por Janer Cristaldo
Pelo que leio, os velhos comunistas foram se refugiar ... nas agências de turismo. Segundo Michael Moynihan, da revista americana Foreign Policy, guias turísticos tratam países com governos esquerdistas autoritários como vítimas que devem ter sua pureza visitada. E como crentes é o que não falta para fazer turismo, desde Lourdes a Havana, este ramo do turismo vai de vento em popa.
Já visitei alguns desses países, antes da queda do Muro. Não por propaganda de agência de turismo. Mas por vontade própria e, no caso da Romênia, a convite de uma amiga que me levou como guia. Não deixa de ser uma experiência. Voltamos com vontade de beijar o bom solo capitalista. Estive em Berlim Oriental, onde levei umas quatro horas para almoçar em um restaurante quase vazio, onde havia um farto cardápio, mas um só prato, o do dia.
Andei também por Hungria e Tchecoslovaquia, quando a Tchecoslovaquia existia. Mas estes países já estavam fugindo à economia soviética. A vida é como uma viagem aos países do Leste — disse-me certa vez um jornalista espanhol — curta e cheia de aborrecimentos. Sim, havia ainda uma certa burocracia estúpida em Praga e Budapeste. Mas a viagem não chegava a ser aborrecida. Aborrecida mesmo foi a viagem a Rússia, dez anos após a queda do Muro. Os tovaritchi talvez tenham sido os que mais custaram a se desprender do socialismo.
Mas a pior das viagens — e a melhor , ao mesmo tempo — foi a viagem à Mangália, na Romênia, às margens do Mar Negro. Pior por ter sido a mais precária, desconfortável e controlada. Melhor por ter dado uma boa ideia do que era o socialismo. Já contei, mas só para relembrar. Na cidade toda, que era um balneário, só havia dois maiôs, um verde e outro azul. E isso em pleno verão. Os bares à beira da praia abriam, mas nada tinham para vender. Nem bebida nem comida. O distribuidor não viera.
Tenho um amigo que há horas me convida para visitar Cuba. Quer que eu vá para ver o socialismo de perto. Antes que acabe. Bom, já o vi de perto. E não tenho estímulo algum para voltar a vê-lo. Segundo Moynihan, as agências de viagem tentam vender regimes totalitários como paradigmas de sociedades justas. Para verificar a qualidade da educação política que oferecem a uma nova geração de viajantes, é útil começar passando os olhos sobre seus guias de viagem para países não democráticos como Cuba, Irã, Coreia do Norte e Síria.
“Há uma fórmula nesse caso: um reconhecimento pro forma da falta de democracia e liberdade naquele país, acompanhado por exercícios de equivalência moral, várias tentativas para contextualizar o autoritarismo ou atrocidades, e ataques mordazes à política externa americana que precipitou aquelas ações desesperadas e defensivas. De um modo geral, há um slogan coerente de que o atraso econômico deve ser encarado como autenticidade cultural e também uma forte rejeição da globalização e da hegemonia americana”.
O jornalista cita o guia Lonely Planet Líbia — publicado antes dos desagradáveis fatos ocorridos no país — cujos leitores são informados de que o ditador líbio, Muamar Kadafi, provavelmente foi acusado injustamente do atentado a bomba que derrubou o avião da PanAm.
“Na verdade, segundo o guia, uma das teorias mais confiáveis é a de que o atentado foi ordenado pelo Irã em represália à derrubada de um AirBus iraniano por um navio de guerra americano no Golfo Pérsico, em 3 de julho de 1988. Kadafi é retratado como uma figura mal compreendida (um tema recorrente durante todo o seu governo é o seu desejo, em vão, de uma união com outros Estados), injustamente caluniado pelos governos ocidentais (os cidadãos líbios sofreram e o mundo rejeitou as propostas líbias para entregar para julgamento os suspeitos pelo atentado de Lockerbie) e vítima da injustiça da mídia (os jornalistas ocidentais, ávidos por qualquer oportunidade de banalizar as trivialidades da Líbia governada por Kadafi, chamavam suas guarda-costas de amazonas)”.
Já o guia Lonely Planet Afeganistão explica que "a burca pode ser vista como um instrumento para aumentar a mobilidade e a segurança, uma nuance com frequência esquecida na imagem que esta vestimenta tem no exterior. Supor que uma mulher vestindo uma burca não tem autonomia e precisa ser libertada é muita ingenuidade".
Para Cuba, todas as honras:
“Aparentemente, estamos completamente errados quanto aos famosos Comitês para a Defesa da Revolução (CDR), rede de informantes similar à Stasi que monitoram e denunciam dissidentes incômodos como Yoani Sánchez. O Lonely Planet Cuba garante aos turistas que esse grupo é na verdade uma organização cívica benigna: os CDR são "órgãos de vigilância dos bairros criados em 1960 para consolidar o apoio popular à revolução e hoje têm um papel decisivo no campo social, da saúde, na educação e em campanhas de trabalho voluntário e de reciclagem".
“Para o redator do guia, como também para os viajantes maravilhados que os compram, não existe uma característica mais desejável numa viagem ao exterior do que a "autenticidade" — lugares não corrompidos pela propaganda corporativa ocidental e as marcas globais — e muitos desses Estados-pária são os únicos que oferecem isso. O Lonely Planet exalta que Cuba é um país desprovido de propaganda de mau gosto, possuindo uma singularidade, uma commoditie que está desaparecendo num mundo cada vez mais globalizado".
Cuba é ilha cheia de miragens, tanto que já enganou Colombo, que ao bordeja-la estava certo de ter chegado ao Japão, para espanto dos acadêmicos de Espanha que negavam tal feito. Colombo ria dos acadêmicos, afinal eram teóricos e não navegantes, enquanto ele, o nauta, lá havia estado. O que mais uma vez nos confirma que muitas vezes o homem ignora completamente as circunstâncias que o envolvem.
Consta que Colombo, em sua viagem, buscava nada menos que o paraíso, como pelo paraíso pensam ter passado fanáticos deslumbrados que cantam as virtudes de um sistema social no qual não suportariam viver um mês na condição, não de turistas, mas de cidadãos comuns.
Em Paris, conheci uma francesa que, ao ler em um ônibus a inscrição PAREDÓN PARA LOS TERRORISTAS, interpretou a coisa segundo sua fé. "Pardon pour les terroristes? Oh, ils sont gentils, les Cubains!" Terroristas, é claro, é quem exige eleições livres, alternância de poder, pluripartidarismo, economia de mercado e liberdade de expressão. Mas isto o turista ideológico não quer ver. Os cubanos são gentis.
Seguido tropeço com moças que acreditam nestas potocas, em geral petistas e assistentes sociais, o que é um truísmo. Apesar da comida racionada, dos prédios caindo em pedaços, dos carros dos anos 50 em pandarecos, voltam louvando as virtudes da ilha. “Ah, lá são todos alfabetizados”. Como se fosse proeza alfabetizar uma ilha de 10 milhões de habitantes, metade da população de São Paulo. E alfabetizados para quê? Para ler uma imprensa dominada pela ditadura?
“Ah, mas lá todos têm saúde”. Saúde como, se não têm nem comida? Ano passado, o repórter americano Patrick Symmes escreveu sobre como viver 30 dias na ilha com o salário de um jornalista cubano, isto é, 15 dólares. Sem falar que deixou de lado as despesas de aluguel de um imóvel vagabundo.
Segundo Symmes, a ração padronizada de produtos básicos consiste, por pessoa, em dois quilos de açúcar refinado, meio quilo de açúcar bruto, meio quilo de grãos, um pedaço de peixe, três pãezinhos.
Riram muito quando perguntei se recebiam carne de vaca. "Frango", disse a mulher, mas isso provocou uivos de protesto: "Qual foi a última vez que recebemos frango?", o marido questionou. "Pois então, é verdade", ela disse. "Já faz alguns meses". A ração de proteína é distribuída a cada 15 dias e consiste numa carne moída de misteriosa composição, que inclui uma bela proporção de pasta de soja (se a carne for suína, a mistura recebe o falso nome de "picadillo"; se for frango, é conhecida como "pollo con suerte", ou frango com sorte). A ração basta para o equivalente a quatro hambúrgueres. Por mês, mas até aquele momento, em janeiro de 2010, cada um só havia recebido um peixe — em geral, uma cavala seca e oleosa. E há os ovos. A mais confiável das fontes de proteínas, eles são conhecidos como "salva-vidas".
Antigamente, a ração era de um ovo por dia; depois, um ovo a cada dois dias; agora, é de um ovo a cada três dias. Eu teria dez deles como ração para o mês seguinte. A opinião geral é de que a ração mensal hoje só dá para 12 dias de comida. A minha viagem serviria para que eu fizesse o meu próprio cálculo: como alguém pode sobreviver durante um mês com comida para apenas 12 dias?
Resumindo: em um mês, Symmes perdeu quatro quilos.
Eu havia perdido primeiro dois, depois três, por fim quatro quilos. Mas estômago e mente se ajustaram com facilidade assustadora. Meus gastos totais com comida foram de US$15,08 ao longo do mês. (...) Minha última manhã: sem desjejum, para complementar o jantar que não tive na noite anterior. Usei a moeda que ganhei de uma prostituta para apanhar um ônibus até perto do aeroporto. Tive de caminhar os 45 minutos finais até o terminal; quase desmaiei no caminho.
No entanto, se um dia você conversar com uma assistente social petista — com perdão pelo pleonasmo — ela vai jurar de mãos juntas que em Cuba ninguém passa fome e todos gozam de excelente saúde. Ora, desde quando pode existir população saudável em um país em que o salário de um jornalista pode comprar, em um mês, o suficiente para viver doze dias?
Mas isto não entra no bestunto de quem quer crer. Além de gentis, os cubanos são saudáveis e sensuais, segundo os guias produzidos pelas agências:
Escrevendo na revista britânica The Ecologist, Brendan Sainsbury, co-autor de Lonely Planet Cuba, sustenta que há uma pureza na penúria cubana: "caminhando lado a lado com presunçosos ocidentais pálidos, gordos e sem coordenação, que estão passando duas semanas de férias longe do Prozac e da 'junk food', os cubanos não andam apenas — eles deslizam, caminhando ritmicamente pelas ruas como dançarinos balançando os quadris na batida sincopada da rumba. Talvez o segredo esteja no racionamento de comida."
Como crentes é o que não falta entre as viúvas, a Disneylândia das esquerdas ainda goza da fama de paraíso do Caribe.
Fonte: Janer Cristaldo
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