GABEIRA, O VERDE IMPOLUTO
por Janer Cristaldo
Comecei a sentir o tempo em um distante ano dos 80, quando lecionava na UFSC, em Santa Catarina. Eu ia para a universidade de ônibus quando, a meu lado, ouvi uma confidência surpreendente de uma aluna para outra:
— Eu conheci um cara que viveu 64.
Não foi um tapa na cara, mas o que senti soou mais ou menos como se fosse. Naquele momento, me dei conta que minha geração já passara, que minha memória era depositária de acontecimentos históricos e que não pertencia mais àquele mundo a meu lado. Em 64 eu tinha 17 anos e, bem ou mal, estava envolvido nos acontecimentos de então. Digo isto para introduzir Gabeira no assunto. Porque se há jovens que sequer têm ideia do que foi 64, certamente tampouco terão ideia de quem foi Gabeira ou do que fazia nos anos 60.
Bolchevista e terrorista, Gabeira, se alguém não mais lembra, militava no movimento terrorista MR-8, responsável pelo sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969. Gabeira é também um dos responsáveis pela sobrevida política dessa excrescência chamada José Dirceu, que foi banido do país em troca da libertação de Elbrick. Após o sequestro, Gabeira foi fazer turismo ideológico em Cuba, foi depois para o para o Chile e acabou caindo na social-democracia sueca, onde, ao que tudo indica, tornou-se mais cordato.
Mas nada justifica seu passado. O sequestro do embaixador ocorreu no final dos anos 60. Gabeira era jornalista e, por uma questão de ofício, pessoa bem informada. Ao aderir a um movimento stalinista, já era grandinho suficientemente para ter plena consciência das purgas de Stalin nos anos 30, dos gulags, da affaire Kravchenko, das denúncias de Kruschov no XX Congresso do PCUS, em 1956. Se optou pelo terrorismo, não foi por falta de informação.
Ano passado, ao ter notícias das bolsas-ditadura recebidas por Ziraldo e Jaguar — isso sem falar nas milhares de outras — Gabeira deitou verbo contra os dois vigaristas do Pasquim. Pois não é que a Folha de São Paulo nos noticiou, em maio passado, que seria julgado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça um pedido seu para que a União considerasse o tempo em que foi exilado, na época da ditadura militar, para efeitos de aposentadoria.
Entusiasmado com o dinheiro fácil das bolsas-terrorismo, Gabeira deixou cair a máscara de neo-impoluto e mostrou ao que vinha. Ao mesmo tempo em que se sentia moralmente obrigado a denunciar os colegas de vigarice. Na ocasião, afirmou não ter condições de demonstrar no que trabalhou. “Eu pedi para contarem, para efeito de aposentadoria, os anos que passei no exílio. Foram nove anos. Não tenho condições de demonstrar claramente que eu trabalhei. Os dois jornais em que trabalhei, o Binômio e o Panfleto, foram empastelados. O Diário da Noite e o Última Hora fecharam. Para pedir aposentadoria, preciso disso”.
Precisava mas nem precisava. No mês anterior, fora contemplado com uma bolsa-terrorismo o gaúcho Diógenes Oliveira, militante petista gaúcho e ex-secretário de Transportes da Prefeitura de Porto Alegre, que conseguiu uma indenização retroativa de R$ 400 mil e rendimento mensal vitalício de R$ 1.627,72 por, supostamente, ter sido obrigado a abandonar, em 1966, o emprego que tinha na Companhia Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul (CEEE). Diógenes, hoje sessentão, integrou a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e participou de vários atentados terroristas. Foi preso e exilado em 1969, voltando ao País em 1979. Coincidentemente, o mesmo ano em que Gabeira volta ao Brasil, após ter degustado o amargo caviar do exílio no paraíso nórdico.
Diógenes, na verdade, não perdeu o emprego na CEEE por perseguição política, "por ser sabedor de que a Polícia Política do Regime Militar tinha conhecimento de suas atividades e que, em conseqüência, estava prestes a ser preso", como alega. A CEEE enviou um ofício à Comissão de Anistia desmentindo. E afirmou que Diógenes abandonou o emprego. Mesmo assim, foi regiamente indenizado e bem aposentado.
Gabeira, o impoluto, queria na época indenização pelos dias bem vividos no paraíso social-democrata. Se a moda pegasse, todo lavador de pratos que saiu do Brasil naqueles anos iria querer o seu. Por outro lado, as novas gerações já estão imbuídas da consciência de que investir em terrorismo sempre garante uma velhice tranquila. Ante o ridículo — e a incongruência — de seu pedido, o impoluto deputado acabou desistindo da bolsa-terrorismo. Mas só desistiu após ter sido flagrado pela imprensa.
Agora, resvalou de novo. Foi flagrado desviando passagens para viagens de sua filha ao Exterior. Pego com a boca na botija, Gabeira não perdeu no entanto a complacência de seus colegas de jornalismo e é visto, até hoje, como arquétipo de honestidade. Gabeira afirmou que discursará da tribuna da Câmara amanhã, quarta-feira. Disse que vai reconhecer um erro e iniciar uma batalha na Casa. Sem ser católico, parece ter intuído muito bem o sacramento da confissão. Basta pedir perdão pelos pecados e a absolvição é automática.
Mas não se dá por achado. Admite o erro de ter cedido passagens da cota a que faz jus como deputado para que familiares viajassem ao exterior. Mas pretende convencer a direção da Câmara a modificar as regras que disciplinam o uso das passagens, com as quais presenteou sua filha.
Promete devolver o valor gasto aos cofres públicos e não mais se fala no assunto. "No meu caso, há um ou dois bilhetes para familiares", disse. "Vou falar como um deputado que errou. Mas que não se compromete com o erro". Um ou dois bilhetes? Se foram tão poucos, como não lembrá-los? Que mais não seja, não poderia perguntar à filha? Ela certamente lembra. É bom que o deputado pesquise a fundo sua generosidade familiar, financiada pelo contribuinte. Pode ocorrer que sejam mais as passagens.
Gabeira não precisou a data ou o destino das passagens aéreas nem informou quem as utilizou, para proteger a privacidade das pessoas, porque, segundo ele, elas "não sabiam que era irregular". Santa inocência, a destes filhos que ignoram que o pai lhes paga passagens que são irregulares. O deputado disse considerar "inaceitável" a decisão da Mesa da Câmara na semana passada, ou seja, a decisão de legalizar definitivamente doação de bilhetes para parentes, assessores e correligionários dos deputados e senadores, para que a imprensa não mais reclame. Mas o probo deputado só considerou a decisão inaceitável após ser flagrado cometendo a irregularidade que agora o escandaliza. Repete-se a estratégia de quando pediu a bolsa-terrorismo.
Em um acesso — tardio, é verdade — de escrúpulos, o ex-terrorista diz que tentará mudar as regras pela via conciliatória. Se for malsucedido, cogita recorrer ao STF. "Senão abandono o mandato, termino o mandato discretamente e vou abandonar a política".
Melhor que a abandone logo, porque as mordomias para parentes e companheiros já foram sacramentadas. O Congresso tem uma noção muita rígida — e inamovível — de direitos adquiridos. Não voltará atrás.
Claro que não vai abandonar coisa nenhuma. Gabeira não desconhece a curta memória das gentes. Sabe muito bem que daqui a um ano não se fala mais no assunto. E continuará gozando da inexplicável e paradoxal reputação de reserva moral da nação.
Bolchevista e terrorista, Gabeira, se alguém não mais lembra, militava no movimento terrorista MR-8, responsável pelo sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969. Gabeira é também um dos responsáveis pela sobrevida política dessa excrescência chamada José Dirceu, que foi banido do país em troca da libertação de Elbrick. Após o sequestro, Gabeira foi fazer turismo ideológico em Cuba, foi depois para o para o Chile e acabou caindo na social-democracia sueca, onde, ao que tudo indica, tornou-se mais cordato.
Mas nada justifica seu passado. O sequestro do embaixador ocorreu no final dos anos 60. Gabeira era jornalista e, por uma questão de ofício, pessoa bem informada. Ao aderir a um movimento stalinista, já era grandinho suficientemente para ter plena consciência das purgas de Stalin nos anos 30, dos gulags, da affaire Kravchenko, das denúncias de Kruschov no XX Congresso do PCUS, em 1956. Se optou pelo terrorismo, não foi por falta de informação.
Ano passado, ao ter notícias das bolsas-ditadura recebidas por Ziraldo e Jaguar — isso sem falar nas milhares de outras — Gabeira deitou verbo contra os dois vigaristas do Pasquim. Pois não é que a Folha de São Paulo nos noticiou, em maio passado, que seria julgado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça um pedido seu para que a União considerasse o tempo em que foi exilado, na época da ditadura militar, para efeitos de aposentadoria.
Entusiasmado com o dinheiro fácil das bolsas-terrorismo, Gabeira deixou cair a máscara de neo-impoluto e mostrou ao que vinha. Ao mesmo tempo em que se sentia moralmente obrigado a denunciar os colegas de vigarice. Na ocasião, afirmou não ter condições de demonstrar no que trabalhou. “Eu pedi para contarem, para efeito de aposentadoria, os anos que passei no exílio. Foram nove anos. Não tenho condições de demonstrar claramente que eu trabalhei. Os dois jornais em que trabalhei, o Binômio e o Panfleto, foram empastelados. O Diário da Noite e o Última Hora fecharam. Para pedir aposentadoria, preciso disso”.
Precisava mas nem precisava. No mês anterior, fora contemplado com uma bolsa-terrorismo o gaúcho Diógenes Oliveira, militante petista gaúcho e ex-secretário de Transportes da Prefeitura de Porto Alegre, que conseguiu uma indenização retroativa de R$ 400 mil e rendimento mensal vitalício de R$ 1.627,72 por, supostamente, ter sido obrigado a abandonar, em 1966, o emprego que tinha na Companhia Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul (CEEE). Diógenes, hoje sessentão, integrou a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e participou de vários atentados terroristas. Foi preso e exilado em 1969, voltando ao País em 1979. Coincidentemente, o mesmo ano em que Gabeira volta ao Brasil, após ter degustado o amargo caviar do exílio no paraíso nórdico.
Diógenes, na verdade, não perdeu o emprego na CEEE por perseguição política, "por ser sabedor de que a Polícia Política do Regime Militar tinha conhecimento de suas atividades e que, em conseqüência, estava prestes a ser preso", como alega. A CEEE enviou um ofício à Comissão de Anistia desmentindo. E afirmou que Diógenes abandonou o emprego. Mesmo assim, foi regiamente indenizado e bem aposentado.
Gabeira, o impoluto, queria na época indenização pelos dias bem vividos no paraíso social-democrata. Se a moda pegasse, todo lavador de pratos que saiu do Brasil naqueles anos iria querer o seu. Por outro lado, as novas gerações já estão imbuídas da consciência de que investir em terrorismo sempre garante uma velhice tranquila. Ante o ridículo — e a incongruência — de seu pedido, o impoluto deputado acabou desistindo da bolsa-terrorismo. Mas só desistiu após ter sido flagrado pela imprensa.
Agora, resvalou de novo. Foi flagrado desviando passagens para viagens de sua filha ao Exterior. Pego com a boca na botija, Gabeira não perdeu no entanto a complacência de seus colegas de jornalismo e é visto, até hoje, como arquétipo de honestidade. Gabeira afirmou que discursará da tribuna da Câmara amanhã, quarta-feira. Disse que vai reconhecer um erro e iniciar uma batalha na Casa. Sem ser católico, parece ter intuído muito bem o sacramento da confissão. Basta pedir perdão pelos pecados e a absolvição é automática.
Mas não se dá por achado. Admite o erro de ter cedido passagens da cota a que faz jus como deputado para que familiares viajassem ao exterior. Mas pretende convencer a direção da Câmara a modificar as regras que disciplinam o uso das passagens, com as quais presenteou sua filha.
Promete devolver o valor gasto aos cofres públicos e não mais se fala no assunto. "No meu caso, há um ou dois bilhetes para familiares", disse. "Vou falar como um deputado que errou. Mas que não se compromete com o erro". Um ou dois bilhetes? Se foram tão poucos, como não lembrá-los? Que mais não seja, não poderia perguntar à filha? Ela certamente lembra. É bom que o deputado pesquise a fundo sua generosidade familiar, financiada pelo contribuinte. Pode ocorrer que sejam mais as passagens.
Gabeira não precisou a data ou o destino das passagens aéreas nem informou quem as utilizou, para proteger a privacidade das pessoas, porque, segundo ele, elas "não sabiam que era irregular". Santa inocência, a destes filhos que ignoram que o pai lhes paga passagens que são irregulares. O deputado disse considerar "inaceitável" a decisão da Mesa da Câmara na semana passada, ou seja, a decisão de legalizar definitivamente doação de bilhetes para parentes, assessores e correligionários dos deputados e senadores, para que a imprensa não mais reclame. Mas o probo deputado só considerou a decisão inaceitável após ser flagrado cometendo a irregularidade que agora o escandaliza. Repete-se a estratégia de quando pediu a bolsa-terrorismo.
Em um acesso — tardio, é verdade — de escrúpulos, o ex-terrorista diz que tentará mudar as regras pela via conciliatória. Se for malsucedido, cogita recorrer ao STF. "Senão abandono o mandato, termino o mandato discretamente e vou abandonar a política".
Melhor que a abandone logo, porque as mordomias para parentes e companheiros já foram sacramentadas. O Congresso tem uma noção muita rígida — e inamovível — de direitos adquiridos. Não voltará atrás.
Claro que não vai abandonar coisa nenhuma. Gabeira não desconhece a curta memória das gentes. Sabe muito bem que daqui a um ano não se fala mais no assunto. E continuará gozando da inexplicável e paradoxal reputação de reserva moral da nação.
Fonte: Janer Cristaldo
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Atravanca um palpite aqui: