por Janer Cristaldo
Há muita desinformação nos jornais sobre o mundo árabe. O que talvez explique essas bobagens que jornalistas andam escrevendo sobre a tal de primavera árabe. Por exemplo: em 2002, o terror palestino conseguiu inovar. Surge, naquele ano, uma nova palavra na mídia, mulher-bomba. Três meninas se explodiram, uma com 28 anos, outra com 21 e a terceira com 18. A mais velha nem havia chegado à metade da vida. Claro que não faltou, na época, uma feminista tardia e de poucas luzes, suficientemente irresponsável para louvar a nova conquista de seu sexo.
A sale besogne coube a Marilene Felinto, da Folha de São Paulo. Eterna defensora das piores bandeiras que o engenho humano concebe, a colunista considerou que é pelo suicídio que as muçulmanas se igualam aos homens. “As mulheres-bombas muçulmanas são a glorificação do suicídio pelo estoicismo, pelo auto-sacrifício — elas agem no intuito de que a justa defesa do bem público prevaleça sobre o direito do agressor ao corpo e à vida”.
Ora, no mundo muçulmano, nem pelo suicídio a mulher se iguala ao homem. A jornalista, que acabou sendo ejetada do jornal, demonstrou desconhecer a história de ontem. Para o sacrifício, até mulher serve. Aconteceu na guerra da Argélia. Na hora de carregar bombas para matar franceses, a mulher teve um papel a desempenhar. Finda a guerra, voltou para a cozinha fazer cuscuz. Logo depois, se não usasse véu, corria o risco de ter o rosto desfigurado para sempre com ácido. Como as afegãs. Enquanto serviam como execração dos talibã, exibiam seus belos dentes. Derrotados os talibã, voltaram a esconder o rosto na burca.
Fanatismo e ignorância andam sempre de mãos dadas. A insipiência da jornalista era tamanha, a ponto de falar em “quilos de dinamite que carregam por baixo das sete saias do xador (sic!)”. Ora, o chador é usado pelas iranianas. Consiste em uma capa que esconde todo o corpo e deixa o rosto descoberto. Foi proibido temporariamente pelo xá Reza Palhevi e nada tem a ver com palestinas. E muito menos com árabes.
Diga-se de passagem, o dicionário Houaiss dá uma definição errada de chador: “traje feminino usado em alguns países muçulmanos, especialmente no Irã, que cobre todo o corpo, à exceção dos olhos”. Dois erros. Primeiro, não é que seja usado especialmente no Irã. É usado só no Irã. Segundo, não deixa apenas os olhos a mostra, mas todo o rosto.
Na época, vi um documentário sobre o Afeganistão no National Geographic Channel. Mostrava mulheres de burca — véu que mais parece uma gaiola, com uma espécie de grade cobrindo o rosto — e a todo momento a locução falava em chador. A televisão é poderosa. Quem não sabe o que é burca, acaba achando que as afegãs usam chador. Que uma pessoa sem maiores luzes confunda burca com chador, entende-se. Que um canal de televisão difunda este erro é mais grave. Todo analfabeto passa a afirmar, de boca cheia, que as afegãs usam chador. Televisão é cultura.
Em meus dias de Folha de São Paulo, recebi uma matéria do correspondente do jornal em Paris. Ele falava do Instituto de Cultura Árabe, “que reúne países como Egito, Tunísia, Argélia, Irã ...” Eu o atalhei:
— Calma, companheiro. Irã não é árabe.
— Como que não é árabe?
— Irã é persa.
Perplexidade do outro lado da linha. O arguto correspondente internacional da Folha não sabia o que era persa.
Em meio a isso, tenho uma amiga que me recomendou o best-seller O Livreiro de Cabul, da jornalista e escritora norueguesa Asne Seierstad, sabatinada ontem pela Folha, no auditório do jornal no shopping Higienópolis, aqui ao lado de casa. Claro que não fui lá. Em primeiro lugar não leio best-sellers. Em segundo, jamais perderia meu tempo ouvindo um autor de best-sellers.
Mas li trechos da alocução da moça na Folha. Asne falou sobre sua experiência de 18 anos cobrindo conflitos internacionais e também comentou os ataques terroristas, que deixaram 77 mortos em seu país. Falando sobre a “invasão ocidental”, afirma:
— Sou radicalmente contra a invasão estrangeira. A maior parte dos afegãos vê isso como uma ocupação e seus atos denotam essa preocupação. Temos de pensar em outras formas de lidar com os conflitos no mundo árabe.
Vá lá! Pode-se até dar um desconto. Vai ver que a jornalista falava do Afeganistão e depois ajuntou o mundo árabe a seu discurso. Ocorre que ela reincide:
— A burca se tornou um símbolo do quanto as mulheres afegãs são oprimidas e essa questão vai muito além do vestuário. No mundo todo, as mulheres nunca tiveram nada de graça. Cabe ao mundo ocidental ensinar as mulheres árabes a conquistarem poder.
Ora, Afeganistão nada tem a ver com mundo árabe. E burca muito menos. Curiosamente, o encontro teve mediação de Paulo Werneck, editor do caderno Ilustríssima. Também participaram o repórter de Mundo Samy Adghirni; a professora de história e cultura árabe da USP Arlene Clemesha e o editor de Internacional do UOL Notícias, Edilson Saçashima. Nenhum destes especialistas fez qualquer objeção a esta solene besteira proferida pela jornalista norueguesa.
— Como jornalista, meu objetivo é reportar o que eu vejo. Mas acho que somos reflexo da nossa criação. Cresci nos anos 70, sou filha de pais liberais e de mãe feminista. Nas minhas reportagens, muito embora eu seja objetiva, acredito que seja possível enxergar o meu ponto de vista nas entrelinhas.
E bota objetividade nisto. A moça, que já escreveu um livro sobre Cabul, sem saber que o Afeganistão não é árabe, pretende agora escrever um outro sobre a Líbia. Depois que a imprensa internacional descobriu — ó perspicácia! — que Kadafi era um ditador, Kadafi se tornou rentável.
O livro será certamente mais um best-seller.
Fonte: Janer Cristaldo
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