terça-feira, 28 de abril de 2009

Galula e Nós

Denis Lerrer Rosenfield
Muito tem se falado nos últimos tempos de uma mudança da atitude americana em relação ao Iraque e, subsequentemente, ao Afeganistão, como se a vitória de Barack Obama significasse uma ruptura, em termos militares, com a administração George W. Bush. Com a invasão do Iraque, os governantes americanos se viram diante de uma situação completamente nova. Ganhar a guerra foi fácil, pois os EUA são imbatíveis em termos de guerra clássica. O problema surgiu quando os vencedores tiveram de se enfrentar com um movimento de insurgência, para o qual não estavam minimamente preparados.
Um dos comandantes americanos que se defrontaram primeiro com essa situação foi o general Petraeus, enquanto administrador de Mossul, a segunda cidade do Iraque. Deu-se ele conta de que os instrumentos que tinha à sua disposição eram insuficientes para combater um movimento de insurgência, o terrorismo islâmico, que se constitui como um inimigo anônimo, que se alimenta de sua influência e de sua imagem perante a população. As armas convencionais mostraram-se aí insuficientes. De volta aos EUA, o general Petraeus foi designado para comandar, em Fort Leavenworth, a Divisão de Doutrina do Centro Combinado das Armas (CAC). Lá, com o general James Amos, comandante dos Fuzileiros Navais, ele empreendeu a revisão da doutrina militar americana, voltando-a para os problemas oriundos da contrainsurgência. Ora, todo esse trabalho, consubstanciado no Counterinsurgency Field Manual, do The U. S. Army e do Marine Corps, passou a orientar a atuação americana no Iraque e, agora, também no Afeganistão.
A revisão doutrinária levada a cabo partiu do livro de um tenente-coronel francês, David Galula, que na Guerra da Argélia se defrontou com a insurgência naquele país e, a partir daí, como comandante de uma cidade, começou a mudar a relação dos militares com a população. Tempos depois foi convidado a passar um tempo nos EUA, onde publicou, em 1963, o livro Counterinsurgency Warfare, Theory and Practice, que se tornou o texto de referência desta nova doutrina militar americana.
O livro de Galula, ao estudar as questões da insurgência no século 20 até 1960, refere-se aos problemas da guerra revolucionária, nos moldes marxistas, tal como esta se fez na União Soviética, na China e em Cuba. Analisa também as guerras anticolonialistas, tendo como referência os seus componentes "anti-imperialistas". Seu foco de reflexão reside em pensar como a guerrilha e os movimentos insurrecionais redefiniram os termos mesmos do que se considerava como sendo a guerra, exigindo, por sua vez, das forças militares uma readequação de sua luta e a revisão doutrinária correspondente. O problema não era mais somente militar no sentido tradicional do termo, voltado para a conquista de territórios e a eliminação de um inimigo visível, mas a conquista da população, diríamos hoje da opinião pública, tendo como contendor um inimigo invisível.
A insurgência enfrentada pelos americanos é a do terrorismo islâmico; a de Galula, a de um movimento nacionalista, fortemente ancorado na concepção comunista das guerras de libertação. Seus ensinamentos são atuais no que diz respeito ao terrorismo islâmico, porém poderíamos dizer também que sua atualidade para o Brasil consiste em que ele nos permite pensar uma insurgência operante entre nós: a do MST. Ou seja, a atuação e a organização do MST recortam várias das características que Galula atribui aos movimentos insurrecionais, numa analogia que ainda se reforça pelo fato de essa organização política compartilhar os mesmos pressupostos ideológicos dos movimentos revolucionários do século 20. O marxismo segue sendo a sua referência teórica e o objetivo a ser realizado é uma sociedade socialista autoritária, que pressupõe a eliminação do capitalismo, da democracia representativa e do Estado de Direito. A sua autoapresentação como movimento social consiste somente num disfarce, visando a ter uma influência maior na opinião pública, escondendo, dessa maneira, suas verdadeiras intenções.
Ao contrário de uma guerra convencional, uma guerra insurrecional segue regras distintas. Um movimento insurgente, sobretudo em seu começo, não necessita de um exército e utiliza poucas armas. Seu foco não reside inicialmente na conquista de um território, mas na conquista da população, da opinião pública, de tal maneira que possa desenvolver suas operações. Suas ações têm a característica de ser espetaculares, mostrando-se como contendores de respeito que inspirem poder na população em geral. O movimento contra insurrecional não pode contar apenas com seu armamento convencional. Melhor: este se torna francamente insuficiente. Os seus meios de luta se tornam outros, voltados para a conquista da população e da opinião pública, o que significa também dizer por sua capacidade de garantir segurança e condições de bem-estar aos cidadãos em geral. Políticas sociais tornam-se meios da luta política.
Pode-se, portanto, melhor compreender a atração que o terrorismo islâmico (Al-Qaeda, Hezbollah, Hamas) exerce sobre certos partidos de esquerda e os movimentos sociais como o MST. Eles, na verdade, se reconhecem no terrorismo atual como fazendo parte de uma mesma linhagem revolucionária, agrupada no antiamericanismo, na luta contra o capitalismo. Ou seja, os que se reivindicam da revolução se reconhecem no terrorismo islâmico, exibindo uma afinidade eletiva. Eis por que a análise de Galula se reveste de particular importância para nós, na medida em que a América Latina se defronta com o renascimento de movimentos de cunho revolucionário. O terrorismo islâmico não tem, entre nós, atualidade política, mas o renascimento da tradição marxista, sim. O MST, no Brasil, é um exemplo disso, além da permanência dos irmãos Castro em Cuba e do surgimento do "socialismo do século 21" na Venezuela, fazendo discípulos na Bolívia, no Equador e no Paraguai.
Denis Lerrer Rosenfield
é professor de Filosofia na UFRGS

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