por Janer Cristaldo
Pode um editor modificar a seu talante a obra de um escritor do passado? Poder, pode. Afinal morto não reclama. E se direitos autorais se tornam de domínio público após setenta anos, raros herdeiros poderão reclamar. Aliás, é o que as editoras vêm fazendo ao longo dos séculos. As bibliotecas estão cheias de adaptações idiotas para adolescentes, tanto de Cervantes como de Swift, como se Cervantes ou Swift tivessem escrito para adolescentes. Isso sem falar na Bíblia. Cada religião dela derivada puxou brasa para seu assado. Até os marxistas tiraram sua casquinha. Em minhas estantes, tenho uma bíblia absolutamente marxista. É a tradução feita por Ivo Storniolo, Euclides Martins Balancin e José Luiz Gonzaga Neto, publicada pelas Edições Paulinas e com imprimatur de Dom Vital Wilderlink, bispo de Itaquaí. O Senhor dos Exércitos, por exemplo, usual em quase todas as traduções, vira Javé dos Exércitos. Para não confundir com 64. Os intertítulos apostos aos versículos são todos um programa de lutas e conclamam à revolução: “todos têm direito à terra e à casa própria”; “Deus anima a luta do povo”; “liberdade é conquista contínua”; “liderança participada e representativa”; “plena participação popular”; “como repartir a terra”; “repartir a terra com igualdade”; “solidariedade na luta pela terra” e por aí vai. Só faltou o “povo unido jamais será vencido”. As palavras líder e liderança, conceitos que não existiam nos tempos bíblicos, abundam no texto. O livro mais difundido no mundo é também o mais desonestamente traduzido.
Tradutori, traditori — dizem os italianos. As traduções são como as mulheres — dizem os tradutores — quanto mais belas mais infiéis. Vá lá! O problema surge quando os editores são traidores. Nos Estados Unidos, o professor de inglês Alan Gribben, responsável pela última edição de As Aventuras de Tom Sawyer, clássico de Mark Twain, eliminou da obra a palavra “nigger”, que ocorre em 219 ocasiões. Em nome do politicamente correto, considerou-a ofensiva e racista. E a trocou por escravo. Ora, há uma diferença abissal entre negro e escravo. Negro é cor da pele. Escravo é condição social. Os escravos são negros? Nem sempre. Houve também na história escravos brancos.
A palavra “injun”, que designa o nativo norte-americano, também considerada ofensiva, também será trocada por “índio”. Estão atrasados os ianques. No Brasil, índio já está virando pejorativo e algumas castas almas preferem povos da floresta.
É uma total falta de respeito à literatura mexer na obra de um escritor. Pode alguém reinterpretar o que um autor escreveu? Nestes tempos de stalinismo tardio, parece que pode. E as novas gerações que tiverem a desgraça de ler Mark Twain, não mais saberão o que Twain realmente escreveu.
Ai de nós se a moda pega — pretendia eu escrever. Acontece que já pegou. Antes mesmo do professor Gribben, o Conselho Nacional de Educação (CNE), cá nas terras pátrias, sugeriu que o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, não seja distribuído a escolas públicas, ou que isso seja feito com um alerta, sob a alegação de que é racista.
Conforme o parecer do CNE, o racismo estaria na abordagem da personagem Tia Nastácia e de animais como o urubu e o macaco. "Estes fazem menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano", diz a conselheira que redigiu o documento, Nilma Lino Gomes, professora da UFMG. Entre os trechos que justificariam a conclusão, o texto cita alguns em que Tia Nastácia é chamada de "negra". Outra diz: "Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão". Em relação aos animais, um exemplo mencionado é: "Não é à toa que os macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens".
Mais dia menos dia, será censurada entre nós qualquer tradução de Martín Fierro. Pois o negro não fica bem na obra de Hernández. Retraduza-se também a Bíblia, onde no Cântico dos Cânticos Sulamita diz: "Eu sou negra, mas formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão". Vamos à Vulgata Latina, tradução da qual deriva a maior parte das traduções atuais. Lá está: nigra sum, sed formosa. A Vulgata, por sua vez, deriva da tradução dos Septuaginta — feita a partir do original hebraico — onde está, em grego: Melaina eimi kai kale.
Em verdade, a maquiagem já foi feita. Na antiga tradução de João Ferreira de Almeida, temos: “Eu sou morena, mas formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão”.
E assim caminham os tradutores e editores. Em nome de ideologias da época, deturpam textos clássicos. Do jeito em que vão as coisas, mais um pouco e nem os historiadores poderão falar em negros.
Fonte: Janer Cristaldo
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