio é um crime. A vida é um dom sagrado de Deus e só ele dela pode dispor. Sua doutrina, em A Cidade de Deus, é enfática:
“Nós dizemos, declaramos e confirmamos de qualquer forma que ninguém tem o direito de espontaneamente se entregar à morte sob pretexto de escapar aos tormentos passageiros, sob pena de mergulhar nos tormentos eternos; ninguém tem o direito de se matar pelo pecado de outrem; isso seria cometer um pecado mais grave, porque a falta de um outro não seria aliviada; ninguém tem o direito de se matar por faltas passadas, porque são sobretudo os que pecaram que mais necessidade têm da vida para nela fazerem a sua penitência e curar-se; ninguém tem o direito de se matar na esperança de uma vida melhor imaginada depois da morte, porque os que se mostram culpados da sua própria morte não terão acesso a essa vida melhor”.
Deste crime, não eximiu sequer a casta Lucrécia, da antiga Roma. Violentada pelo filho de Tarquínio, revelou o fato a seu marido e a um parente, exigindo deles vingança. Mesmo assim, decidiu matar-se. O bispo de Hipona não perdoa. Na mesma obra, afirma que a casta Lucrécia foi assassinada:
“Que castigo vossa severa justiça reserva então para o assassino? Mas esse assassino é Lucrécia, essa tão enaltecida Lucrécia; foi ela que derramou o sangue inocente da virtuosa e casta Lucrécia”.
São Tomás não deixa por menos. O cristianismo condena o suicídio como violação ao quinto mandamento, não matarás. Para o aquinata, três são as justificativas para condenar o suicídio:
O suicídio é contrário à inclinação natural da pessoa de amar a si mesma; é um atentado à comunidade à qual a pessoa pertence e, seguindo Agostinho: a vida é um bem dado ao homem por Deus e quem a tira viola o direito divino de determinar sua duração na Terra.
Na Bíblia, onde encontramos seis suicidas – Abimeleque, Saul, Samuel, o escudeiro de Saul, Aitofel, Zinri e Judas – o suicídio é visto como assassinato. Há quem considere o gesto de Sansão como suicida, mas vá lá: seu objetivo era matar os filisteus e não a si mesmo. Só a Deus cabe decidir quando e como uma pessoa deva morrer. Agostinho admite não só a decisão de Sansão, como a de Santa Pelágia, que se matou para defender sua virgindade. Estes se distinguem da morte de Judas, considerada como uma morte ruim, a morte da traição, constituindo crime e pecado.
A Igreja Católica sempre negou assistência religiosa aos suicidas, como missa e enterro. Mas pra teólogos modernosos, a Igreja não lhes atribui a condenação eterna. “Somente Deus sabe o que se dá no foro interno da alma, quais as suas últimas disposições depois de desferir o golpe mortal; um suicida que se tenha sinceramente arrependido, embora não haja podido manifestar-se como tal, recebe de Deus o pleno perdão”.
Como não se sabe o que se passa na cabeça de um homem que se joga de um penhasco ou edifício no momento da queda, fica o dito pelo não dito. Seja como for, o suicídio sempre foi condenado pela Bíblia, pela Igreja e por seus doutores. Exceto, nestes dias que correm, quando o santo é de esquerda.
Manchete de hoje (8/8/14) no Estadão:
O mártir da ditadura é Frei Tito de Alencar Lima, preso por ligações com a Ação Libertadora Nacional (ALN), da qual participaram Marighella, Dilma Roussef... e Aloyso Nunes, vice de Aécio Neves. Estes dois últimos tiveram melhor sorte. Preso e torturado no Brasil em 69 e 70, Frei Tito foi deportado para o Chile em janeiro de 71 e de lá fugiu para Roma, onde não encontrou apoio da Igreja Católica. Foi então para Paris e acabou se suicidando em Évreux, onde residia no convento Sainte-Marie de la Tourrete, em 10 de agosto de 1974.
Enterrado no cemitério do convento, seu corpo foi trasladado em 83 para Fortaleza. Antes passou por São Paulo, onde foi realizada uma celebração litúrgica de corpo presente em sua memória. O oficiante foi Dom Paulo Evaristo Arns, aquele cardeal que escrevia ternas missivas ao ditador Fidel Castro. A missa foi celebrada em trajes vermelhos, usados em celebrações dos mártires. Afinal, embora seja comum o número de estudantes suicidas nas capitais européias (inclusive eu tive um amigo que se enforcou em Berlim), considerou-se óbvio que a culpa da morte de frei Tito era da ditadura militar.
Os amigos e parentes de Frei Tito de Alencar Lima lembram, neste fim de semana, em São Paulo, os 40 anos de seu martírio, com missa, palestras e testemunhos de historiadores e teólogos que conviveram com ele no período da ditadura. A missa será celebrada, às 19 horas de sexta-feira, por d. Angélico Sândalo Bernardino, bispo emérito de Blumenau (SC), na Igreja de São Domingos, na rua Caiubi, 164, anexa ao Convento das Perdizes, onde Frei Tito e outros frades foram presos, em 1969, na véspera da morte de Carlos Marighella.
No sábado, a programação começará às 9h30, no Colégio Rainha da Paz, na rua Dona Elisa de Moraes Mendes, 39, Alto de Pinheiros. O professor de literatura Alfredo Bosi, da Universidade de São Paulo (USP), falará na abertura sobre a importância de se recordar Frei Tito hoje. Em seguida, o economista João Pedro Stédile, da direção do MST e da Via Campesina, dividirá com o padre e teólogo José Oscar Beozzo o tema Sentido Histórico da Ditadura civil-militar no Brasil e o papel da Igreja na Resistência Armada.
Santo de esquerda pode suicidar-se à vontade, sempre terá as homenagens das esquerdas católicas, com participação especial de um invasor de terras. Diz-me quem por ti chora e dir-te-ei quem és.
O Brasil precisa de santos. Para quando a canonização?
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