sábado, 3 de julho de 2010

Os Dois “Saramagos”

por Lino Tavares (*)
"Serei comunista até o fim da vida e não vejo nenhuma razão para deixar de ser!" Mais ou menos nesses termos, o escritor português José Saramago, falecido sexta-feira, dia 18/06/2010, aos 87 anos, nas Ilhas Canárias, respondeu, cerca de um ano atrás, ao questionamento de um repórter sobre sua orientação político-ideológica.
Escritor mundialmente consagrado, o único de Língua Portuguesa a ser laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, recebe com todos os méritos, no ensejo de sua partida, homenagens e manifestações de reconhecimento do todas as partes do mundo, especialmente no Ocidente, onde deixa uma lacuna nos meios intelectuais difícil de ser preenchida.
Não se pode, contudo, sob pena de juntar-se cinicamente à caravana da hipocrisia, atribuir a José Saramago, enquanto cidadão comum partícipe da vida em sociedade, as mesmas virtudes que se lhe atribui na condição de um dos maiores gênios da literatura universal. Afinal, se Saramago disse não ter encontrado nenhum motivo para deixar de ser comunista, não há como não subentender que o escritor sempre compactuou com coisas abomináveis próprias dos países que adotam esse regime. Dissociar uma coisa da outra seria impossível, à luz da lógica e da razão.
Entre elas, temos ainda bem vivas na memória bestialidade humanas como o Muro de Berlim, os extermínios stalinistas dos campos de concentração da antiga União Soviética, a execução sumária de estudantes que “ousaram” clamar por liberdade na Praça da Paz Celestial, em Pequim, capital da China comunista, e os fuzilamentos em massa no implacável “El Paredón”, de Cuba, por motivos meramente políticos.
Ainda que alguém tente justificar a convicção doutrinária que José Saramago sustentou até o último suspiro, dizendo que os tempos são outros e que os países comunistas de hoje são mais democráticos (ou menos ditatoriais) do que os de ontem, terá sua tese prejudicada a partir de acontecimentos atualíssimos, como a ausência de torcedores da Coréia do Norte nessa Copa, porque o governo comunista daquele país não permitiu a viagem de populares para assistir ao Campeonato Mundial na África do Sul.
Nem dizer “que Deus o tenha”, em relação ao grande escritor português há pouco desencarnado, seria expressão de sinceridade, uma vez que, em seu romance “O Evangelho segundo Jesus Cristo, negou Divindade ao Filho de Deus, atribuindo-lhe relações amorosas com Maria Madalena, revelando coerência, nesse particular, com o ateísmo próprio dos que acreditam na dialética marxista, segundo a qual o homem seria um fim em si mesmo. 
(*) jornalista, poeta e compositor

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