por Janer Cristaldo
Estamos vivendo dias de fúria legiferante ... do Judiciário. Há alguns meses, comentei a decisão inédita no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que condenou um pai a pagar indenização de R$ 200 mil por abandono afetivo. De acordo com a assessoria de imprensa do STJ, a filha entrou com uma ação contra o pai após ter obtido reconhecimento judicial da paternidade e alegou ter sofrido abandono material e afetivo durante a infância e adolescência. A autora da ação argumentou que não recebeu os mesmos tratamentos que seus irmãos, filhos de outro casamento do pai. Como não existe lei que contemple este tipo de ação, a Terceira Turma decidiu legislar.
Judiciário legislar está virando moda. Alega-se que o Legislativo demora demais para elaborar leis, deixando vácuos legais. Pode ser. O fato é que elaborar leis nunca foi função do Judiciário. A Constituição de 88, que desde o berço foi concebida como uma colcha de retalhos, está virando um variegado patchwork. Casamento é entre homem e mulher? Pode ser. Mas pode também não ser. Todos são iguais perante a lei? Talvez sim. Mas talvez não. Tudo depende de interpretação. No caso das cotas, o STF tirou da manga o exótico conceito de “igualdade material”, para justificar a oficialização do racismo.
Na última década surgiu aos poucos, no seio do Judiciário, a tese do abandono afetivo. Que impõe a um pai a obrigação de amar seu filho, como se fosse possível amar por decreto. Várias ações provocaram o Judiciário. Mas atenção: sempre é o pai que tem obrigação de amar. Não vi, até hoje, esta ação impetrada contra uma mãe. A razão é simples. O filho que se julga abandonado, em vez de exigir carinho ou afeto, se contenta com uma gorda indenização. Como em geral o provedor é o pai, é sempre contra ele que se propõe a ação. Ainda mais se for um empresário bem sucedido. Filho algum vai acionar por abandono afetivo um pai que vive de salário mínimo.
No caso da moça que pediu indenização, uma professora de Votorantim (SP), a ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do STJ, determinou uma indenização de 200 mil reais. O caso havia sido julgado improcedente em primeira instância, tendo o juiz entendido que o distanciamento se deveu ao comportamento agressivo da mãe em relação ao pai. A autora recorreu, e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) reformou a sentença, reconhecendo o abandono afetivo e afirmando que o pai era “abastado e próspero”. Na ocasião, o TJ-SP condenou o pai a pagar o valor de R$ 415 mil como indenização à filha. A ministra Andrighi achou por bem tabelar o amor paterno pela metade do preço. Amor virou inciso do Direito das Obrigações.
O caso não é novo. Em setembro de 2003, o juiz Mário Romano Maggioni, da comarca de Capão da Canoa, Rio Grande do Sul, condenou o advogado e vereador Daniel Viriato Afonso a reparar sua filha em R$ 48 mil por abandono afetivo. Esta teria sido a primeira ação brasileira de filho contra pai por abandono que transitou em julgado.
Pior ainda, a sentença obrigava o pai a “passar a visitar a filha, no mínimo a cada 15 dias, levando-a a passear consigo, comprometendo-se, também, em acompanhar seu desenvolvimento infanto-juvenil, prestando assistência, apresentando a criança aos parentes pelo lado paterno”. Imagine um pai que recusa o filho sendo obrigado a fingir que o adora. Se antes só havia uma recusa, a convivência forçada abre as portas para a raiva ou ódio. O juiz Maggioni encontrou a fórmula mais rápida de fazer um pai odiar um filho.
Várias ações neste sentido foram impetradas de lá para cá, tendo os juízes se pronunciado ora a favor, ora contra a pretensão da parte impetrante. Leio na revista Consultor Jurídico que, ano passado, a juíza Laura de Mattos Almeida, da 22ª Vara Cível de São Paulo, negou indenização a uma filha que foi gerada fora do casamento.
Aos 37 anos, a recepcionista desempregada conta que, filha de pai “riquíssimo”, atravessou uma vida de privações. Enquanto seus irmãos viajavam à Europa, ela começou a trabalhar aos 14 anos para engrossar as finanças da casa. Na tentativa de reaver os prejuízos financeiros, psíquicos e morais causados pela ausência do pai, a mulher ajuizou um pedido de danos morais no valor de R$ 6 milhões. Valor que, certamente, cobre qualquer carência de afeto. Mas a recepcionista não levou. “Não há como obrigar uma pessoa a amar outra”, argumentou a juíza.
Os juízes que condenam pais por abandono afetivo estão contaminados pelo ranço cristão do “amai-vos uns aos outros”. Este é um dos mais perversos momentos do cristianismo. Ninguém pode obrigar ninguém a amar, como disse sensatamente Mattos Almeida. Sem falar que, como perceberam Nietzsche e Kierkegaard, esta ordem exclui o sentimento de amizade. Amizade é eleição, afinidade eletiva. Se tenho de amar o próximo, não sobra espaço para o amigo.
Em 3 de março do ano passado, chegou à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado o Projeto de Lei 700/2007, que pretendia caracterizar o abandono moral como ilícito civil e penal, de autoria deste impoluto pastor evangélico, o senador Marcelo Crivella (PRB-RJ). Até agora, a matéria aguarda julgamento e esteve sob a relatoria ... do também impoluto senador Demóstenes Torres.
Tem um pai ou mãe obrigação de amar um filho? — me perguntava eu então. Esta seria a normalidade das coisas, mas os fatos são teimosos. E se o filho é um celerado, assassino ou drogado, como tantos que existem neste mundinho, apesar dos esforços paternos em educá-lo para a vida? E se o filho matou a mãe, como tantos matam? E se o filho — por uma ou outra razão — tornou-se inimigo do pai? Vivemos em um mundo em que milhares de adolescentes odeiam os pais. Devem os pais responder com amor e carinho?
Os jornais de hoje nos trazem mais um achado no campo do Direito. Em decisão inédita, a Justiça de Santa Catarina determinou que um engenheiro de 54 anos pague pensão à filha de sua ex-companheira. A jovem, de 16 anos, é filha do primeiro casamento da mãe e conviveu com o padrasto por dez anos. A decisão, em caráter liminar, endossa uma nova visão do Direito de Família: pai é quem cria, independentemente do nome que consta na certidão de nascimento.
Até há bem pouco, pai era quem gerava. Velharias da biologia. Para os novos juristas-legisladores, pai é quem sustenta, ainda que sustente filho de outro. Para justificar sua sentença, a juíza Adriana Mendes Bertoncini, da 1ª Vara de Família de São José, presumiu o que chama de "paternidade socioafetiva", pelo fato de o engenheiro ser o responsável pelo contrato escolar da adolescente. A tese não é nova e há horas anda pipocando no Direito de Família.
Hoje, nada mais fácil para um juiz legislar. Basta criar uma palavrinha nova — homoafetividade, por exemplo — e em nome do neologismo pode mandar a Constituição às favas. Foi o que aconteceu no caso da união entre pessoas do mesmo sexo. A meritíssima criou agora esta exótica figura jurídica, a paternidade socioafetiva. De seu bestunto — e não da vontade do legislador — surgiu uma nova lei. Que, em falta de melhor denominação, eu chamaria de a lei do pai-chupim. Chupim, para quem não sabe, é aquele passarinho que põe seus ovos em ninho alheio, e delega o sustento de seus filhotes aos donos do ninho.
A mãe, Madalena (nome fictício), de 41 anos, conta que o engenheiro arcou com as despesas da família, incluindo colégio particular, alimentação, viagens e presentes, desde que a filha tinha seis anos. As duas constam como dependentes no Imposto de Renda do engenheiro. O valor estipulado pela Justiça é de 20% dos rendimentos do padrasto, cerca de R$ 1,5 mil. A jovem já recebe pensão do pai biológico, de um salário mínimo. A mãe se separou do primeiro marido quando a menina tinha dois anos.
O Estado vem invadindo cada vez mais — e abusivamente — a vida privada dos cidadãos. Hoje, até ao namorar você corre o risco de ser considerado, para efeitos judiciais, casado. Fomos todos enquadrados. Que história é essa de ser solteiro? Você é que acha que é. Basta que você mantenha um relacionamento amistoso por um ou dois mais anos e a lei o considera casado. Você encetou relações com uma mulher separada e com filhos? Está achando que é padrasto? Nada disso. Você é pai, com todas as obrigações daí decorrentes.
Em suas alegações, a mãe ajunta as despesas de uma viagem, pagas pelo engenheiro, que ela e filha fizeram à Disney. As duas viajaram em março do ano passado, um mês depois do fim do relacionamento. "Desde fevereiro, quando nos separamos, ele nunca mais fez nenhum contato com ela, nem mesmo pelo telefone. Foi uma separação brusca, que deixou minha filha desorientada", diz Madalena.
A moça aceita a separação, desde que o antigo companheiro herde sua filha. Aviso aos navegantes: se você se relacionar com mãe com filha, afaste-se da filha. Se quiser viajar com seus filhos, deixe a filha dela na praia a ver navios. Melhor nem levá-la a teatro, cinema ou restaurantes. Se levar, você está constituindo uma paternidade socioafetiva. E vai acabar pagando pelo sustento de filho alheio. Para preservar seu patrimônio, melhor até mesmo manifestar certo asco pela menina.
Já há juízes condenando avós ao pagamento de pensão alimentar. Mais um pouco, em nome da novel paternidade, e os pais do padrasto terão de prover o sustento do enteado do filho. Em sua obstinação de mensurar o imensurável, os juízes estão criando barreiras intransponíveis entre pessoas. E as varas de Família estão virando varas de Piranhas.
Cabe recurso da liminar. Se for dado provimento à sentença, estará legalmente consagrada a figura do pai à revelia.
Fonte: Janer Cristaldo
COMENTO: mais do que condenando avós ao pagamento de pensões de filhos, há "operadores do direito" anencéfalos que estão mandando prender pais de pais inadimplentes, como ocorreu semana passada. Sobre a decretação de prisão a uma senhora de 87 anos responsabilizada pela falta de pagamento de pensão por seu filho, me atacou uma dúvida: por que a justiça não utiliza o mesmo critério por quando os "dimenor" cometem crimes? Não seria o caso de, também, recolher à prisão os pais/mães/responsáveis dos tantos assassinos e ladrões protegidos pelo ECA?
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