quarta-feira, 4 de abril de 2012

Escritores e Covardes

por Janer Cristaldo
Assisti ontem (31/3), na Globo News, entrevista de Sérgio Faraco, concedida a Geneton Moraes Neto. Velho comunista não tem cura. Só matando. Mais de duas décadas após a dissolução da União Soviética, Faraco “ousa” denunciar o regime comunista. E relembra episódios que viveu em Moscou, em 1964. Precisou de quase meio século para abrir o bico. Em verdade, sua denúncia não é de agora. Data de 2002, quando publicou Lágrimas na chuva: uma aventura na URSS. Sua coragem é de dez anos atrás. Mas só treze anos após a queda do Muro.
Já comentei, em 2004, a insólita coragem do escritor gaúcho. O livro relata período de pouco mais de ano vivido pelo autor em Moscou, entre 1963 e 64. "Depois de uma série de conflitos com chefetes políticos ligados aos partidos brasileiro e soviético" — diz-nos o editor na orelha — "Faraco foi internado em regime de reclusão, sob pesada bateria de medicamentos, numa clínica de reeducação. Era este, na época, um procedimento de rotina em relação àqueles que se rebelavam contra o ultra-esquerdismo do Partido". 
Ora, quais foram os gestos de rebeldia do heroico mártir gaúcho? Pelo que lemos em sua memória, foram basicamente duas atitudes: mantinha relações com uma russinha e insistia em escutar Wagner a todo volume em seu dormitório. Fora isso, em uma viagem à Armênia, demonstrou insólita coragem ao perguntar a um mandalete local como podiam avançar na automação do que quer que fosse, se as moradias não dispunham de vasos sanitários e as necessidades eram feitas nos quintais, em latrinas. A tradutora nem sabia o que era latrina. Ou seja, os armênios não haviam chegado sequer ao conceito de latrina. Em função disto, o rebelde escritor foi enviado a uma clínica de reeducação, onde dispunha de quarto individual, com chuveiro e vaso sanitário (um progresso em relação à Armênia) e mais uma enfermeira que vinha pegar-lhe a mãozinha quando deprimido. Gulag classe A, com direito a cafuné. Pra dissidente algum botar defeito.
Do alto desta omissão, quarenta anos nos contemplam. Há mais de quatro décadas, Faraco sentiu na carne o preço a ser pago, na União Soviética, por pequenas molecagens. Escritor, não lhe terá sido difícil imaginar o quanto custava qualquer discordância com a linha do Partido. Agora, já em idade provecta, a tardia madalena alegretense demonstra sua coragem denunciando fato ocorrido nos 60. Seu depoimento, se feito na época, seria de extraordinário valor para sua geração. Seria o relato insuspeito de um militante comunista que, em sua viagem iniciática ao paraíso soviético, fora tratado como doente mental apenas por escapadelas a uma disciplina absurda, típica de seminários católicos. Seria oportuníssimo, logo após 64. 
Érico Veríssimo pergunta a Faraco se não pensava escrever sobre sua estada na União Soviética. "Respondi que, de fato, tinha essa intenção, embora minha experiência não fosse edificante. Ele ficou pensativo, depois disse que, se era assim, talvez fosse ainda menos edificante narrá-la, enquanto vivíamos, no Brasil, sob uma ditadura militar. Ele tinha razão" — diz Faraco. Ora, os militares lutavam para que o Brasil não virasse o imenso gulag que o futuro escritor então testemunhara. Em função de um regime que jamais o pôs na prisão, mesmo sendo comunista, Faraco silencia sobre o regime comunista que o internou em um hospital psiquiátrico, mesmo sendo comunista.
Na entrevista de ontem, interrogado sobre porque ficou tanto tempo em silêncio, Faraco omite o fator Érico Veríssimo. E alega que, na época, tinha de optar entre capitalismo e socialismo. Ora, Faraco nasceu em 1940. Ou seja, teve sete anos a mais do que eu para entender o mundo. Pertencemos à mesma geração. Eu também tinha de optar entre capitalismo e socialismo. Jamais optei pela tirania. Por mais restrições que tivesse ao capitalismo, nele não havia ditadura, opressão, gulags ou clínicas de reeducação para dissidentes.
A história se repete. Em 1929, o escritor romeno Panaïti Istrati publicou Vers l'autre flamme, primeira denúncia do stalinismo no Ocidente. Os originais deste livro levaram Romain Rolland, seu padrinho literário em Paris, a aconselhá-lo: "Isto será uma paulada a toda Rússia. Estas páginas são sagradas, elas devem ser consagradas nos arquivos da Revolução Eterna, em seu Livro de Ouro. Nós lhe estimamos ainda mais e lhe veneramos por tê-las escrito. Mas não as publique jamais". Istrati teve suas Obras Completas publicadas pela Gallimard, exceto Vers l'autre flamme. Que só foi republicado, na democrática Paris ... em 1980. Volto aos anos 60, Brasil. Érico Veríssimo, conivente com a barbárie comunista, repassa a Faraco o covarde conselho.
Escritor, Faraco intuiu o que Érico há muito já intuíra. Se dissesse uma só palavrinha contra a Santa Madre Rússia, adeus editoras, adeus honras literárias, adeus imprensa amiga, adeus resenhas e teses universitárias. O gaúcho de Alegrete, que não teve sequer a hombridade de despedir-se da humilde moscovita que o aquecera nos seus dias cinzentos às margens do Volga, baixa a crista. Mas seu livro tem um grande mérito: nos revela a cumplicidade com a tirania do escritor gaúcho tido como campeão da liberdade. Não por acaso, a universidade e imprensa gaúchas idolatram Érico.
A História é um lago que seca. Ao descerem, suas águas trazem à tona monstros insuspeitos. Todos os escritores gaúchos foram cúmplices da peste marxista, sem exceção. Dyonélio, por exemplo, após a evidência dos gulags, passou a escrever sobre a antiga Grécia. Tive um bom convívio com Dyonélio, paradoxalmente foi ele, materialista e marxista convicto, quem me introduziu nos estudos bíblicos. Mas quando eu queria levá-lo a falar sobre stalinismo, ele se retraía em sua concha: “Não vou dar argumentos para eles”. Ou seja, Dyonélio tinha conhecimento do que estava acontecendo. Aliás, quem não tinha?
Foi o mesmo movimento espiritual de fuga de Faraco, que refugiou-se em Urartu, na Armênia. Josué Guimarães foi caixeiro-viajante a serviço de Pequim e Moscou. Até as pedras da Rua da Praia sabiam que estes senhores eram comunistas, mas ai de quem o dissesse em público. Seria execrado como delator e expulso do rol dos vivos.
Covardes e omissos foram também todos os demais que, sem pertencerem ao Partido, silenciaram sobre os crimes do comunismo. Mário Quintana, por exemplo, refugiava-se em uma frase cômoda: "eu não entendo de problemas sociais". Moacyr Scliar foi premiado pela ditadura de Fidel Castro. Ou seja, desde há muito se preparava para entrar na Academia Brasileira de Letras, aprazível reduto de viúvas do stalinismo. Já que estamos comentando o assunto: filho de Verissimo, Verissiminho é. Luis Fernando, o rebento, apóia toda ditadura, desde que de esquerda. Apenas dois gaúchos, em todos os cem anos do século passado, ousaram escrever contra a barbárie. Um foi o jornalista Orlando Loureiro, que publicou A Sombra do Kremlin. Procure nos sebos: editora Globo, 1954, dez anos antes da viagem do alegretense deslumbrado.
O outro é este que vos escreve, que tem denunciado o marxismo desde os dias em que Faraco passeava pelas ruas da nova Jerusalém.
Fonte:  Janer Cristaldo

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