segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Que Tal Napalm?

por Janer Cristaldo
 A que ponto chegamos...  me dizia um companheiro de boteco, a propósito dos recentes acontecimentos no Rio.
Não me parece que seja o comentário mais pertinente. A meu ver, uma pergunta se impõe: como é que chegamos a esse ponto? E a resposta não me parece exigir argúcias de sociólogo ou urbanista.
Há um erro fundamental na concepção do Rio. Normalmente, os pontos mais privilegiados de uma geografia são de uso exclusivo dos ricos. Não sei se por falta de visão, ou talvez por preguiça, o carioca não quis subir o morro. Entregou-o às favelas. Que ficaram numa posição estratégica para atacar a cidade.
Todo brasileiro que um dia passou pela Costa Amalfitana, na Itália, terá tido uma estranha sensação de déjà-vu. Amalfi, Positano, Maiori, Minori, Ravello, nos remetem imediatamente aos morros cariocas. Com pelo menos duas diferenças. Para começar, quem os ocupa não é uma massa de miseráveis, mas uma elite endinheirada. Continuando, são cidades de lazer e trabalho, e não bantustões onde impera o tráfico de drogas. 
O Rio nasceu errado. Não bastasse nascer errada, a cidade continuou torta existência afora. Lá surgiu, mais do que em nenhuma outra cidade do Brasil, uma convivência amistosa entre o lícito e o ilícito, entre a vida honesta e a criminalidade. O bicheiro é um personagem folclórico, que merece um tapinha nas costas, e os barões do bicho são personagens beneméritos que patrocinam desfiles de carnaval. Os traficantes assumiram brechas deixadas pelo Estado ou pela sociedade organizada e assumiram até mesmo a distribuição de luz ou gás nas favelas.
Tudo isso contribui para um exótico modus vivendi, onde uma tênue fímbria separa o mundo do trabalho do mundo do crime. Para encanto dos europeus. Para um francês ou italiano, vir ao Brasil e não visitar a favela é como ir a Roma e não ver o papa. A bandidagem sabe disso e criou corredores especiais para uso de turistas. Quem organiza o turismo no morro não é o Estado, mas o tráfico. A polícia, particularmente durante o governo Brizola, participou de um afável acordo não de cavaleiros, mas de bandoleiros. Eu finjo que reprimo o tráfico, você finge que não vende drogas. Por favor, seja discreto na hora de entregar a muamba. No Rio, até o Cristo faz que não vê o que acontece sob seu olhar complacente.
Os grandes conflitos no Rio, de modo geral, não ocorrem entre polícia e bandidos, como seria a ordem natural das coisas, mas entre bandidos e bandidos, pela conquista de territórios. Em um país em que o desarmamento é imposição legal, os soldados do tráfico desfilam com a nonchalance dos justos, armados de fuzis que nem a polícia possui. Vai daí que um dia o Estado inventa de retomar o poder que deveria exercer e nunca exerceu. Tarde demais. A bandidagem reivindica usucapião. 
Durante muito tempo se discutiu se o poder paralelo das favelas deveria ser combatido pelas Forças Armadas. E durante muito tempo a resposta foi não. Não é função das Forças Armadas. A função das Forças Armadas é combater o inimigo externo. No Haiti, sim. Lá o Exército Nacional colabora voluntariamente na repressão ao crime. No Brasil, não é sua função. Talvez tenha sido esta intervenção no Haiti o que levou, finalmente, nossas autoridades militares a olhar para o descalabro dos morros.
Outro argumento é que soldados não estão preparados para combater o tráfico e podem ser contaminados pelo mesmo. Se assim se pensava ano passado, hoje assim não se pensa mais. Se estão ou não preparados, se serão ou não contaminados, só o futuro dirá. O que está acontecendo hoje no Rio é mais ou menos o que aconteceu na casbá de Argel, no final dos 50. Por razões diferentes, é claro. Estamos em plena guerrilha urbana e, cá com meus botões, me pergunto se guerrilha urbana se combate com tanques. O que as Forças Armadas têm feito por enquanto é expulsar a bandidagem de uma favela para outra. Segundo os jornais, há hoje seiscentos traficantes encurralados no morro do Alemão. Serão presos esses seiscentos? Me permito duvidar. 
Outra peculiaridade nossa é que os generais do tráfico comandam a guerrilha de dentro ... dos presídios. As ordens para ataques criminosos partiram dos traficantes Márcio Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, e Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco, de dentro do presídio federal de segurança máxima de Catanduvas (PR), afirma a Justiça do Rio. Os generais do tráfico sequer correm o risco de seus soldados. O estado maior esta protegido em presídios de segurança máxima. Os soldados estão sujeitos a chuvas (de bala) e trovoadas.
Seus ordenanças são advogados, normalmente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil. Que esperança de vitória pode alimentar o Estado quando advogados são estafetas do alto comando da droga?
Jornais e televisão estão saudando a investida das Forças Armadas como o dia D da guerra contra o tráfico, numa alusão ao desembarque das tropas aliadas na Normandia. Santa ilusão. Um batalhão de bandidos foi expulso de um morro para o outro e há centenas de morros no Rio, todos dominados pelo tráfico. Ficarão os militares permanentemente nos morros que estão ocupando? Claro que não ficarão. Quando saírem, a turma volta. 
Mal o Estado marca um mísero pontinho na luta contra o tráfego, os incondicionais defensores dos tais de direitos humanos saem de suas confortáveis tocas. A Anistia Internacional criticou ontem em nota a atuação da polícia no Rio. Disse que a reação aos ataques do tráfico está colocando comunidades em risco e pode acabar em carnificina. Sob o título "violência no Rio de Janeiro condenada", a nota clama para que "as autoridades brasileiras ajam dentro da lei na resposta à onda de violência".
O guerrilheiro nada como um peixe no mar do povo, dizia Mao. Parafraseando o Grande Timoneiro: o traficante nada como um peixe no mar da favela. Há solução para o problema no tráfico no Rio? Eu diria que há, e são duas. A primeira é elementar. Legaliza-se de vez a droga e, no dia seguinte, sem um tiro sequer, não existe tráfico algum no país. A outra é um pouco mais polêmica: napalm.
Mas aí a Anistia Internacional vai chiar.

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