segunda-feira, 5 de outubro de 2009

A Mais Confortável Corrupção

por Janer Cristaldo
Faz bem mais de vinte anos que venho denunciando uma corrupção que passa despercebida à imprensa, a corrupção dos professores universitários que fazem bolsa no Exterior — ou mesmo no Brasil — e voltam inadimplentes, sem devolver um só vintém ao Erário. E não só os inadimplentes. Há quem vá estudar Clarice Lispector ou Guimarães Rosa em Paris ou Londres, como se fosse preciso atravessar o oceano para estudar escritores tupiniquins. Isso sem falar no que chamo de doutorado para carecas, professores qüinquagenários e mesmo sexagenários, que decidem doutorar-se já em idade de aposentadoria. A bolsa vira uma espécie de mordomia para premiar algumas décadas de submissão e reverência à guilda. Já que você se comportou bonitinho, o Departamento lhe concede quatro ou cinco anos de turismo bem remunerado às margens do Sena ou do Tamisa. Com direito a levar mulher, filhos e netos, se os tiver.
Na época, cunhei a expressão UFSCTUR, a empresa de turismo mais conveniente do país. Tanto que no primeiro andar da Reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina havia uma agência de turismo, para que os professores não precisassem caminhar muito para organizar suas mordomias. Fui processado pelo Reitor, um baixinho com aquele cavanhaque de bode típico da Maçonaria. Como eu não escrevia inverdade alguma, ele teve de tirar o cavalinho da chuva.
Os jornais denunciam as corrupções no Executivo e Legislativo, mas deixam de lado a corrupção maior. Os coitados dos ministros, deputados ou senadores, só têm direito a corrupções curtinhas, uma semana ou duas, um mês no máximo, seja com a Perpétua, seja com putinhas do mundo televisivo. Já os acadêmicos, estes têm direito a corrupções de longo prazo, em geral um mínimo de quatro anos. Há vigaristas que têm um talento especial na elaboração de seus projetos. Na UFSC, conheci uma professora — mais conhecida como Rubra Vulva — que elaborou um projeto de pesquisas sobre canções sefarditas e askenazis. Ou seja, sua pesquisa implicava viajar para todo país onde houvesse judeus. Teoricamente, para o mundo todo. Rubra Vulva não é malevolência minha. A moça tinha seus dotes de poetisa e em um de seus poemas confessou: “minha rubra vulva”. Pediu? Levou.
Na mesma UFSC, conheci também uma professora cinqüentona, que conseguiu uma bolsa na França para estudar os dialetos do vêneto ... falados em Santa Catarina. A coitada estava quase cega, tinha dificuldades para distinguir os sinais do semáforo. Mas conseguiu quatro anos em Paris. Claro que não produziu nada. Ao término de sua bolsa, foi chamada de volta. Sei lá por que razões burocráticas, esta intimação tinha de ser feita no Brasil. Para não ser chamada de volta, ela então não voltava ao Brasil. Como não voltava ao Brasil, a universidade tinha de continuar pagando seu salário. Isso sem falar na bolsa. Não sei qual foi o desfecho do imbróglio, mas a velhota passou longos anos curtindo a boa vida parisiense, quase ceguinha, às custas do contribuinte brasileiro. Retorno para o ensino? Nenhum.
Não que queira alongar-me, mas ainda na mesma UFSC, tive como colega de Departamento professora que foi fazer mestrado em Curitiba. Teve quatro anos para elaborar sua tese. Não elaborou. Transformou o projeto de mestrado em doutorado e ganhou mais quatro anos de bolsa na USP. Não fez bosta alguma. Estava eu numa reunião de Departamento — os aquelarres, como eu as chamava — quando se discutia sua proposta de mais dois anos em Lisboa. Chamei o coordenador do aquelarre à parte. “Escuta aqui, ó Felício, essa moça está afastada há oito anos do quadro negro, não conseguiu produzir sequer uma linha de texto. Vamos premiá-la com mais dois anos em Portugal?
É um problema humano — me respondeu o chefe do Departamento.
Ela acaba de se divorciar e apareceu outro dia aqui com um olho roxo. Ela precisa sair de Florianópolis.
— Ok! — respondi. Então vou pedir pra minha mulher me dar duas taponas, e vocês me concedem quatro anos às margens do Tejo.
E há mais outras para contar. Não conto para não alongar-me. Em suma, escrevo tudo isto a propósito de um artigo de um artiguete de Elio Gaspari, que leio hoje na Folha de São Paulo:
"Está saindo a preço de custo a malandragem de 300 professores que receberam bolsas do CNPq e da Capes para cursar doutorado no exterior e calotearam o governo. Cada um deles custou US$ 200 mil e viajou com o compromisso de retornar ao Brasil. Não voltaram nem devolveram o dinheiro. Um golpe de US$ 60 milhões.
A cada seis meses o CNPq, a Capes e o Tribunal de Contas chamam a atenção para esses casos, mas o assunto sai da agenda. Trata-se de uma chaga para a comunidade acadêmica brasileira, envolvendo a nata da elite intelectual do país. O grupo de espertalhões não chega a 4% dos beneficiados pelos programas de estímulo à pesquisa e, na maioria dos casos, essas bolsas foram concedidas antes de 1998.
Alguns doutores não retornaram por falta de empregos decentes por cá. Tudo bem. Bastaria ressarcir a Viúva. O CNPq oferece o parcelamento da dívida em até 60 meses, e esse acordo foi aceito por dezenas de ex-bolsistas, menos pelos 300 caloteiros.
Sugestão: o CNPq e a Capes poderiam colocar na internet e lista dos doutores condenados pelo Tribunal de Contas. Mais: abrindo-se um inquérito, a Polícia Federal poderia mandar um ofício à universidade que hospedou cada um deles, comunicando que está atrás do magano."
O cronista, que se pretende bem informado, não está muito bem informado. Para começar, o número de bolsistas inadimplentes deve superar de longe os milhares, não apenas três centenas. Isso sem falar nas teses idiotas. Em segundo lugar, quando alguém recebe bolsa para estudar no Exterior, não assina contrato algum que o obrigue a voltar, muito menos a defender tese. O compromisso é vagamente moral. Quem for honesto, defende sua tese. Quem não for, não a defende e estamos conversados.
O CNPq oferece o parcelamento da dívida em até 60 meses? Maravilha! Turismo subsidiado para pagar em cinco anos me parece um excelente projeto, não digo de tese, mas de lazer. Uma estada na Europa com cinco anos para pagar é coisa que não está ao alcance nem mesmo de senadores ou deputados corruptos. Estes têm de bater ponto de quando em quando.
Colocar na internet e lista dos doutores condenados pelo Tribunal de Contas? É uma ideia. Mas não leva a nada. Os doutores continuarão efetivos e recebendo seus gordos salários. E nós continuaremos pagando o turismo dos acadêmicos nas mais prestigiosas capitais do mundo.
Seja como for, é bom que a imprensa comece a denunciar a corrupção universitária. Que é muito mais vasta que a política. Os Sarneys da vida têm muito a aprender com a universidade pública.
Fonte:    Janer Cristaldo

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