por Janer Cristaldo
Corrigir redação é sempre um problema. Impossível fazer uma correção matemática de um texto, atribuindo ao mesmo uma nota precisa e objetiva. Em meus dias de magistério, me deparei com esse problema. Me impus um critério: três erros crassos de português, zero. Quanto ao resto, admite-se discussões. Afinal, eu lecionava na universidade e não podia admitir erros que, a meu ver, reprovariam um aluno no vestibular. Ocorre que eu vivia um tempo diferente de meus alunos. Os erros que minhas aluninhas (era quase todas alunas) cometiam, não eram admitidos em meus dias de ginásio.
Mas jamais corrigi modo de pensar. Certa vez, recebi um texto defendendo idéias absurdas (já não lembro quais), mas em um português impecável. Fiz não poucas observações à margem da redação, mas dei nota máxima ao aluno. Há alguns anos, recebi comovido uma mensagem dele. Dizia ter por mim muito respeito, pois apesar de discordar frontalmente do que ele escrevera, eu lhe dera um dez. Confesso que me fez muito bem receber essa mensagem.
Naqueles dias — UFSC, anos 80 — recebi uma proposta estranha. O chefe do Departamento de Letras abordou-me: — Janer, tu és a nossa última esperança.
Senti-me valorizado. Tratava-se de quê? Era simples, eu era o último professor com suficiente moral para reprovar o Jorjão. Não entendi mais nada. Era, de longe, meu melhor aluno. Alto, com quase dois metros, desengonçado e tímido, tinha um certo ar de Frankenstein que assustava as meninas. Mas escrevia de forma impecável, jamais tive de corrigir-lhe uma vírgula. Um estilo duro, é verdade, sentia-se que não lhe era fácil dominar a língua. Mas se esforçava e conseguia. Mais ainda: lia também em alemão. Se eu indicava um autor nacional traduzido ao alemão, ele lia o original e também a tradução, pelo prazer de lê-lo em outra língua. Por que o Jorjão? — quis saber.
— Ele é muito esquisito. Tem problemas psicológicos. Podes imaginar o Jorjão lecionando?
Confesso que não havia pensado no assunto. Mas eu não estava ali para analisar psicologicamente um aluno. E sim para ensinar literatura. Respondi que se levantasse a vara, teria de reprovar a classe inteira.
— E além disso o pai dele é da TFP.
Mas que tinha eu a ver com isso? Desde quando a crença de um pai pode ser motivo de reprovação de um aluno? Recusei-me a reprovar o Jorjão. O chefe de Departamento conseguiu outro professor para executar o serviço vil, e fiquei sabendo que o Jorjão teve de entrar com advogado para poder formar-se.
Anos depois, encontrei-o na rua. Coincidiu que estávamos em um declive, ele na parte de cima. Eu tinha de olhar para o alto, minha cabeça mal dava pouco acima de seu umbigo. Contou-me que estava lecionando em Anitápolis e já havia brigado com o prefeito. — E por que brigar com o prefeito, Jorge?
— É que a escola não tinha biblioteca. Exigi uma da prefeitura, o prefeito não quis. Acabei brigando e ele teve de providenciar uma.
Aquele era o aluno que o Departamento de Letras queria reprovar. Confesso que senti um certo nó na garganta. Naqueles dias, eu já fora ostracizado da universidade — entre outras razões, por ter reprovado uma analfabetinha, sobrinha de um deputado — e o Jorjão não se conformava:
— Tão cedo a UFSC não verá um professor como o senhor.
É possível. O Departamento cometeu um erro de cálculo ao contratar-me como professor visitante. Suponho que me julgaram maleável. A única solução foi ejetar-me. Mas o mal já estava feito: o Jorjão aprovado e a sobrinha do deputado reprovada. Me despedi comovido de meu ex-aluno. Quando um professor brigaria com um prefeito para conseguir uma biblioteca? Ouvir aquele depoimento me deixou bem até hoje. Anitápolis não sabe, mas tem uma dívida comigo.
Não bastasse a censura que Estado, a universidade, o PT, religião e ideologias querem impor ao pensamento, o MEC passou agora a censurar sua manifestação no vestibular. Leio no Estadão entrevista com a consultora em educação Ilona Becskeházy. Para ela, a formulação do Guia do Participante é um avanço, mas não será suficiente para diminuir as discrepâncias de avaliação entre os mais de 4 mil corretores que trabalharão nos 5,7 milhões de textos.
Além disso, Ilona afirma que o fato de o MEC ter mantido a cobrança para que o candidato respeite os direitos humanos causará mais controvérsias. "O politicamente incorreto é muito subjetivo. O que é inadmissível para um corretor pode ser plenamente aceitável para outro".
Uma das corretoras da prova, que falou ao jornal sob a condição de anonimato, concorda. "Há situações bem pontuais e fáceis, como o caso de um texto dizendo que negros e nordestinos devam ser assassinados. Isso sem dúvida desrespeita os direitos humanos. Mas há casos bem sutis e treinamento nenhum consegue uniformizar a percepção do corretor", diz.
Segundo ela, a orientação da banca é para que se dê nota zero a um texto que defenda que o dever das mulheres é cuidar da casa. "Mas eu não invalidaria, porque isso é uma questão cultural que precisa ser repensada na sociedade, não desqualificando a argumentação do candidato".
De minha parte, se alguém considera que negros e nordestinos devem ser assassinados e que o dever das mulheres é cuidar da casa, sentirei algo entre pena e asco pela espécie de ser humano que ele representa. Como professor de língua, se ele afirmar isto em um português impecável, só me cabe dar-lhe nota máxima. Um revisor de redação no vestibular não é pago para controlar pensamento. E sim para corrigir o vernáculo.
Os jornais protestam contra o politicamente correto. Isto é, fingem que protestam. De fato, o assumem. Os jornais não falam mais em favelas. Mas em comunidades. Não se fala mais em prisão de menores. Mas em apreensão de menores. Como se menor fosse um objeto que se apreende. Afrodescendente não chegou a pegar, mas jornalista já hesita em grafar a palavra negro. Até a palavra índio está entrando na faixa do proibido. Almas mais pudicas preferem aborígene. Ou povos da floresta. Mais um pouco, e o MEC não se contentará em vetar pensamento. Vai vetar palavras.
Um gênio como Swift hoje não passaria no vestibular. Afinal, escreveu aquela incorretíssima modesta proposta para impedir que as crianças pobres da Irlanda sejam um fardo para seus pais ou para o país e se tornem úteis ao público.
Fonte: Janer Cristaldo
COMENTO: a "modesta proposta" a que o autor se refere é um impressionante texto irônico, escrito em 1729. A ideia era criticar a ineficiência dos políticos da época (a mesma ineficiência que persiste nos dias atuais). Para os leitores que pensam ter um estômago forte, o texto citado pode ser lido clicando AQUI
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