por Reinaldo Azevedo
“A língua de que usam, toda pela costa, é uma: ainda que em certos vocábulos difere em algumas partes; mas não de maneira que se deixem de entender. (…) Carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente.”
O que vocês lêem acima é um trecho da História da Província de Santa Cruz, de Pero Magalhães de Gandavo, escrita em 1578. Ele descreve os índios brasileiros ao rei de Portugal, segundo, como se nota, a visão do colonizador. A referência que faz à língua tupi e à “ausência” de três letras — o que impedia os índios de ter “fé, lei e rei” — é notavelmente tola mesmo para o século XVI. Em 1578, fazia seis anos que Os Lusíadas tinham sido publicados, e Camões já tinha, por meio de seus sonetos, traduzido boa parte da obra de Petrarca. José de Anchieta estava no Brasil havia 25 anos e já encontrara na cultura indígena os elementos de que precisava para a catequese e a colonização. A tolice de Gandavo, no entanto, ameaça virar uma espécie de emblema desta terra. O português se espalhou pelos quatro cantos do Brasil, com todos os seus “efes”, “eles” e “erres”. Tivemos rei. Tivemos até alguma fé. Mas, definitivamente, os “eles” não nos ensinaram o caminho da lei.Escrevi ontem alguns posts sobre o caso da Anatel, que decidiu, ao arrepio da Constituição, quebrar o sigilo das comunicações telefônicas. A direção não esperou nem mesmo a decisão do Conselho, apressou-se e já comprou o equipamento com que pretende agredir o Artigo 5º da Carta que nos rege, numa decisão que pretende meramente administrativa. Sem atingir uma garantia constitucional, assegura a agência, ela não pode cumprir adequadamente as suas funções. Leitores me enviam comentários dos petralhas em sites por aí que aceitam qualquer lixo. Como de hábito, propagam a máxima dos estados totalitários: “Quem não deve não teme”. Em sociedades que abdicam da lei, a máxima há de ser justamente o oposto: “Deve temer justamente quem não deve”, já que os devedores costumam estar no encalço dos inocentes.
Não se trata de dar peso excessivo a uma questão aparentemente irrelevante, já que, dizem alguns, o sigilo das conversas não será violado. Pouco importa! Não cabe à Anatel o papel de juiz da Constituição; ninguém lhe outorgou a prerrogativa de dizer quais dispositivos valem e quais não valem. Se damos a um ente ou pessoa a licença para violar UMA lei, estamos, na prática, concedendo com a violação de QUALQUER lei. E noto que estamos nos referindo a uma instituição do estado, à qual só é permitido fazer o que lei estabelece. Nós, que somos os cidadãos, podemos fazer tudo o que ela não proíbe.
Há dois dias, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva interrompeu as suas “férias” para visitar o ex-vice José Alencar no hospital. Fez saber que havia debatido com Dilma Rousseff o desastre no Rio e anunciou que, no devido (?) tempo, falará sobre os passaportes diplomáticos concedidos ilegalmente a OITO PESSOAS de sua família. Deu a entender que tem algo a dizer. É mesmo? Marco Aurélio Garcia, o dinossauro mantido como assessor de Dilma, afirmou que o caso só interessa àqueles 3% que achavam o governo ruim ou péssimo — vocês sabem: a turma do contra! Para o Cérbero do petismo, pouco importa se o benefício é ou não ilegal. A aprovação maciça de que gozava Lula lhe facultaria, ou aos seus, o privilégio indevido. A lei não serve para o Babalorixá de Banânia. A limitação mexe com o seu senso de onipotência.
Que coisa espantosa, não? O marxismo vigarista que ainda viceja em nossas universidades — devemos ser o último país do mundo com uma academia ainda pautada por esses cretinos; em Pequim, ninguém mais quer saber — nos afasta de uma verdade insofismável: o mandonismo e a impunidade no Brasil são mais estamentais do que propriamente classistas. Os que se assenhoram do estado, ainda que pela via eleitoral, carregam mais do que as prerrogativas inerentes ao exercício do cargo: levam junto a inimputabilidade e a licença para transgredir leis, algumas delas nem mesmo relacionadas ao exercício de sua função pública.
Lula é a expressão máxima da nova classe social surgida no Brasil, que chamo de “burguesia do capital alheio”. O desassombro, no entanto, com que avança contra as instituições e os limites legais não deriva dessa condição, mas do fato de ter-se tornado um “homem do estado”, um dirigente, um governante, a “elite” pernóstica brasileira não é formada pelos muito ricos, mas pelos “muito impunes”. As chances de um milionário brasileiro responder por seus crimes são muito maiores do que as de um político arcar com as conseqüências de seus atos. Não estou satanizando a política, não! Acho essa conversa um porre! A alternativa aos políticos é a ditadura, é bom deixar claro. Mas é preciso que se exija deles que cumpram a sua função essencial: são eleitos como procuradores e representantes da lei, não para violá-la. Se e quando for necessário mudar um dispositivo legal, a Constituição oferece o caminho.
A trajetória de Lula e sua coleção de agressões às instituições não deixa de ser emblemática. Ele se tornou o herdeiro, para desespero da extrema esquerda, do pensamento revolucionário. No poder, tornou-se beneficiário dos históricos privilégios de casta dos “dirigentes”. Vale dizer: o homem da revolução proletária não estaria preparado nem mesmo para as revoluções burguesas do século 18! O PT se constituiu bem depressa numa nova aristocracia. Aprendeu que, no Brasil, as leis valem para os cavalgados — ricos ou pobres —, mas não para os cavalcantes.
Na terça-feira, o Portal G1 deu uma notícia aparentemente boba. Muitos devem tê-la lido e considerado seu conteúdo muito razoável. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) autorizou que aeronaves do Grupo de Transporte Especial da Aeronáutica, que transportam a Presidente da República e outras autoridades federais, utilizem o Aeroporto de Congonhas durante a madrugada. As operações de pouso e decolagem são proibidas entre 23h e 6h por causa do barulho, já que o aeroporto está em área residencial.
O pedido foi feito pela Advocacia Geral da União em dezembro, ainda no governo Lula, segundo o seguinte argumento: “O Chefe de Estado brasileiro tem o direito a mobilidade excepcional, no interesse público de que seus atos sejam praticados com presteza, celeridade e com a segurança necessária à proteção do funcionamento do regime democrático e do sistema republicano”.
Luís Inácio Adams é um exagerado! Nunca ninguém havia pensado que o estado democrático pudesse eventualmente depender de o Aerodilma pousar em Congonhas! Ora, leitor, se preciso, ele pousa até sobre nossas cabeças. Numa excepcionalidade, é claro que o avião poderia recorrer a Congonhas, sem que a AGU tivesse de fazer uma constrangedora defesa, “em tese”, da exceção. Parece que Guarulhos pode ser muito longe quando se é uma autoridade… Tudo no “interesse do país”, justificativa usada pelo megalonanico Celso Amorim para conceder o passaporte especial à parentada de Lula. A lei é para a ralé.
Caminhando para o encerramento
Pode chegar a 1.200 o número de mortos na tragédia do Rio — fala-se em até 400 desaparecidos. Ainda que não seja isso tudo, já há desgraça o bastante. Toda aquela chuva num só dia foi, de fato, uma ocorrência excepcional, que destruiu também áreas consideradas consolidadas. Mas é certo que centenas de vidas teriam sido poupadas só com o cumprimento da lei, compromisso que não foi cumprido pelos ocupantes de áreas irregulares, pelas Prefeituras e pelos governos estadual e federal — este deixou dormitando por cinco anos na gaveta o decreto que cria o centro de prevenção de catástrofes.
Nessa e em outras ocorrências dramáticas, o descumprimento da lei pode custar — e custa! — centenas de vidas. Nos outros casos de que falo, trata-se da vida das instituições.
O Brasil já teve Rei.
O Brasil tem até alguma fé.
Mas ainda não aprendeu a cumprir a lei: na serra, na planície e, sobretudo, no Planalto.
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