por Percival Puggina
Na agitada vida estudantil dos anos 60, em Porto Alegre, primeiro naquela usina de lideranças que era o Colégio Júlio de Castilhos e, depois, na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nunca tive alinhamentos políticos automáticos. Ainda que me faltassem bases filosóficas, gostava de pensar por conta própria. Jamais aceitei ser liderado pelos antagonismos em confronto. Mas se tivesse que eleger um grupo para valorizar sob o ponto de vista cultural, sem dúvida essa turma seria a da esquerda.
Vocês não imaginam o quanto os caras eram sabichões. O que liam! Traziam sempre, embaixo do braço, livros da Editora Civilização Brasileira, da Paz e Terra e se reuniam em pequenos grupos para trocar ideias sobre temas cuja profundidade eu sequer arranhava. Aliás, todo estudo não acadêmico a que posteriormente me dediquei na área das ciências humanas teve como motivação a tentativa de alcançar um nivelamento intelectual com a esquerda do meu tempo de estudante. Eu precisava estar preparado para desarmar as bombas filosóficas que arquitetavam.
Há dois motivos para esta crônica das minhas primeiras ignorâncias. Hoje tenho ignorâncias novas, maiores e muito melhores. Um é sublinhar o fato de que a esquerda brasileira daquele período, embora equivocada nos seus pontos de partida, nos meios e nos fins (isso eu intuía com correção), tinha gabarito intelectual e tinha ideais. Os esquerdistas que conheci não eram aproveitadores nem negocistas. Muitos estão por aí e são pessoas respeitáveis. A história evidenciou, posteriormente, que seus mitos e referências internacionais foram uns pervertidos e que o seu marxismo é uma usina de equívocos, mas suponho que eles não tivessem como discerni-lo nos emaranhados dos esquemas de formação, informação e desinformação em que se moviam durante a juventude.
O segundo motivo deste relato é mostrar o quanto a esquerda brasileira afundou sob o ponto de vista intelectual e moral. Frei Betto, cuja vida e obra se caracteriza por primeiro fazer os estragos e, depois, observar os danos de longe, poeticamente, escreveu assim em artigo de setembro de 2007, ao desembarcar do governo Lula: “A sofreguidão esvaziou projetos, a gula cobiçosa devorou quimeras. O pragmatismo acelerou a epifania dos avatares do poder". Pois é. Não fosse intelectual o frei poderia dizer simplesmente que deu m... Voltando à pauta. Quem poderia imaginar a esquerda brasileira em prontidão para defender pessoas como Fidel Castro, seus métodos e seus sicários; abraçando caudilhos e brutamontes como Hugo Chávez; reverenciado primatas como Evo Morales; dando vivas a Saddam e cortejando Ahmadinejad; adotando Lula como seu estadista de referência; assumindo, como suas, causas que solapam os valores universais; proferindo juras de amor aos maiores vilões da política brasileira e fornecendo tantos e tantos prontuários e fotos aos arquivos da polícia e do ministério público? Quem poderia? Quem poderia imaginar, em 1992, que o chefe dos caras-pintadas, Lindberg Farias, passados 18 anos, eleito senador pelo PT, estaria trocando afagos com Fernando Collor, seu parceiro de fé na base do governo Dilma?
Quando eu me lembro daqueles terríveis anos 60 e 70, marcados por severíssimos conflitos ideológicos e do quanto lhes sobreveio em violência e sofrimento, não posso deixar de pensar que essa mesma decadência é a marca registrada de todas as hegemonias políticas. A esquerda brasileira leu Gramsci. Aprendeu dele as técnicas de construção da hegemonia. Construiu-a. Mas com ela perdeu o que de melhor dispunha. Seu arco do triunfo é, também, o seu arco do fracasso. É o que, há alguns anos, se lê, com os olhos da vida vivida, logo abaixo das manchetes de todos os jornais, ainda que eles não digam isso.
* Percival Puggina (66) é arquiteto, empresário e escritor, articulista de Zero Hora
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