por Janer Cristaldo
Entre os muitos livros que deveriam ser traduzidos no Brasil — mas não o foram, dada a censura onipresente dos ditos intelectuais de esquerda — está Le Dieu des Ténebres, antologia que reúne depoimentos de escritores que um dia militaram nas fileiras de Moscou, para logo abandoná-las, ao intuir a essência totalitária do marxismo. O livro, assinado por Arthur Koestler, Ignazio Sillone, Richard Wright, André Gide, Louis Fischer e Stephen Spender, foi publicado em 1950, em Paris. Entre os vários depoimentos, transcrevo estes trechos do escritor italiano Ignazio Silone:
"A verdade é que minha saída do Partido Comunista constituiu para mim uma data muito triste, um grave luto, o luto de minha juventude. E eu venho de um país onde se porta luto por mais tempo que alhures. Não nos libertamos facilmente de uma experiência assim intensa como a vivida na organização comunista. Dela sempre subsiste qualquer coisa que marca o caráter pelo resto da vida. Vejam, aliás, como são facilmente reconhecíveis os ex-comunistas. Eles constituem uma categoria à parte, como os padres apóstatas e os ex-oficiais de carreira. Hoje, o número de ex-comunistas é legião".
Os comunistas — e também os petistas — sempre me lembram o Dr. Strangelove, do filme homônimo de Kubrick. Quem o viu deve lembrar dos reflexos condicionados do braço esquerdo do cientista semiparalítico, que mal seu dono se descuidava, se erguia na saudação nazista. Strangelove tinha de contê-lo com a mão direita. Quem um dia foi comunista, fica para sempre marcado na paleta. Aliás, como os ex-seminaristas, como aventa Silone, ao falar de padres apóstatas. A fé entorta o cachimbo.
No dia 10 de agosto passado, saudei o centenário de nascimento de Jorge Amado, a mais operosa prostituta das letras tupiniquins. Um leitor atento me envia link de uma entrevista que me passou despercebida. Antes da entrevista, algumas considerações.
Em meu ensaio Engenheiros de Almas, comento o zdanovismo de Amado. Por zdanovismo, entenda-se a tosca doutrina estética do teórico Andrei Zdanov, mais conhecida como realismo socialista, que consistia em colocar a literatura — como também as demais artes — à serviço da revolução. Da revolução comunista, é claro.
Em 1956, com as denúncias de Nikita Kruschev no XX Congresso do PCUS, assumir as determinações de Zdanov já não era mais possível. Em carta publicada pela Imprensa Popular, do dia 10 de outubro do mesmo ano, Jorge Amado faz um tímido mea culpa:
“Aproximamo-nos, meu caro, dos nove meses de distância do XX Congresso do PCUS, o tempo de uma gestação. Demasiado larga essa gravidez de silêncio e todos perguntam o que ela pode encobrir, se por acaso a montanha não vai parir um rato.
“Creio que devemos discutir, profunda e livremente, tudo o que comove e agita o movimento democrático e comunista internacional, mas que devemos, sobretudo, discutir os tremendos reflexos do culto à personalidade entre nós, nossos erros enormes, os absurdos de todos os tamanhos, a desumanização que, como a mais daninha e venenosa das árvores, floresceu no estrume do culto aqui levado às formas mais baixas e grosseiras, e está asfixiando nosso pensamento e ação. (...) Sinto a lama e o sangue em torno de mim, mas por cima deles enxergo a luz do novo humanismo que desejamos acesa e quase foi submergida pela onda dos crimes e dos erros.”
Até parecia que a velha prostituta havia se regenerado. Nada disso. Vamos à entrevista enviada pelo leitor, feita em 1990 pelo jornalista Geneton Moraes Neto. Pergunta o repórter:
As mudanças no Leste europeu e na União Soviética de Gorbatchev — que parecem ter desorientado as esquerdas no mundo inteiro — abalaram o senhor também?
— Eu me desorientei — e muito — antes, quando descobri que Stalin não era o pai dos povos, ao contrário do que sempre pensei. Aquele foi um processo doloroso, difícil, cruel e demorado. A maioria das causas dos acontecimentos atuais talvez já fossem claras para mim. Mas os acontecimentos são de uma rapidez imensa. Jantei com Costa Gavras, meu amigo. Discutimos esta situação: não é só um mundo que acabou. É tudo o que foi a vida e o objetivo de luta de milhões de pessoas. É gente que lutou com generosidade e coragem e foi presa e torturada por lutar por uma coisa que — de repente — se acaba. A pergunta que você pode me fazer agora é a seguinte: é o socialismo que não presta ou é a falsificação do socialismo? O que é que acontece nestes países? Já não são regimes socialistas nem a Polônia nem a Hungria nem a Tchecoslováquia nem a Alemanha oriental. Já estão deixando de ser socialistas a Bulgária, a Romênia e até a Albânia! Mas não acredito que o socialismo, como ideia, deixe de ser o que representa como avanço e como um passo adiante. Nunca houve socialismo, como não houve democracia. Como a implantação dos regimes socialistas foi baseada naquilo que é fundamentalmente errado — a ditadura de classe —, houve, então, uma falsificação total e completa!
A penitência feita em 56 pela madalena arrependida era só pra inglês ver. Até 1990, um ano depois da queda do Muro, Amado ainda portava luto. Pergunta o jornalista:
— A denúncia do stalinismo provocou um choque ainda maior no senhor?
Responde Amado:
— O choque veio já antes da denúncia, porque eu vinha sabendo das coisas. Mas é evidente que a denúncia de Kruschev trouxe coisas de que eu não fazia a mínima idéia.
Vinha sabendo das coisas? Por que então não nos contou? Por outro lado, as denúncias de Kruschev em 1954 pouco ou nada traziam de novo. As acusações do secretário-geral do Comitê Central já haviam sido feitas por Victor Kravchenko, em 1949, em Paris. Como Dr. Strangelove, Amado manteve seus reflexos stalinistas até o final da vida.
Geneton quer saber se Mikail Gorbachev é o ídolo de Jorge Amado hoje. Nada disso. Responde Amado:
— Meu último ídolo chama-se Stálin. Já não tenho ídolos — há tempos. Como ídolo, Stálin é o bastante. É suficiente… Gorbachev é um grande estadista do nosso tempo. Todos nós devemos a ele um fato importante: o perigo de uma guerra atômica — que iria acabar com a vida sobre a Terra — diminuiu muito. O que é que Gorbachev faz? O que ele faz é expor a verdade. Havia uma mentira imensa que dizia: “O socialismo é este”. De repente, a gente viu que não era.
O velho recurso das madalenas. Não era aquilo que queríamos. Vamos continuar lutando. O verdadeiro socialismo ainda não foi realizado. Houve um desvio nas idéias de Marx. Vamos tentar de novo.
Outro dia, comentava um outro leitor: é preciso ter coragem para ser comunista hoje.
O problema não é coragem, leitor. E sim falta de coragem. Para um velho comunista, renunciar à ideologia é como olhar-se no espelho e dizer à imagem: “és um idiota. Tua vida toda foi inútil e tua obra não vale nada”. É difícil admitir que a “gente que lutou com generosidade e coragem e foi presa e torturada por lutar por uma coisa” — como diz o baiano — na verdade estava lutando pelo totalitarismo.
E essa coragem não está ao alcance de qualquer um. Por isso ainda existem comunistas.
Fonte: Janer Cristaldo
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