por Janer Cristaldo
Ainda o “deputado que se lixa”, como ficou conhecido o gaúcho Sérgio Moraes, de Santa Cruz do Sul. Uma só frase, em questão de duas semanas, o tirou do anonimato em que vegetava. É séria candidata à frase do ano, embora o ano esteja ainda longe de acabar. Por ter interpretado o que normalmente sentem os eleitos por seus eleitores, o deputado foi inapelavelmente linchado pela mídia.
Longe de mim pretender defender um deputado. Mas vejo um equívoco semântico na polêmica. Um deputado jamais se lixa para a opinião pública, pois dela depende, já que é parte dessa opinião que o elege. Vamos à frase, dita em uma discussão com repórteres: “Estou me lixando para a opinião pública. Até porque parte da opinião pública não acredita no que vocês escrevem. Vocês batem, mas a gente se reelege”. Fica óbvio que o lixar-se se endereçava à mídia. O deputado lixa-se para “o que vocês escrevem”. No entusiasmo do verbo, usou a expressão opinião pública.
Não deixa de ter razões para isto, já que a mídia se assume como intérprete da dita opinião pública. Quando um jornalista emprega esta expressão, em vez de nominar o que seria uma hipotética opinião pública, está designando o que os jornais acham que seja a opinião pública. Assim como a Igreja diz “em nome de Deus” para falar em nome dela, assim como os ditadores usam “em nome do povo” para falar no próprio nome, os jornalistas usam a expressão opinião pública para dizer “nós, a imprensa”. Daí, a meu ver, a confusão. O deputado faz uma nítida distinção entre as duas coisas, ao afirmar: “parte da opinião pública não acredita no que vocês escrevem”. Os jornalistas, ofendidos por tabela, ignoram esta distinção. Retiveram a primeira parte do que foi dito e debitaram na conta do deputado todo o suposto horror contido no “estou me lixando para a opinião pública”.
A imprensa atribui à tal de opinião pública, ipso facto, a posse e usufruto da razão. A opinião pública está sempre eivada de bom senso, critérios de justiça, nobres sentimentos. Na edição de ontem do Estadão, escrevia o professor de Lingüística Sírio Possenti:
“A opinião pública é sempre decente. Nunca é invocada em defesa de uma causa injusta (do ponto de vista de quem a julga): a opinião pública abomina o mensalão, as maracutaias e já abominou o comunismo. São sempre os males, os erros, a imoralidade. A opinião pública funciona como instância superior, ao lado da beleza, da razão, da moral. Entidades intocáveis, inatacáveis. Quem as contestaria? E mesmo os filósofos que o fizeram não defenderiam esse deputado”.
De fato, a tal de opinião pública é contra a farra das passagens no Congresso, contra a corrupção em geral, contra os abusos do Judiciário, contra o uso de dinheiro público para fins privados. Mas sempre tem um mas. Curiosamente, não é contra as invasões e depredações do MST, nem contra entregar parte do território nacional a um punhado de brutos que não chegaram à Idade da Pedra, muito menos contra a ditadura dos irmãos Castro em Cuba. A opinião pública, conforme a imprensa a define, jamais é contra bandeiras de esquerda. Opinião pública, hoje, foi transformada pela imprensa em sinônimo de politicamente correto.
Ocorre que politicamente correto é uma coisa e o que o povo pensa é outra completamente distinta. O Zé da Silva pode ser contra as bandalheiras do Congresso, mas dificilmente recusaria uma vantagem indevida que lhe fosse oferecida. Turismo com dinheiro público é um escândalo. Mas uma bolsinha-família — mesmo que a ela não tenha direito — sempre é bem-vinda. Deputados pagando prostitutas de alto bordo com dinheiro do contribuinte é um crime que aos céus clama vingança. Mas sonegar imposto de renda é perfeitamente permissível.
Ter um castelo sem ter meios que justifiquem sua posse é um atentado de lesa-igualdade. Mas morar em um condomínio sem ter condições de pagar o condomínio faz parte da vida. Tráfico de drogas é crime horrendo. Mas cheirar um pó, fumar maconha — consumo que financia o tráfico — é um inocente hobby da classe média. Prostituição é comércio execrável. Mas quem fornece carnes jovens aos clientes da prostituição é um benemérito da comunidade. Jogo do bicho é contravenção penal. Mas Zé da Silva jamais se furta a fazer uma fezinha. Em nome da opinião pública, a imprensa denuncia deputados como corruptos. Estes renunciam para não perder o mandato e se reelegem pela mesma opinião pública em cujo nome a imprensa falava.
Há uma perplexidade geral em torno à frase do deputado, e certamente o próprio deputado deve estar também perplexo com a repercussão de seu achado. De maneira canhestra, sem pretender dizer o que disse, o deputado atirou no que viu e acertou no que não viu. No fundo, no fundo mesmo, o que Sérgio Moraes disse é que opinião pública, hoje, é uma ficção criada por jornalistas para ocultar ideologia.
Fonte: Janer Cristaldo
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